Fogo Amigo - parte 3

Fogo Amigo - parte 3 Durante muito tempo, aterrorizava-me a cena final de Kids, o filme de Larry Clark, que estreou há 30 anos (1995). Vomitei internamente mas também externamente, tenho quase a certeza, naquela cena cruzada de contaminação: Telly, personagem interpretada por Leo Fitzpatrick, que mais tarde veríamos como Johnny Weeks no The Wire), viola Darcy (Yakira Peguero), adormecida e abandonada no final de uma festa, já depois de sabermos que Jennie, interpretada pela icónica Chloë Sevigny, foi contaminada por Telly e tem HIV. Jennie acaba por colapsar também nessa festa e é violada por Casper, Justin Pierce (skatista e arruaceiro, que morreu em 2000), amigo de Telly, e assim contaminando-o. “What just happened?” é a frase que fecha o filme e que me assombrou durante mesmo muito tempo.

18.01.2025 | por Patrícia Azevedo da Silva

“Dina” (1964), de Luís Bernardo Honwana: retrato de machamba colonizada em lenta combustão

“Dina” (1964), de Luís Bernardo Honwana: retrato de machamba colonizada em lenta combustão    A violência e a opressão manifestam-se desde o início da narrativa no cenário infernal do trabalho desumanizado, na inclemência do sol, no sofrimento silencioso de um velho, atinge o auge na hora do almoço (na violação de Maria), mas avança ainda, sem decrescer, até uma explosão, no espancamento brutal (e morte?) de um jovem trabalhador, para depois se atenuar no retorno ao trabalho (e à cena inicial), em obediência às ordens do capataz – e também às palavras firmes de Djimo. No fim, já nada é o mesmo; algo indefinível está em movimento e o leitor pode continuar a história como melhor lhe aprouver.

16.01.2025 | por Maria de Lurdes Sampaio

Kwashala Blues, visto através de um monóculo

Kwashala Blues, visto através de um monóculo O avião a descolar e o mundo de Fred a implodir, com as suas referências congeladas na impotência escultórica: Charifo Victor Salimo, Rei Costa e Zena Bacar. Miragem. Estamos perante a atmosfera musical da cidade de Nampula, um regresso ao Kwashala enquanto género musical, que ecoou um pouco por toda a região norte de Moçambique e parte de província da Zambézia, sobretudo nos distritos de Gilé, Alto-Molocue, Gurué, Ile e Namarroi, através do cordão Emakhuwa, língua falada nestas regiões e partilhado por quase trinta por cento da população nacional.

08.01.2025 | por S. Preto

Da Cooperação Cultural ou da lógica europeia no financiamento às Artes

Da Cooperação Cultural ou da lógica europeia no financiamento às Artes   Após a independência, estabeleceu-se um outro tipo de relação, chamada de “cooperação” internacional, que pressupõe a relação entre dois ou mais países ou instituições, para reforçar os laços económicos e políticos e contribuir para o desenvolvimento de uma ou mais das partes envolvidas. Sendo que a Cooperação Internacional pode ser estabelecida entre quaisquer países (a União Europeia, por exemplo, não deixa de ser um formato macro de cooperação entre países), este artigo pretende ser uma pequena reflexão sobre a Cooperação entre Portugal e os países africanos onde também se fala português.

22.11.2024 | por Maria Lima / Daniela Lima

A transexualidade aos olhos da Genspect

A transexualidade aos olhos da Genspect Havia autocolantes a serem distribuídos gratuitamente com a inscrição: “No one is born in the wrong body” [Ninguém nasce no corpo errado, em tradução livre]. Havia livros, com o custo de 30 euros para cima, que indicavam ser a ajuda que os pais precisavam para “salvarem” os seus filhos da disforia de género. Havia panfletos de propaganda a igrejas que “providenciam um lugar seguro e passível de reflexão sobre o que significa ser gay, lésbica, bissexual e cristão, através de reuniões, rezas, retiros e conferências”.

20.11.2024 | por Mariana Moniz

Prefácio - A impossibilidade da não-violência

Prefácio - A impossibilidade da não-violência Da vida quotidiana às relações internacionais, os exemplos poderiam multiplicar-se. A violência é parte fundamental da normalidade em que vivemos. Mas sobre a violência recai, frequentemente, um manto tão pesado de eufemismos e «explicações» que se torna difícil pensá-la, estabelecer os seus limites, até identificá-la. Iluminar um ponto em que se manifesta implica deixar muitas das suas manifestações na sombra. A sua invisibilidade é um produto da sua ubiquidade. A maioria dos episódios partilhados no parágrafo anterior – quando chegam às notícias – não convocam sequer a palavra «violência».

