Quando dois livros se propõem identificar o que correu muito mal nos 50 anos de independência

Em qualquer país do mundo, passe o exagero, que é da nossa inteira responsabilidade, seria um acontecimento extraordinário o lançamento de dois livros no espaço de um ano sobre o funcionamento do aparelho securitário, por alguém que se apresenta como sendo membro activo e afecto ao topo da sua hierarquia, o que até agora nunca foi posto em causa por quem de direito.

Pelos vistos, em qualquer país do mundo menos em Angola. O autor dos livros é um angolano natural de Malange que continua a viver no país que o viu nascer já lá vão 54 anos, tendo o mesmo prometido acrescentar uma terceira obra ao seu portfólio no âmbito de uma reflexão sobre o estado da nação que se enquadra na celebração dos 50 anos de independência que se vão assinalar a 11 de Novembro deste ano.

Miguel ÂngeloMiguel Ângelo
Chama-se Miguel Ângelo de Oliveira Ganga de seu nome completo, sendo mais conhecido apenas por Miguel Ângelo, e fácil de localizar nas redes sociais como Facebook e o Instagram onde mantém presença regular, embora discreta.
É analista para questões migratórias, inteligência económica e social, e é sociólogo de formação académica, estando actualmente a doutorar-se em Direito de Segurança numa universidade portuguesa, de acordo com a informação que o próprio tornou pública.
Os referidos lançamentos aconteceram na capital, a cidade de Luanda.
Estamos a falar dos livros Estado de Violência-Violência de Estado, Uma Reflexão sobre a Realidade Política, Económica e Social de Angola (2023) e Angola na Era da Pós Verdade, O Estado de Desalento e o Desalento do Estado (2024).
Sabemos que o primeiro foi apresentado a 30 de agosto do ano passado, tendo o sociólogo Paulo Inglês sido convidado para os devidos efeitos, enquanto que o segundo já está a circular e a ser vendido, de acordo com a informação prestada pelo autor na sua página do Instagram.
No prefácio do primeiro livro, que é assinado pelo antigo Primeiro-Ministro, Marcolino Moco, fica-se logo a saber que Miguel Ângelo “é um homem que, para além das suas valências como académico e estudioso, se formou e ‘cresceu’ dentro do nosso “Serviço de Informações”. Desde logo, pode depreender-se o valor desta obra. Pelo menos para quem quer que se interesse pela reorientação daquilo que tem sido o desvio, claro, na generalidade, desses serviços, dos seus nobres e indispensáveis objectivos, nestes tempos que, terminadas as guerras civis, deveriam ser aproveitados para a consolidação do proclamado Estado Democrático e de Direito, há mais de 30 anos.”
Marcolino Moco considera que Miguel Ângelo “soube, como mostram os seus escritos, harmonizar uma não negligenciável experiência laboral e profissional com um punhado de valências de natureza académica.”

Para Marcolino Moco, o livro “denuncia uma grande coragem da parte do seu autor”, tendo em conta o contexto institucional angolano que, como todos sabem, continua a ser muito pouco receptivo a incursões deste género, sobretudo em sectores mais sensíveis, onde o destaque vai naturalmente para as áreas da Inteligência/Segurança.


No segundo livro, e para o mesmo exercício, o autor convidou o frade capuchinho Joaquim José Hangalo, actualmente a viver em Roma, que se destaca nas redes sociais pela forma frontal e crítica com que tem abordado a realidade política do país, em acalorados debates com os seus adversários.
“Em Angola na Era da Pós-verdade, Miguel Ângelo, sem medo das mil possíveis espadas de Dâmocles na caverna imaginada por Platão, busca e oferece razões para se fugir da verdade do rebanho e resgatar a história de Angola do “perigo de uma história única” impingida durante anos, e que levou Angola à beira do precipício numa noite de negrume e violência, e a insana teimosia parece não pretender ouvir as vozes que apelam para a mudança de rumo sob pena de se acabar num descalabro pior que o que aparece descrito no inferno dantesco”.
Como não podia deixar de ser, no seu prefácio o Frade Hangalo ressalta a pessoa do todo-poderoso General Fernando Garcia Miala que acaba por ser o maior protagonista deste segundo livro de Miguel Ângelo.
Este alto oficial militar é atualmente o rosto mais visível da secreta angolana, sendo-lhe atribuído um poder que em muito ultrapassa as suas responsabilidades institucionais.
Para além deste poder também lhe são atribuídas ambições políticas que apontam bem lá para cima da hierarquia do próprio Estado angolano.
Até ao momento, o silêncio tem sido a melhor resposta de General Miala para fazer face a estes e outros rumores que, com alguma intensidade, circulam no ecossistema mediático angolano.
Se o autor optasse pelo género romance para escrever o livro, teríamos aqui, certamente, uma epopeia ao contrário, onde o protagonista é o maior vilão de uma acção bastante movimentada pelos corredores/bastidores do poder angolano que começou ainda no tempo do falecido Presidente José Eduardo dos Santos.
Durante o “eduardismo”, Miala acabaria por cair em completa desgraça, tendo sido condenado a uma pena de prisão efectiva de 4 anos, dos quais acabou por cumprir dois.
Posteriormente, e já na vigência do consulado de João Lourenço, Garcia Miala viria a ser completamente reabilitado e novamente catapultado para a mais elevada hierarquia da secreta angolana.


