Angola/ Alguém viu por aí o jornalismo investigativo?

Tendo em conta a própria realidade que se vive no país, Angola até devia ser o paraíso do jornalismo investigativo, mas não é.

Muito se tem falado nos últimos tempos do papel e do exercício do jornalismo investigativo em Angola, sendo certo para qualquer observador, mesmo para os menos atentos, que nesta matéria fala-se muito mais do que se faz.

A par disso, são várias as acções de formação que diferentes instituições nacionais e estrangeiras vão promovendo visando capacitar os profissionais angolanos nesta área mais específica da actividade jornalística que já está bastante desenvolvida em termos mais académicos/teóricos.

Efectivamente já há bastantes trabalhos, incluindo manuais, produzidos por especialistas que têm abordado o jornalismo investigativo seja como género narrativo, seja como opção-estratégia editorial, seja como orientação-espírito de trabalho para quem abraçou esta actividade profissional com a convicção de que o jornalismo de referência continua a fazer todo o sentido apesar da imensa concorrência desleal da “selva mediática” criada sobretudo pelo espaço digital/internet/redes sociais.

Esta concorrência é efectivamente desleal uma vez que usa os mesmos códigos do jornalismo original, para dar cobertura e credibilidade a avalanche da desinformação e da manipulação que se instalou em todo o lado e que pode ser resumida no fenómeno global conhecido por fakenews.

Como reacção legítima a esta tendência avassaladora surgiu uma outra instituição muito mais pacífica denominada fact-checking, tamanha a envergadura atingida pela falsificação da informação com os mais diferentes propósitos, sendo todos eles profundamente insidiosos a começar pelo preocupante e sintomático anonimato em que se refugiam grande parte dos seus autores ou mentores. É exactamente esta concorrência que torna ainda mais necessária a presença de um jornalismo mais actuante pelo lado em que até dorme melhor e está muito mais capacitado, que é a identificação dos factos que realmente interessam e o apuramento de toda a informação pertinente que ajuda a opinião pública a não confundir alhos com bugalhos. É neste confronto que o jornalismo de investigação se apresenta na parada como sendo a melhor e mais consistente resposta da própria sociedade através de profissionais competentes e comprometidos com a verdade e projectos editoriais consistentes mas sobretudo independentes. No que toca ao espírito do jornalismo de investigação no contexto angolano faz particularmente sentido a justificação segundo a qual “o mundo está cheio de sofrimento; boa parte desse sofrimento é inútil, e é o resultado de imoralidades e erros. O que quer que diminua o sofrimento, a crueldade e a estupidez vale a pena ser feito. Uma investigação pode contribuir com esse objetivo.”1

Para quem conhece minimamente a realidade angolana sabe que muito do sofrimento que os angolanos viveram nestes cerca de 50 anos de independência era perfeitamente evitável tendo sido provocado sobretudo por decisões políticas equivocadas, sendo algumas delas terrivelmente erradas. A mais grave das quais foi, certamente, a que deu origem à gigantesca carnificina que se seguiu aos acontecimentos do 27 de Maio de 1977 de que até hoje o país se ressente amargamente. Hoje ninguém tem muitas dúvidas em concluir que, numa situação politicamente diferente daquela em que prevaleceu apenas a “voz do dono”, os angolanos não teriam sido submetidos a tanto sofrimento e teriam sabido resistir muito melhor a este tipo de gestão mais desalmada da coisa pública em nome de interesses estranhos ao bem-estar da colectividade.

Numa entrevista concedida ao jornal Público em 1995, Luandino Vieira reconheceu que se podia “ter feito muito melhor”. Sobretudo, destacou: “Podíamos ter feito com muito menos sofrimento os mesmos erros para o mesmo resultado. Isso não é perdoável”. Numa situação política em que houvesse o mínimo de liberdade de expressão/imprensa, tais decisões seriam facilmente contestadas e mesmo revertidas. É fácil dizer isto agora, mas também não há como olhar de outra forma para o passado. Acontece, para quem não sabe ou já esqueceu, que o país viveu numa situação de ditadura monopartidária assumida nos seus primeiros 17 anos, que também ficou conhecida no discurso oficial com o pomposo nome de “ditadura democrática revolucionária”. Lamentavelmente, a situação prolonga-se até aos dias de hoje embora já com algumas diferenças na sua fachada constitucional e institucional com a existência formal de um regime multipartidário que não alterou, contudo, a natureza do poder absoluto que governa o país com os mesmos vícios de sempre não obstante todo o rejuvenescimento que, a olhos vistos, a elite no poder tem conhecido. Numa das redes sociais, alguém disse meio a brincar, meio a sério, que o “ADN leninista do MPLA só é possível alterar com um transplante de medula, pois o rejuvenescimento das suas fileiras está a ser feito com o mesmo sangue, com a chegada ao poder dos filhos dos anteriores dirigentes.” A perda da maioria absoluta pelo ANC nas recentes eleições sul-africanas talvez ajude os angolanos a perceberem melhor o impacto de uma governação diferente, enquanto se aguarda pelas consequências no quotidiano dos sul-africanos que esta alteração substancial irá ter na maior economia do continente.