11.11.2024 | por Diogo Duarte

“Até que tudo caiu no esquecimento”. Falar de Luís Romano à mesa.

“Até que tudo caiu no esquecimento”. Falar de Luís Romano à mesa. A nossa identidade é, toda ela, traçada com o passado. Seria então muito imprudente retirar ou apagar um momento histórico dessa mesma matriz genética, como as nossas fomes cíclicas e as murmuradas histórias de canibalismo, as ideologias e divisões feudais ainda muito presentes em Cabo Verde, Amílcar Cabral e toda a história da luta pela independência, a nossa condição africana, as atrocidades feitas a nós próprios, ou aos nossos irmãos africanos, ou qualquer outro elemento que possa ter contribuído de alguma forma para aquilo que somos hoje.

29.10.2024 | por Nuno Miranda

A visão pan-africanista e não-alinhada de Amílcar Cabral e a atual situação da África e do mundo, à luz de alguns relevantes factos da atualidade *

A visão pan-africanista e não-alinhada de Amílcar Cabral e a atual situação da África e do mundo, à luz de alguns relevantes factos da atualidade * Uma primeira expressão do fervor afro-crioulista, pan-africanista, pan-negrista, ecumênico e internacionalista de Amílcar Cabral encontra-se nalguns dos seus poemas mais icónicos e assume laivos de esfuziante entusiasmo quando, em 1949, toma conhecimento, através do amigo e camarada angolano Mário Pinto de Andrade, dos poemas negritunidistas de poetas francófonos reunidos e organizados por Leópold Senghor na 'Anthologie de la Nouvellhe Poésie Négre et Malgache', a qual contou com um marcante prefácio do filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre intitulado “Orphée Noir”.

28.10.2024 | por José Luís Hopffer Almada

Sobre escrevivências, fronteiras e ficar Odara

Sobre escrevivências, fronteiras e ficar Odara Ser uma jovem migrante brasileira negra investigadora em Portugal é resistir à destituição do meu potencial singular e complexo, quando a lógica colonial insiste em me cristalizar em identidades marcadas para morrer. É tentar equilibrar o aforismo gramsciano - pessimismo da razão e otimismo da vontade - numa fronteira cultural, social e política cujo agente de imigração não vai com a minha cara. Mas na escrevivência posso ser fronteiriça, posso ser tudo e nada, posso até abandonar esse texto sem uma lição que o valha.

27.10.2024 | por Gessica Correia Borges

O Humor, a Liberdade de Expressão e a Blackface entram num bar

O Humor, a Liberdade de Expressão e a Blackface entram num bar Os limites do humor estão em permanente expansão, constrição e discussão. E por muito que isso seja chato, seja para veteranos como eu, com pouca paciência para novidades, seja para velhos enquistados, ou jovens com tempo a mais e vida a menos ou o contrário, é bom que assim seja. O humor faz parte do discurso e o discurso faz parte dos tempos. Muda. Aliás muda tudo, muitas vezes para tudo ficar na mesma.

25.10.2024 | por Pedro Goulão

Só tenho saudades do futuro

Só tenho saudades do futuro A ideia de só termos saudades do futuro voltou pois a fazer todo o sentido na sequência desta "primavera", com a agravante de se estar a observar agora um tipo de gestão da comunicação social/jornalismo que tem contornos ainda mais preocupantes do ponto de vista da liberdade de imprensa, da independência editorial dos jornalistas e do pluralismo mediático. Neste segundo e último mandato de João Lourenço, sente-se que o poder político está muito mais agressivo, a lidar com os projectos editoriais que não consegue controlar directamente, com as atenções voltadas para o jornalismo digital que usa a Internet como meio de transmissão.

18.10.2024 | por Reginaldo Silva

Ensaio de Jazz: Uma composição democrática

Ensaio de Jazz: Uma composição democrática O ocidente é um hospício, um receptáculo consciente e premeditado da magia preta. Cada desaparecimento é um registro. Isso é ressureição. Insurreição. Espalhe a magia preta, mas espalhar ou dispersar não é admitir a informidade. O som posterior é mais do que uma ponte. Ele rompe a interpretação mesmo quando o trauma que registra desaparece. Amplificação de um semblante arrebatado, retrato acentuado. Não há necessidade de descartar o som que emerge da boca como uma marca de separação. Sempre foi o corpo inteiro que emitiu o som: instrumento e dedos reclinados.

04.10.2024 | por Allende Renck

¡Viva México, cabrones!

