Jornalismo vs produção de conteúdos no contexto angolano
Cada vez se discute mais as fronteiras da coabitação entre o jornalismo profissional e os restantes protagonistas que trabalham com informação, seja na média convencional seja nas diferentes plataformas e projectos que hoje integram o espaço digital digital/internet.
Há mesmo vozes mais entusiasmadas que entendem que o jornalismo angolano de referência vive já uma situação de acantonamento diante desta avalanche de jovens comunicadores que nascem todos os dias como cogumelos nas redes sociais com a edição de vídeos mais ou menos curtos, mas não só.
Chamem-lhes produtores de conteúdos, chamem-lhes influenciadores digitais, chamem-lhes o que quiserem, porque nomes não faltam, mas o que não misture com o jornalismo propriamente dito. Apesar das semelhanças que a actividade de uns e outros possa ter, não são jornalistas. O mais grave é que, num certo discurso oficial, também se começa a colocar tudo no mesmo saco, a ponto de hoje termos, nos órgãos de comunicação social públicos, os administradores para a área dos conteúdos. Aí a informação/jornalismo é apenas mais um conteúdo a par do entretenimento, do marketing, dos espaços educativos e por aí além, numa verdadeira salada russa.
Só para recordar, o modelo de organização que vigorava, e creio ainda vigorar, em várias estações de rádio e televisão sempre teve por base a existência de duas direções distintas, sendo uma para a informação/jornalismo e outra para a programação onde cabem todos os conteúdos que preenchem as grelhas. Esta história de transformar o jornalismo em mais um conteúdo indiferenciado tem muito que se lhe diga, pelo que talvez seja melhor começar do princípio, ou seja, pelos conceitos e as definições. Faz-nos lembrar a bastante conhecida história do ovo e da galinha, onde a questão é saber quem nasceu primeiro. Até hoje, pelo que julgamos saber, permitam-nos esta referência bem-humorada, ainda não há uma sentença transitada em julgado sobre esta maka do ovo e da galinha.
No caso em apreço, de um ponto de vista mais histórico as coisas, aparentemente, são bem mais simples no que toca ao apuramento dos factos.
Parece assim não haver muitas dúvidas em relação à precedência do jornalismo sobre os seus novos e dinâmicos concorrentes que actualmente envergam a camisola dos conteúdos para todos os gostos e feitios à procura de ganhar audiências com o angariamento dos famosos likes mais os respectivos seguidores. É uma verdadeira corrida atrás da popularidade a pensarem certamente em ganharem algum dinheiro que é o que mais falta faz nos bolsos dos angolanos, sobretudo se este “kumbú” for em euros ou dólares. Por razões até legais, a começar pela exigência de uma carteira profissional passada por uma entidade pública, o exercício do jornalismo não pode estar no mesmo saco, onde cabem os tais conteúdos e os seus produtores. Em causa estão, antes de mais, as responsabilidades, entre direitos e deveres, que o exercício da actividade implica quer por parte dos seus profissionais quer pelos órgãos.
São responsabilidades que têm vindo aumentar como consequência da entrada em cena e em força do espaço digital através da Internet como ambiente que se vai tornando dominante para quem quer informar e para quem quer ser informado.
Em Angola o acesso dos cidadãos à Internet ainda deixa muito a desejar em termos de cobertura nacional e de acesso individual. Já não se pode, contudo, ignorar a força da comunicação produzida através de meios digitais, sendo certo que este acesso está a aumentar, apesar de todas as dificuldades económicas enfrentadas pelo cidadão comum, que condicionam este tipo de consumo que ainda tem um preço bastante elevado para um país confrontado com taxas de pobreza que continuam a ser preocupantes e com tendências nada simpáticas em relação ao futuro.
É tendo por pano de fundo a influência crescente da Internet/Redes Sociais em Angola e do aumento extraordinário da informação disponível a partir das mais diferentes fontes, que a importância do papel do jornalista entre nós também tem estado a aumentar tal como acontece noutros contextos geográficos.
Trata-se efectivamente, em muitos casos, de uma concorrência desleal e desonesta que acaba até por ser patrocinada pelos dinheiros anónimos que circulam bastidores da política ou dos negócios.
Uma boa parte destes conteúdos mais preocupantes tem a ver com a desinformação politicamente motivada, feita a partir de “laboratórios” que, no caso de Angola, até nem são muito difíceis de identificar.
Em tese, de um ponto de vista mais conceptual, o jornalismo angolano tem tudo para afirmar a sua superioridade qualitativa em relação aos seus concorrentes bastando para tal seguir o guião da própria informação jornalística tal como ele está definida nos manuais, com a resposta ao quê, ao quem, ao onde, ao quando, ao como e ao porquê.
É esta a base da informação jornalística que raramente é tida em devida conta.
Efectivamente, os jornalistas angolanos continuam a oferecer ao público um “produto” que de uma forma geral dificilmente aprofunda ou contextualiza os factos noticiados.
O problema começa até antes, com a própria identificação/selecção das matérias que depois vão dar corpo aos noticiários e aos telejornais.
Na origem deste desempenho pouco satisfatório do jornalismo que se vai fazendo em Angola está, certamente, a falta de independência e liberdade editorial que continuam a fazer morada por estas bandas o que, em grande medida, explica o carácter oficioso do jornalismo que se pratica no sector público da média angolana, que continua a ser dominante, sendo por isso compreensível que os holofotes da crítica lhe estejam apontados. Continua a haver demasiada turbulência na navegação mediática angolana, quando já se devia a estar a voar calmamente e em velocidade de cruzeiro, sem haver necessidade de se fazerem aterragens de emergência, como continua a acontecer, como aconteceu muito recentemente com o voto de protesto que a UNITA pretendeu fazer aprovar no Parlamento contra o desempenho da média pública por violação do que estipula a Lei Constitucional que no seu artigo 17, onde se consagra que todos os partidos têm direito a um tratamento imparcial por parte da rádio e da televisão estatais. Uma iniciativa que, como era mais do que previsível, ficou pelo caminho porque o maioritário MPLA não permitiu que tal intenção se concretizasse, tendo rejeitado de forma limitar o projecto do maior partido da Oposição.
Seja como for, e por mais que as condições externas condicionem o produto final, achamos que a aposta da qualidade do jornalismo está nas mãos de quem o faz, pois sem bons e ousados jornalistas não se chega a um panorama diferente. O défice do profissionalismo e da qualidade ainda é um dos desafios que não está vencido.
Não está, não.
Nas actuais condições, tendo como maior concorrente um novo e estranho “jornalismo” que nasceu nas redes sociais mais como projecto político fragmentado do que qualquer outra coisa parecida, o desafio ainda é maior e mais urgente diante de uma concorrência tão desleal, que nem precisa de sair da cama para fazer grandes reportagens e levar a cabo ainda maiores e mais profundas investigações jornalísticas.