Ricardo de Mello, o pioneiro do jornalismo investigativo 
Com a abertura política que tem início na década de 90, para além da instauração do multipartidarismo, temos a entrada em cena do jornalismo independente que rompe completamente com a forte tutela politico-partidária que até então existia sobre os chamados Meios de Difusão Massiva (MDMs) que eram os únicos que tinham existência legal num país que só tinha uma rádio (RNA), uma televisão (TPA), um jornal diário (JA) e uma agência de notícias (ANGOP). Em termos de terminologia, os MDMs do passado hoje evoluíram para a designação de Meios de Comunicação Social Públicos, sendo certo que esta evolução alterou muito pouco o controlo editorial que sobre eles tinha o poder político que agora se exerce através da nomeação e demissão dos seus gestores pelo Chefe do Executivo, mas não só. Tinha e pelos vistos continua a ter, lamentavelmente para a saúde da liberdade de imprensa made in Angola, que hoje podia ser bem diferente para melhor, não fosse esta camisa-de-força que se mantém na sua essência sobre o sector que mais independente devia ser até por imposição directa da própria Constituição. É na década de 90 que o espírito do jornalismo investigativo em Angola dá os primeiros passos mais determinados, com o surgimento dos primeiros projectos editoriais independentes em Luanda com destaque para a imprensa escrita. O Imparcial Fax, do saudoso Ricardo de Mello, foi a grande referência histórica desta caminhada de mãos dadas com a liberdade e a salvaguarda do interesse público que já tem três décadas e dezenas de milhares de páginas impressas, às quais se juntam intermináveis horas de rádio e televisão, sem contar com tudo quanto tem chegado ao espaço público exclusivamente por via da Internet.

Ricardo de MelloRicardo de MelloNa verdade, Ricardo de Mello acabou por ser assassinado exactamente pelo seu pioneirismo, isto é, por ter sido o primeiro a abraçar o espírito do jornalismo investigativo tal como ele está hoje definido em toda a literatura que trata da matéria. Nesta literatura também está escrito que o risco de vida numa profissão já de si arriscada por definição, aumenta exponencialmente para os profissionais que de facto optaram por contar as suas histórias com toda a profundidade possível identificando antes realidades problemáticas e prioritárias que carecem de esclarecimento em nome do interesse público e da própria transparência que é exigida das instituições e dos protagonistas, não importa o território em que estejam instalados ou se movimentem. Os dados da UNESCO mostraram que não existem espaços seguros para jornalistas. 91 dos 117 jornalistas assassinados em 2020-2021 foram mortos fora dos seus escritórios e redações. Alguns jornalistas foram assassinados na rua ou nos seus veículos, e alguns foram raptados para serem encontrados mortos. Vários foram mortos na frente de familiares, incluindo seus filhos. A estatística global revela que os jornalistas estão hoje menos seguros em países sem conflito.

