Há liberdade de imprensa em Angola?
Já começa a ficar cansativo todos os anos por ocasião do 3 de maio, Dia Internacional da Liberdade de Imprensa, ouvirmos a mesma pergunta ser colocada e a alimentar os mais diferentes debates e entrevistas que preenchem o espaço público que é gerido pelos “média”.
É a famosa questão retórica com a particularidade de todos terem uma resposta que acaba por não ser a mesma, podendo até ser contraditória sem ninguém estar propriamente errado na avaliação feita se quisermos ser salomónicos.
A sempre movediça realidade angolana tem destas particularidades. É a tal casa onde todos os que ralham acabam por ter sempre a sua razão, contrariando de algum modo a lógica original do conhecido provérbio popular.
É claro que, em nosso entender, já há liberdade de imprensa em Angola, sendo certo, tal como uma vez disse Rafael Marques nos tempos do “baton da ditadura”, quando ele era o inimigo público número 1 do “eduardismo”, que esta liberdade fundamental, que continua em construção nos nossos dias, foi sempre uma conquista dos jornalistas/sociedade civil e não uma dádiva do poder político. A liberdade de imprensa foi de facto imposta em Angola no melhor sentido que esta imposição implica por ser natural, por ter efectivamente a vercom a essência da pessoa humana. Segundo Aristóteles o homem é antes de mais um “animal político” porque na natureza é o único que sabe comunicar através da linguagem, sendo esta a grande diferença que o separa dos restantes animais. Convenhamos que é muito difícil fazer política sem saber comunicar devidamente uns com os outros. Na verdade é mais uma missão impossível.
Desse tempo, estamos a falar dos anos 90, quando a liberdade de imprensa ainda engatinhava receosa até da sua própria sombra, também nos recordamos aqui do ministro que dizia que Angola era “um paraíso da liberdade de imprensa” e do próprio Presidente Eduardo dos Santos (JES) que uma vez foi a Washington dizer que a forma como o (des)tratavam nos semanários independentes de Luanda, que ele apelidou de pasquins, era a melhor prova de que havia liberdade de imprensa em Angola. Provavelmente JES não conhecia a gloriosa história do jornal “Pasquim” que se editou no Brasil durante os tempos da feroz ditadura militar.
Se dependesse só deste poder político, que é o mesmo que governa o país há cerca de 50 anos, parece-nos que muito poucos observadores teriam dificuldade em adivinhar que hoje as coisas seriam bem diferentes neste e noutros domínios que se relacionam com os direitos, liberdades e garantias fundamentais.
Bem diferentes, a projectar uma realidade politicamente muito mais controlada do que aquela que hoje temos, onde a liberdade de imprensa é diariamente confrontada com as famosas ordens superiores, com a auto-censura e com o fantasma da retaliação, que continuam a condicionar fortemente o desempenho independente do sector mais poderoso da paisagem mediática angolana que é aquele que é integrado pelos órgãos públicos.Na verdade mais governamentais do que públicos, depois de já terem sido fortemente partidarizados durante os 17 anos do monolitismo quando era o Partido/Estado que mais ordenava e como ordenava.
Já lá chegaremos para tentar explicar melhor como é que este controlo político se faz e como é que através dele a liberdade de imprensa em Angola acaba por estar parcialmente “sequestrada”, sobretudo durante as campanhas eleitorais que é o período mais sensível da vida de qualquer pais democrático que se preze onde o tratamento igual dos candidatos é uma exigência que deve ser levada muito a sério e respeitada antes de mais pela comunicação social. A legislação angolana foi muito feliz na obrigação expressa do dever de imparcialidade que colocou a toda a comunicação social/jornalismo tendo em vista o tratamento das campanhas eleitorais.
A tendência restritiva da legislação sobre a imprensa
De algum modo e com todo o controlo estratégico que continua a ter da situação, é o poder político que tem andado a reboque nesta movimentação rumo à liberdade ideal, desde que Angola adoptou a lei de imprensa que já tem exactamente 33 anos de estrada com as diferentes revisões e actualizações que tem vindo a sofrer.
Um percurso que tem tido uma estranha tendência restritiva como fez notar este ano o antigo jornalista do “Jornal de Angola” e hoje deputado do MPLA, o jurista António Paulo, que falava à margem de uma palestra sobre o 3 de maio de que foi prelector.Na primeira e portanto já histórica versão desta lei aprovada ainda pelo parlamento monopartidário, a Assembleia do Povo e promulgada a 13 de maio de 1991 pelo Presidente José Eduardo dos Santos, ficou escrito preto no branco (art.4º) que a liberdade de imprensa “não está sujeita a qualquer forma de autorização” e que “nenhum cidadão pode ser prejudicado na sua vida privada, social ou laboral em virtude do exercício legítimo do direito à liberdade de expressão do pensamento através da imprensa”. Como consequência desta tendência restritiva este artigo 4 praticamente desapareceu da legislação vigente numa altura em que o Executivo apossado por uma verdadeira febre controlista provocada pela concorrência do espaço digital tenta regulamentar (no pior sentido) tudo e mais alguma coisa a fazer lembrar-nos, passe o exagero da analogia, o Dom Quixote de Cervantes a combater os moinhos de vento.