¡Viva México, cabrones! Hoje o Rei não vai estar. Não foi requerido. Mais logo no Palácio Presidencial da Cidade do México, a tomada de posse de Claudia Sheinbaum como presidente do país latino-americano não vai ter na assistência o enjoado Felipe VI a olhar com nostalgia para os céus da antiga Nova Espanha. A recusa de Sheinbaum em convidar o monarca por uma “ofensa da Casa Real espanhola à soberania e ao povo do México” está a obrigar Espanha a confrontar-se com as suas próprias lutas internas.

30.09.2024 | por Pedro Cardoso

Chao, Felipe

Chao, Felipe A Espanha abre a boca para falar que, ao longo dos séculos, os dois países compartilharam uma herança comum e um relacionamento cultural e histórico que transcendem os episódios da colonização. Transcendem como? É muito conveniente para o país europeu (e para a Igreja Católica) a postura de bom gentio de outrora, quando governantes – desculpem o meu francês – abriam as pernas para os antigos colonizadores, perpetuando após a independência a mesma posição de vassalagem.

27.09.2024 | por Gabriella Florenzano

A liberdade como exclusão (ou o nojo a tudo isto)*

A liberdade como exclusão (ou o nojo a tudo isto)* Então se nos perguntam porque escrevemos, respondemos, desde a nossa povoada e frutífera solidão: escrevemos para darmos um sentido ao fracasso, pois, conhecer o inferno, exige-nos que também o apontemos com sujo dedo indicador (de remexer nas escórias da vida), num idioma tão precário e duradouro como a poesia, que tresanda a sangue e horrores, e existe não para convencer, mas porque é da sua livre natureza existir.

16.09.2024 | por José Luiz Tavares

Algumas notas políticas e históricas avulsas,

Algumas notas políticas e históricas avulsas, A dialéctica partido/movimento de matriz cabraliana/cabralista e que propugna uma ampla e massiva base social de apoio aliada a critérios cada vez mais rigorosos, dos pontos de vista ético-moral e político-ideológico, para a selecção dos militantes entre os “melhores filhos do povo” para a edificação de um partido meritocrático verdadeiramente de vanguarda, parece ter influenciado, ainda que de forma involuntária e inconsciente, a dinâmica da construção do MpD como um amplo e emergente movimento (curiosa e consabidamente, póstumo à Abertura Política Democrática de 19 de Fevereiro de 1990) de estridente contestação do regime caboverdiano de partido único socializante, incensado por Carlos Veiga como o maior movimento popular até hoje surgido em Cabo Verde,

16.09.2024 | por José Luís Hopffer Almada

Membranas do futuro

Membranas do futuro É preciso voltar a olhar para o que está presente e ver os futuros que brotam, a abundância da qual pode provir o futuro. Para deixar em aberto as suas possibilidades, instalemo-nos no presente quotidiano, naquilo que está mais à mão de semear. Sejamos permeáveis ao que vive, quer viver e contraria a ausência de futuro. O que pode romper com o “realismo”, essa espessa cortina que oculta as possibilidades de futuro.

14.09.2024 | por Liliana Coutinho

Solidariedade com Cláudia Simões e todas as vítimas de violência policial

Solidariedade com Cláudia Simões e todas as vítimas de violência policial Apelamos a todas as pessoas, coletivos e demais forças da sociedade portuguesa e comunidade internacional que se juntem a nós na exigência de revogação da sentença e de reparação da violência infligida pela polícia e pelo sistema judicial a Cláudia Simões. Neste momento, em que ela se prepara para recorrer da decisão, a solidariedade de todes é indispensável, com Cláudia Simões e com todas as vítimas de violência policial e do estado.

05.09.2024 | por vários

No centenário de nascimento de Uanhenga Xitu, o «luandense teimoso» de calomboloca

No centenário de nascimento de Uanhenga Xitu, o «luandense teimoso» de calomboloca Na verdade, não é a qualquer escritor que acontece, como a Uanhenga Xitu, a criação de um personagem literário que extrapola a própria literatura e o seu criador, como é o caso desse Mestre Tamoda, para tomar vida própria e se entranhar na carne e no quotidiano dos seus leitores como um muito velho e bom Amigo, sempre disponível e presente, sem jamais trair ou melindrar, enfim, um desses Amigos que a Vida tão poucos nos dá.

04.09.2024 | por Zetho Cunha Gonçalves

O 'Cemitério do Elefante Branco', entre a sociologia da literatura e a história de Portugal

O 'Cemitério do Elefante Branco', entre a sociologia da literatura e a história de Portugal    Todo este manancial de informações e interpretações desemboca num estuário instigante. A conclusão a que chega o autor, após as razões expostas ao largo do ensaio, é de que “a democracia ainda não conseguiu expurgar a sociedade portuguesa da estigmatização social de que os negros continuam a ser alvo”.

26.08.2024 | por Márcio Catunda