Ou corremos com os golpistas na Guiné-Bissau ou perdemos para sempre o que (ainda?) resta da nossa dignidade enquanto povo/nação

Ou corremos com os golpistas na Guiné-Bissau ou perdemos para sempre o que (ainda?) resta da nossa dignidade enquanto povo/nação O dilema que hoje atravessa a Guiné-Bissau já não é uma questão de escolher entre duas propostas políticas; há muito que se trata de uma questão de posicionamento entre dois caminhos claros para o país: o da verdadeira transformação política, que exige esforço, lucidez e solidariedade; e o da encenação política, que conduz à servidão, à decomposição moral e à barbárie banalizada.

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09.12.2025 | por Amadú Dafé

A indecência funcional e a violência discursiva na era pós-colonial

A indecência funcional e a violência discursiva na era pós-colonial A indecência política é, por isso, uma forma de analfabetismo moral deliberado. Ela não falha em compreender. Recusa simplesmente compreender, porque sabe que a incompreensão rende mais. E aqui, justamente, um olhar histórico mais longo, como o de Norbert Elias – um sociólogo alemão – ajuda-nos a compreender a profundidade desta regressão. No processo civilizacional, Elias mostra que a sociabilidade moderna assenta na internalização gradual do autocontrolo dos afectos. A boa educação não é ornamento, mas sim uma espécie de tecnologia de convivência. É através da contenção dos impulsos, da modulação da agressividade e da capacidade de adiar a resposta emocional que os indivíduos se tornam socialmente fiáveis. A civilidade é, neste sentido, uma conquista frágil, sempre ameaçada e sempre em disputa. Mas o projecto colonial europeu introduziu uma distorção decisiva que consistiu nos colonizadores exigirem de si elevados padrões de autocontrolo na relação entre pares europeus, mas suspenção desses padrões na relação com os povos colonizados.

Mukanda

09.12.2025 | por Elísio Macamo

Morte, poesia, comunismo - Heiner Müller, trinta anos depois

Morte, poesia, comunismo - Heiner Müller, trinta anos depois Resgatar Heiner Müller trinta anos depois da sua morte é um exercício arriscado. Desde logo porque o mais cómodo será olhá-lo na forma fetichizada de um autor oracular. Como é habitual a propósito da evocação de autores mortos, poderíamos cruzá-lo com o nosso tempo começando cada frase por «Como previu Heiner Müller…». Seria um exercício sem dúvida eficaz para efeitos de validação pelas intelligentsias académicas, literárias ou militantes, sempre prontas a legitimar a sua inércia pela idolatria dos seus mortos convertidos em bonecos de cera. Fazê-lo com Müller seria, no entanto, traí-lo, no mesmo sentido em que o próprio entendia que a sua relação com Brecht só poderia ser crítica. Andar à procura de uma realidade que confirmasse as supostas previsões de Müller não passaria de um exercício vazio, até porque o seu gesto foi precisamente o contrário de uma tentativa de descrever a realidade.

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08.12.2025 | por Fernando Ramalho

Que nuances perfazem relações inter-raciais?

Que nuances perfazem relações inter-raciais? Tudo isto significa que todas as relações inter-raciais são permeadas por hierarquização racial, exotização ou fetichização? Não. Embora colocar o Outro como fetiche ainda seja uma realidade, não acredito que todas as relações inter-raciais partam desses princípios. Existem relações saudáveis, onde as pessoas fazem o caminho de aprender a olhar para Outrem sob novas formas de ser e estar no mundo, sob uma perspetiva humana. Conheço relações inter-raciais onde há compromisso real com práticas antirracistas, com justiça e equidade social em todos os níveis. Compromisso com o amor.

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08.12.2025 | por Leopoldina Fekayamãle

Amanhã é Outro Dia: Anatomia de um Golpe de Estado

Amanhã é Outro Dia: Anatomia de um Golpe de Estado No fundo, a Guiné-Bissau continua a ser governada por aquilo que não vemos claramente: uma sombra persistente que organiza, redistribui e reconfigura o poder conforme os seus próprios interesses. Enquanto essa sombra existir — e enquanto as armas forem a gramática da política — qualquer tentativa de transição democrática plena será sempre interrompida, adiada ou revertida.