De facto e de jure no território da liberdade de expressão nunca houve “almoços grátis” em Angola, mas tem havido avanços e recuos, tem havido sobretudo muitos equívocos e desentendimentos quanto baste, visíveis antes de mais numa praxis decepcionante porque contraditória do próprio poder político através do Governo e do legislativo.
Tudo o que temos hoje no território da liberdade de expressão/liberdade de imprensa/liberdade de informação não seria possível se as pessoas tivessem ficado sentadas à espera que as coisas acontecessem automaticamente na sequência da abertura política em 1990/91 e da realização das primeiras eleições multipartidárias de 1992.
Hoje, depois das armas se terem calado há 22 anos e com quatro eleições gerais já realizadas, o cenário de Angola vir a ser governada por uma solução política diferente daquela que o país tem conhecido desde a sua independência é cada vez mais provável. Como referência mais recente a alimentar esta hipótese estão os resultados do último pleito de 2022 com a histórica e copiosa derrota que o partido governante sofreu na capital que é a maior praça política do país e que de longe reúne muito mais eleitores se comparada com os restantes círculos provinciais, embora na lei angolana isto acabe por não fazer muita diferença porque todas as circunscrições elegem o mesmo número de deputados num total de cinco.
No mínimo e mesmo que esta solução política passasse apenas por um próximo resultado que obrigasse o país a entrar em modo de “geringonça”, também haveria poucas dificuldades em adivinhar que o seu impacto na gestão mediática seria de imediato sentido com uma ruptura na forma como a comunicação social publica tem vindo a ser enquadrada o que por si só faria toda a diferença na avaliação do estado da liberdade de imprensa.
A quem mais aproveita o debate desfocado
Mais de 30 anos depois da comunidade internacional ter adoptado o 3 de maio, a questão que hoje se deve colocar em Angola já não devia ser se há ou não liberdade de imprensa o que só nos pode conduzir a um inconclusivo debate sobre generalidades que é o que tem acontecido nesta ocasião.
É ponto assente que debates gerais e inconclusivos interessam e aproveitam normalmente os “infractores”, se nos é permitido o uso deste qualificativo neste contexto. No caso concreto de Angola a parte que mais se aproxima da transgressão ou a que mais transgride é aquela que efectivamente controla politicamente a parte de leão da comunicação social que é o seu sector público.
E é exactamente aqui, na gestão deste estratégico sector, que está o principal problema e o maior desafio da liberdade de imprensa em Angola.
Constitucionalmente e tendo em vista garantir a liberdade de imprensa e de informação, o Estado angolano comprometeu-se em assegurar “a existência e o funcionamento independente e qualitativamente competitivo de um serviço público de rádio e de televisão”.
Este serviço existe, é financiado a cem por cento pelos contribuintes, é dominante em termos de cobertura do território nacional, mas a sua gestão editorial não está em conformidade com as melhores práticas internacionais que se recomendam quando em causa estão projectos do género. Para sermos ainda mais concretos é no modelo de gestão editorial da comunicação social pública dependente directamente do Executivo que está o busílis da maka.
É aí que o foco deve ser colocado se quisermos discutir realmente o estado da liberdade de imprensa em Angola.
Um pouco à semelhança do que faz anualmente a UNESCO, a agência das Nações Unidas que promove a jornada internacional do 3 de maio, também em Angola devia haver algum consenso na definição de um tema mais especifico para o país mediático no seu conjunto reflectir sobre o estado da liberdade de imprensa em concreto. Assim, ao invés de todos os anos andarmos com os microfones em riste a perguntarmos às pessoas se há ou não liberdade de imprensa, seria, certamente, muito mais produtivo debaterem-se questões concretas como por exemplo a forma como a televisão faz a cobertura da actividade dos partidos políticos com assento parlamentar ou como as rádios, que já são bastantes, tratam das reclamações que os cidadãos fazem chegar ao poder administrativo ou ainda quais são os obstáculos económicos e financeiros que actualmente mais condicionam o surgimento de novos projectos editoriais. Identificar um tema consensual para, em Angola, se debater o estado da liberdade de imprensa está muito longe de ser um desafio fácil de ultrapassar pela polarização existente, mas não deixa de ser uma orientação pertinente que podia conduzir-nos a uma outra reflexão sobre o país real nesta data em que existe uma predisposição maior para este tipo de levantamento.A título de sugestão, este consenso até poderia ser tentado no próprio parlamento com a realização de uma plenária anual consagrada exclusivamente ao estado da liberdade de imprensa no país tendo como referência um tópico mais específico.
A não ser possível este consenso mais abrangente, se cada organização profissional ou instituição pública ou privada relacionada com a gestão do sector identificasse anualmente uma tema mais especifico e depois elaborasse um relatório com as conclusões, estamos certos que os resultados seriam bem mais produtivos na avaliação do estado da liberdade de imprensa em Angola.