Só tenho saudades do futuro

Já não me lembro muito bem quando é que comecei a usar esta frase/pensamento, que serve de epígrafe para este texto e que, de há uns anos a esta parte, consta da nota de apresentação biográfica da minha página pessoal no Facebook.

“O passado não é para esquecer, mas só tenho saudades do futuro”.

Seja como for, tenho a certeza que foi apenas produto da minha imaginação, tendo resultado tão sómente da minha avaliação da realidade angolana com base na experiência sócio-profissional dos anos passados na Rádio Nacional de Angola (RNA), mas não só, é claro. Isto para esclarecer, desde logo, que não me inspirei em sítio nenhum, ou seja, que me sinto o legítimo proprietário intelectual da mesma. Tal não quer dizer que, antes de mim ou depois, alguém já não a tenha utilizado e que se sinta igualmente autor legítimo da dita frase.

O que é bem provável que assim seja, porque a expressão em causa, retirada do contexto, não me parece que seja um grande “achado”.

É uma pesquisa quase impossível de fazer pois nem tudo o que foi escrito e dito em português está na Internet, como é evidente. Em pesquisa muito recente no Google, usando a referida frase, tive o grato prazer de encontrar uma “cantautora” brasileira, por sinal completamente desconhecida para a mim, Renata Rosa, que tem uma canção, editada em 2014, com um nome muito parecido e uma lógica semelhante à que me inspirou.

A música da Renata chama-se “Saudade do Futuro”. A autora confessa-nos logo nos primeiros versos: “Eu só consigo ter saudades do futuro/Bago maduro, planta de frutos claros/Trago nos lábios calos de tantas palavras/Sou das lavouras que lavra/Pras sementes do amor/Trago uma dor e trago tanta alegria”.

A minha passagem de 40 anos pela RNA com pelo menos duas interrupções pelo meio, é efectivamente a minha principal referência quando olho para o passado de um país que, dentro de mais um ano, vai assinalar o seu primeiro meio século de existência. Foi lá que comecei ainda tinha 19 anos, meses antes de Agostinho Neto proclamar, em nome do Comité Central do MPLA, a independência de Angola no dia 11 de Novembro de 1975. Esta referência pouco simpática em relação ao passado está exactamente num depoimento/texto que me foi solicitado pelos organizadores do livro “Contributos para a História/A Rádio em Angola”, editado em 2021, após um prolongado tempo de espera que demorou a sua produção.

Destaco logo no início do depoimento que se “há uma coisa que não tenho da Rádio Nacional como instituição é saudades no seu sentido mais afectivo, o que não me impede de a colocar no topo das relações que mais e melhor contribuíram para a minha definição e afirmação como pessoa e profissional”.

De facto não tenho grandes razões para ter saudades deste passado mais institucional pela RNA, o que está parcialmente reflectido neste depoimento com a narração de alguns dos episódios que mais me afectaram enquanto jornalista durante o tempo que por lá andei. Nesse período, que vai de 1979 a 1991/92, o meu terror, literalmente, chegava todos os anos com o mês de Maio. Tendo estado preso depois do 27 de Maio de 1977 por cerca de dois anos, era considerado na época um “fraccionista”. O meu terror eram os noticiários, pois durante o mês de Maio era inevitável que a programação da Rádio falasse da data com as conhecidas e vigorosas condenações da narrativa oficial, para além da cobertura dos actos simbólicos com que o 27 de Maio era evocado, com destaque para a romagem ao Cemitério do Alto das Cruzes em Luanda.

Tinha prometido a mim mesmo nunca emprestar à minha voz à leitura de qualquer “cena” relacionada com o 27 de Maio, pelo que a única solução que encontrei foi passar a gozar as minhas férias de 30 dias entre 15 de Maio e 15 de Junho de cada ano. Deste modo consegui cumprir a minha promessa e evitar qualquer processo disciplinar por alguma recusa, menos aceitável para a época onde a objecção de consciência ainda estava muito longe de ser considerada um direito fundamental. Na verdade, e a ser evocada, podia até ser motivo de despedimento por justa causa com as inevitáveis consequências políticas que todos os que viveram aqueles “anos de chumbo” sabem bem até onde poderiam ir, no limite. Este episódio é emblemático desse passado e ilustra bem as razões que nos levam hoje a só ter saudades do futuro. Daquele passado mais remoto até aos nossos dias, com todas as mudanças que os direitos e as liberdades fundamentais têm conhecido em Angola, lamentavelmente ainda não conseguimos chegar ao futuro que já devia ser presente há muitos anos, pelo menos depois do país entrado para o período da “paz definitiva” já lá vão mais de 22 anos. A mudança de liderança que aconteceu em Angola após as eleições de 2017, com a saída de José Eduardo dos Santos e a entrada em cena de João Lourenço, parecia apontar mais rapidamente para esse futuro, a tal ponto que uma pessoa que nos é próxima e que tem a mesma experiência do passado que nós, bastante entusiasmada com o que se estava a passar, chegou a comparar os primeiros tempos do “lourencismo” a um “novo 25 de Abril”.

De facto, em Angola, e a ter em conta tudo o que se tem passado nestes últimos 7 anos da nova Governação, bem poderíamos falar de uma “primavera lourencista” mas que já deu tudo que tinha para dar. Lamentavelmente, foi muito pouco para todas as promessas inciais que se fizeram quer durante a campanha eleitoral quer já depois nos primeiros dois anos da sua implementação. A ideia de só termos saudades do futuro voltou pois a fazer todo o sentido na sequência desta “primavera”, com a agravante de se estar a observar agora um tipo de gestão da comunicação social/jornalismo que tem contornos ainda mais preocupantes do ponto de vista da liberdade de imprensa, da independência editorial dos jornalistas e do pluralismo mediático. Neste segundo e último mandato de João Lourenço, sente-se que o poder político está muito mais agressivo, a lidar com os projectos editoriais que não consegue controlar directamente, com as atenções voltadas para o jornalismo digital que usa a Internet como meio de transmissão. Embora haja um novo órgão colegial independente que é a Entidade Reguladora da Comunicação Social Angolana (ERCA), Angola será já dos poucos países que se afirmam como Estado Democrático de Direito, onde é o poder político, através de um departamento ministerial, que controla tudo e mais alguma coisa no que diz respeito ao funcionamento da comunicação social com destaque para o licenciamento. Será, provavelmente, aqui que reside a contradição mais insanável que se vive nos dias de hoje em Angola quando olhamos para a realidade mediática pós “eduardismo”.

Embora tenha sido criada no últimos meses do consulado de José Eduardo dos Santos, a ERCA entra em funções já com João Lourenço no poder. Sete anos depois, nada foi feito para que, no mínimo, o poder da regulação fosse partilhado entre o Executivo e a ERCA. Por tudo isto e muito mais, a precisar, possivelmente, de um livro branco, como é que não haveremos de ter apenas saudades do futuro?

por Reginaldo Silva
A ler | 18 Outubro 2024 | jornalismo, “Metáforas do Futuro: o pós do Pós