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07.12.2025 | por Dosmi Lenov

Memórias da COP30 – dança la gringa

Memórias da COP30 – dança la gringa Se cada um dos cerca de 50 mil participantes creditados que se renderam ao nosso kakiado levarem consigo um pouco das nossas urgências – principalmente aquelas que ficaram de fora dos documentos da conferência – e se unirem às nossas lutas além da absolutamente linda Marcha Pelo Clima da Cúpula dos Povos que levou mais de 70 mil pessoas às ruas de Belém, temos uma vitória e ainda mais motivos para fazer os gringos dançarem. Afinal de contas, somos os melhores em receber. E queremos dançar, também.

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03.12.2025 | por Gabriella Florenzano

Memórias da COP30: os documentos

Memórias da COP30: os documentos a COP de Belém entrou para a história por, na primeira vez, a convenção apresentar um Plano de Ação de Gênero de Belém (Belém Gender Action Plan 2026–2034), documento que reconhece que mulheres e meninas, incluindo indígenas, migrantes, com deficiência, agricultoras familiares e residentes de áreas rurais e remotas, sofrem impactos diferenciados da crise climática e, ao mesmo tempo, têm papel central como agentes de mudança. Também pela primeira vez, documentos oficiais da conferência mencionam afrodescendentes, reconhecendo vulnerabilidades específicas e a necessidade de políticas que considerem populações historicamente marginalizadas.

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26.11.2025 | por Gabriella Florenzano

Memória, cinema e reparação: entrevista a Dulce Fernandes sobre Contos do Esquecimento

Memória, cinema e reparação: entrevista a Dulce Fernandes sobre Contos do Esquecimento Há uma intenção clara de trabalhar a memória como gesto reparador - um resgate, uma reconstrução, uma reaproximação. Uma preocupação em lembrar os mortos que não tiveram direito a um ritual de enterramento, em assinalar os lugares onde foram descartados, em recuperar os números concretos do tráfico transatlântico, e em mostrar como os espaços que hoje habitamos continuam a ser atravessados por esse passado. Trazer tudo isso para o presente, para a contemplação do agora, é para mim, enquanto cineasta, um gesto de reparação. Mas há, também, uma dimensão ainda mais específica: o filme lida com a memória de 158 pessoas cujos restos mortais foram encontrados naquele local. E nesse sentido, a reparação é concreta, dirigida a essas vidas que foram apagadas.

Cara a cara

25.11.2025 | por Marta Lança

Césaire, o insular que escrevia em movimento

Césaire, o insular que escrevia em movimento A sua crítica à hipocrisia europeia - “A Europa é indefensável” - desmonta o seu falso universalismo e denuncia a violência civilizatória inflingida pelo Ocidente. No "Discurso sobre o Colonialismo" relembra como o nazismo, que horrorizou a Europa, em grande parte replicava métodos já normalizados nas colónias, advertindo sobre a tendência irracional para assassinar que acompanha certas formas de dominação. Felwine Sarr acrescenta que foi o encontro com o “rosto hediondo do outro”, através do sistema colonial a marcar profundamente a modernidade ocidental ocidental.

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24.11.2025 | por Marta Lança

Memória Fantasma, uma exposição de Yonamine

Memória Fantasma, uma exposição de Yonamine Trabalhando com cartão, Yonamine recupera o papel e o passado, trazendo-os de volta e dando-lhes um novo brilho. Memória Fantasma, tal como o jornal da parede tão comum em 1975 e 1976 na Angola recém-independente, reforça o papel, torna-o vertical, dá-lhe uma espinha dorsal. Aplicando pressão, cortando a superfície, Yonamine transforma os media num meio — o meio da sua arte, o meio que canaliza os espíritos. Não varras à noite, para não chamar os kalundus, dizem em Luanda. Em todo o mundo, temos varrido à noite. Espíritos inquietos possuem-nos.