Nesta densa e intrigante trajectória do homem, temos sem dúvida matéria-prima mais do que suficiente para um extraordinário romance baseado em factos reais que o mestre Gabriel Garcia Marques, se fosse vivo, não iria precisar de acrescentar mais nada em termos de imaginação para além de lhe emprestar a sua brilhante competência narrativa.
Ninguém que tenha lido o segundo livro de Miguel Ângelo pode efectivamente passar ao lado do seu protagonista o que, por acrescidas razões, foi o que aconteceu com o JJ Hangalo na sua condição de prefaciador de serviço.
“Uma figura que de volta em volta é chamada para a cena, é o General Fernando Miala, responsável pelo Serviço de Informações e Segurança do Estado. Fiquei surpreendido com tudo o que o autor traz à tona e como traz à tona. É uma das partes mais intrigantes e que exigem tomar muitos copos de água. Não faltou a tentação constante de ligar para o autor e perguntar sobre o que está escrito. Mas esse não é o papel do prefaciador. O papel do prefaciador é animar, conversar com os leitores e despertar o interesse. O juízo clemente ou inclemente cabe ao leitor.”
É daqueles livros, aponta JJ Hangalo, “que podem separar as águas, marcar um antes e um depois, sobretudo porque o autor, completamente, se encaixa na moldura do homem revoltado de Albert Camus, que partindo dele mesmo e pensando nos e com os outros angolanos, identifica o mal do antagonismo partidário e militante como um grande empecilho para Angola dar um salto de qualidade e aponta para a verdade e a reconciliação como o caminho certo para o futuro de Angola. Em Angola, a política nunca.”

Com o dedo apontado à comunicação social, mas não só

Enquanto se aguarda pelo terceiro, estes dois livros de Miguel Ângelo pelo seu conteúdo político explosivo são efectivamente um acontecimento inédito no mercado editorial angolano, cerca de 50 anos depois do país se ter tornado independente.
Não temos memória de, em Angola, alguém pertencente à Segurança de Estado ter feito, e como o fez, uma ruptura tão grande com o regime, com contornos claros de denúncia politico-constitucional, pois toda a sua narrativa é feita na perspectiva de quem entende que, em Angola, o Estado Democrático de Direito está seriamente condicionado por interesses pessoais, ou de grupo, no âmbito de uma estratégia maquiavélica onde o fim maior que é a eternização do actual poder rubro-negro, justifica os meios. Isto passa, nomeadamente, pela manipulação da comunicação social e do próprio processo eleitoral.
Em Angola, tal como deixámos entender no início deste texto, o autor foi ignorado pela grande média que continua a ser a pública, com destaque para as televisões que, pela sua vocação, até devia ser aquela que mais abertura deveria dar ao trabalho produzido pelo autor.
No caso vertente, a referida vocação tem a ver com a promoção da liberdade de expressão, tal como ela consta do próprio ordenamento jurídico angolano, o que contrasta de modo gritante com o desempenho da denominada média pública que, na verdade, continua a ser efectivamente uma comunicação social governamentalizada até ao tutano, por mais que nos esforcemos por ver nos intervalos alguns progressos, que não resistem minimamente a uma avaliação mais abrangente e prolongada apenas no espaço de alguns dias.

Para Miguel Ângelo, “o papel da comunicação social desde o início da independência tem sido determinante para o MPLA assumir o domínio da situação. No entanto, da mesma forma que contribui para a manutenção do status quo, tem sido de igual modo responsável pelas maiores perdas e desgraças do Povo angolano. Vimos que a comunicação social tem sido uma das maiores aliadas políticas do MPLA e dos agentes externos que apoiam a disseminação de mentiras, bem como se presta ao papel de entorpecer a veracidade dos factos, para se semear o caos.” 
No seu diagnóstico o autor parece não ter qualquer tipo de dúvidas em apontar o dedo e a chamar os bois pelo seu nome.
“A comunicação social e os órgãos do sistema de justiça figuram entre os organismos, que a acção partidária faz questão de subjugar, subverter e amordaçar. Concorre para esta acção de captura e mordaça, a descaracterização do Serviço de Informações ou do sistema de Inteligência, no seu todo, que passa a actuar como agente de defesa dos interesses do Partido-Estado. Esta combinação é um verdadeiro entrave para o avanço do país. É um perigo iminente, para a vida política de quaisquer dos actuais membros do Governo. Estranhamente, mesmo com o despojo de alguns membros do Governo do Presidente Eduardo dos Santos, não há consciência de que é preciso mudar de prática. Ademais, basta ver, como é que, ao longo dos anos, a emergente imprensa livre privada foi não só combatida, ferozmente, como banida do mercado e, mantém-se na agenda partidária a total eliminação da imprensa livre do espectro da comunicação social.”

Neste quadro, a única esperança para Miguel Ângelo são as redes sociais.

Apesar de as redes sociais serem hoje um veículo e recurso imprescindível de divulgação de informação, cuja concorrência é impossível travar. As redes sociais tanto podem contribuir para a divulgação de informações que defendem e valorizam a moral pública, como para acelerar a degradação dos valores da sociedade. 

por Reginaldo Silva
A ler | 23 Fevereiro 2025 | angola, comunicação, estado, Independência, redes sociais, segurança