O Relatório de 2022 da UNESCO confirma a continuação de uma tendência de longo prazo, desde 2016, segundo a qual os jornalistas se tornaram menos seguros em países que não enfrentam conflitos armados do que em países em conflito. O México já é considerado o país mais perigoso do mundo para os jornalistas trabalharem. O problema maior em países como Angola é que a violência contra os jornalistas é muito difícil de quantificar e mesmo de denunciar. Tem outros contornos menos físicos, mas não menos eficazes do ponto de vista da intimidação pessoal que tem como uma das consequências a auto-censura ou mesmo o abandono da profissão. Dizer que já há muitos anos que não se matam jornalistas em Angola no exercício da sua profissão não deixa de ser uma boa notícia, mas é apenas uma referência que está longe de contrariar o clima de hostilidade que continua a caracterizar o exercício da actividade jornalística sobretudo aquela que é assumida de forma independente e com propósitos mais investigativos; sobretudo aquela que visa escrutinar o desempenho das instituições públicas ou dos seus titulares; sobretudo aquela que se desenvolve fora da capital angolana de onde continuam a chegar relatos na primeira pessoa de jornalistas que se queixam de ser ameaçados de forma recorrente pelos titulares locais da governação provincial.
As referências angolanas da investigação jornalística
Hoje quando se fala de jornalismo investigativo em Angola, algumas perguntas já são sacramentais sendo por isso incontornáveis na hora de se fazer o levantamento da qualidade do jornalismo que o país oferece aos seus cidadãos.Temos ou não jornalismo investigativo no país tal como ele é praticado noutras latitudes? Temos ou não jornalistas investigativos tal como existem noutras paragens onde já há reconhecidos profissionais que merecidamente ostentam este título? Temos ou não projectos editoriais que se dedicam exclusivamente à divulgação de matérias/histórias exclusivas fruto de um trabalho mais aturado dos seus jornalistas? A resposta a estas perguntas, para ser a mais objectiva e abrangente possível, exigiria algum trabalho de campo se quiséssemos ter em conta a realidade nacional no seu conjunto.

Seja como for e com base na navegação que é possível fazer à vista no território do jornalismo investigativo propriamente dito, não temos muitas dúvidas em concluir que o panorama actual em Angola está muito longe de ser satisfatório. As referências são de facto escassas. Depois da fase inicial de Rafael Marques e do seu projecto editorial Makaangola, é difícil hoje identificarmos uma aposta mais exclusiva no jornalismo de investigação, embora já haja ao nível da média on line, mas não só, algumas vozes que se estão a destacar pela profundidade que emprestam ao tratamento das suas histórias. Mais do que a novidade ou a originalidade das histórias publicadas é na densidade factual com que as mesmas são contadas que o jornalismo de investigação se torna mais credível e faz a diferença com o tratamento normal que caracteriza a narrativa jornalística a que estamos habituados. Uma narrativa menos preocupada em querer saber mais do que aquilo que nos é dado a ver ou que as fontes querem que a opinião pública saiba. É aí que alguns especialistas colocam o ganho do jornalismo de investigação, o que naturalmente exige muito mais tempo, sem falar de outros recursos necessários tendo em vista o financiamento da movimentação do profissional que queira de facto ir mais ao fundo. Apesar de ser difícil identificar projectos que tenham por base exclusivamente o conceito e a prática do jornalismo investigativo tal como ele já está consagrado, não se pode dizer que a imprensa angolana, entendida aqui no seu sentido mais lato onde se inclui a rádio e o áudiovisual, seja completamente ausente de boas matérias onde são facilmente visíveis as preocupações do jornalista em conferir ao seu texto a maior profundidade informativa possível de modos a não deixar muitas duvidas particularmente sobre o como e o porquê dos factos/acontecimentos.

Como desafio imediato já não seria mau que os jornalistas angolanos assumissem cada vez mais e melhor na sua prática quotidiana que o jornalismo também é por definição investigativo para não se transformar em mera caixa-de-ressonância dos press-release ou dos discursos de circunstância. A investigação acaba por ser a alma do próprio jornalismo que se quer sempre independente para poder cumprir o seu mandato enquanto intermediário mas também como protagonista na identificação das histórias que realmente contribuem para a resolução dos problemas que são fundamentais. A legislação angolana foi feliz em identificar quais são as referências do que é o interesse público que todas empresas e órgãos de comunicação social têm a responsabilidade de promover como trave mestra que visa assegurar o direito dos cidadãos de informar, se informar e ser informado.

Uma destas referências é a promoção da boa governação e a administração correcta da coisa pública. Destacamos esta por ser aquela em que o jornalismo de investigação mais se inspira e que, no contexto angolano, é realmente a que mais mobiliza as atenções dos jornalistas. No debate sobre o que é realmente o jornalismo investigativo, sente-se que ainda há alguns equívocos ou desentendimentos. Um destes equívocos passa pela confusão entre publicar uma matéria exclusiva fruto de algum “furo” e a realização de uma investigação que naturalmente não se pode esgotar apenas no tratamento de um só documento por mais abrangente que, aparentemente, ele possa ser.

Enfim, é caso para a dizer que em matéria de jornalismo investigativo a procissão em Angola ainda vai no adro.

  • 1. In Um Manual Para Jornalistas Investigativos, UNESCO (2013).

por Reginaldo Silva
A ler | 6 Junho 2024 | angola, investigação, jornalismo, perseguição, poder, Ricardo de Mello