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17.11.2025 | por Marissa Moorman e Natxo Checa

Uma galinha em cima de um burro que quer ir à praia

Uma galinha em cima de um burro que quer ir à praia Ali, Aqui é herdeiro dessas linhagens, mas faz algo novo, ao ser uma ficção comunitária plena. Não apenas filmada com a comunidade, mas por ela. A autoria distribuída (com inúmeros nomes nos créditos de autoria - vai além do gesto simbólico, para se transformar num modo de produção e de ética. É o contrário do “outsider artístico” a capturar a periferia para consumo urbano. É um território periférico escrevendo-se a si mesmo. Formalmente, o filme abraça um realismo leve, sensorial, quase táctil. Planos que se deixam ficar, luz natural, cortes que parecem respirar com as personagens. Nada aqui procura “estetizar” a pobreza - o erro frequente de realizadores de uma classe média e do centro filmam periferias.

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17.11.2025 | por Pedro José-Marcellino aka P.J. Marcellino

Zineb Sedira: ainda aqui sem saber que caminho tomar

Zineb Sedira: ainda aqui sem saber que caminho tomar Foi esse contexto histórico de trocas políticas e utopias que inspirou a artista Zineb Sedira a desenvolver Standing Here Wondering Which Way To Go, um projeto multimídia que explora sonhos emancipatórios, redes transnacionais e noções de convívio. O título da exposição refere-se a uma canção interpretada pela cantora afro-americana Marion Williams no Festival Pan-Africano de Argel, remetendo-nos para o espírito de solidariedade e resistência global dos anos 1960 tão presente na Argélia recém-independente. Dividida em quatro "cenas", a exposição também celebra a cultura em suas diversas formas como uma ferramenta vital para a mobilização social e a consciência política. Do ponto de vista da carreira da artista, este projeto expande e reforça o notável trabalho de Sedira em torno do arquivo, concebendo-o como um espaço de movimento, ação e interação onde narrativas autobiográficas, documentais e históricas se justapõem.

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13.11.2025 | por Amanda Tavares

Um sonho verde

Um sonho verde Penso nas pessoas talentosas que não têm acesso aos holofotes do mundo e que, no seu quartinho à noite, inventam músicas ao violão, e que por vezes em cima de escombros e entulho, ou entre paredes partilhadas com famílias inteiras, esboçam a lápis a sua visão. Que por falta de dinheiro, saúde, ou oportunidade, jamais terão uma plateia. Que paisagens percorrem as suas mãos quando tateiam o escuro? Que navios e estrelas, fogueiras e catedrais povoam os seus sonhos neste preciso momento? E penso nestes macacos que observei, fêmeas que migram e vagueiam durante anos isoladas na floresta, a quem foi roubado o direito de ter uma família. Com o consolo de saber que a natureza é a verdadeira guardiã do tempo, será somente ela a trazer a lava para cobrir as mãos, e a fazer vingar de novo o verde sobre o asfalto.

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12.11.2025 | por Rita Brás

São Tomé e Príncipe: querer dar-se a ver

São Tomé e Príncipe: querer dar-se a ver Um conjunto de quinze pares de pés moldados em betão (material bem conhecido do artista), com diferentes tamanhos e texturas, amarrados e suspensos por arame, sugerem a silhueta de um barco. Subitamente vêm-nos à memória representações antigas da escravatura ou da migração forçada de cabo-verdianos, a partir do séc. XIX, para trabalharem nas roças de STP. A contemporaneidade também está presente, ou não fossem, também estes, os pés dos “trolhas” nos estaleiros lisboetas, os pés dos migrantes em situação precária.

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06.11.2025 | por Tiago Lança

A Negra

A Negra Ela sentia-se detentora de um poder incomparável pela posse desse poder inabalável da Memória. Esta, como dispositivo, convocava em permanência o reatamento do jogo enquanto forma de auto-examinação, registo de progressão, e desejo de auto-superação performática no exercício de humilhação do poder masculino. Não lhe interessava o vídeo como mera documentação, mas como factor de Evolução, não como memória dos parceiros, mas como mecanismo de Auto-Avaliação. Não como pura pornografia, mas como Auto-Biografia. E como possibilidade futura de Video-Arte Documental. O vídeo é o instrumento da Relatividade. Da relatividade do Tempo, da relatividade da Realidade, e da relatividade do Poder, dependendo de quem o manuseia. Tal é o seu Poder, argumentava ela. Tendo estudado em Viena, ela sabia que o grande trauma Nazi não é proveniente da memória das vítimas, mas da memória dos arquivos, das imagens documentais, das imagens reais, fotográficas e fílmicas. E Trauma era o propósito último do seu Hipornorealismo. Ela escrevia sobre o que não via.

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04.11.2025 | por Brassalano Graça

“Vejam um Preto em chamas”, filme Complô de João Miller Guerra

“Vejam um Preto em chamas”, filme Complô de João Miller Guerra No seu acto final, Complô não poupa socos, mas vai com luvas de lã. De volta ao estúdio –– esse refúgio improvisado entre blocos de prédios algures na Margem Sul – pressentimos a mudança de tom. A raiva dá lugar à ternura, talvez porque a ternura sejá mais poderosa. Ghoya grava uma faixa para a companheira. A sua voz abranda, amacia. “Baby, nós merecíamos um filme,” ele diz.

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02.11.2025 | por Pedro José-Marcellino aka P.J. Marcellino

Povo Krahô inaugura primeira sala de cinema em Terra Indígena do Brasil

 Povo Krahô inaugura primeira sala de cinema em Terra Indígena do Brasil O cinema é diferente — é um lugar de encontro, onde tem espaço para nossas memórias e nosso olhar. Quero que as crianças Krahô possam lembrar sempre dos mais velhos e que, sentadas no nosso Cinema Comunitário, possam imaginar o futuro a partir da aldeia e de nossas imagens.” — Ilda Patpro Krahô O Cinema Comunitário Krahô está localizado na aldeia Koprer e terá uma programação regular organizada pela comunidade. Está também em construção um acervo audiovisual, reunindo quase um século de registros sobre os Krahô e outros povos indígenas do Brasil. Esse material ficará disponível em uma rede interna da aldeia, podendo ser projetado a qualquer momento na tela do cinema.

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02.11.2025 | por João Salaviza e Renée Nader Messora

Outra Míngua, que é também a nossa

Outra Míngua, que é também a nossa Em termos formais, esta obra configura-se como uma novela, no entanto, a restrição genelógica não é algo que se conforme a este texto rebelde e híbrido (resgatando um termo da autora, contíguo a um “mistifório"), pois perpassam por aqui vários estilos literários, desde o meramente narrativo ao poético e ao epistolar, até ao dialógico-dramático, assinalado, no corpo do texto, pelo traço (–) indicador de falas, usualmente utilizado na escrita de peças de teatro.

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02.11.2025 | por Luís Carlos S. Branco

"O favelado, no fundo, não é visto como alguém que realmente merece viver"

"O favelado, no fundo, não é visto como alguém que realmente merece viver" Os verdadeiros chefes do narcotráfico, os de colarinho branco, estão entre a Faria Lima, a Barra e a Tijuca, não nas favelas.” É a mesma lógica que se vê com o garimpo na Amazónia: não são os garimpeiros, os buscadores de ouro, que se enriquecem - os lucros não ficam no território. Descem para o Sul do país ou cruzam as fronteiras, indo parar em bancos suíços ou do Norte global. Celso Athayde: “A guerra no Rio é antiga — e o mais triste é que sempre foi contada com certo romantismo, como se o crime fizesse o que o Estado não faz. Enquanto isso, o crime da favela, o do asfalto e o político - o dos colarinhos brancos - continuam crescendo. A regra é velha: os policiais morrem, os bandidos morrem, as famílias choram, e os governos não se importam.

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30.10.2025 | por Laura Burocco

4 cartas e dois bilhetes inéditos de José Luandino Vieira para Mário Pinto de Andrade

4 cartas e dois bilhetes inéditos de José Luandino Vieira para Mário Pinto de Andrade A correspondência revela (de momento) ― excepto a transcrição de um rascunho manuscrito e muito rasurado de carta, sem data e não assinado, em resposta à primeira ―, apenas a parte dela enviada a Mário Pinto de Andrade por José Luandino Vieira, após a libertação do Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. A sua divulgação pública, aqui, deve ser tomada como um pequeníssimo contributo de memória histórica e de retrato fidedigno sobre o que foram, como foram, quem protagonizou e que preços se pagaram nas lutas de libertação pela conquista da independência nacional de Angola, neste ano em que se celebram os seus 50 anos.

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30.10.2025 | por Zetho Cunha Gonçalves