Considerações gerais sobre o bilinguismo literário e o bilinguismo oficial caboverdianos, com especial enfoque na aberração linguística constante do manual de língua e cultura caboverdianas
1. Constitui uma grande novidade das antologias caboverdianas de narrativa ficcional publicadas no período pós-colonial pela Associação de Escritores Cabo-Verdianos (AEC), com destaque para aquela que abrange a prosa narrativa de ficção pós-claridosa, a emergência de duas línguas de labor literário, designadamente o português e o caboverdiano, que, aliás tinham sido já consagradas, no artigo nono da Constituição Política caboverdiana de 1992, como línguas oficiais da República de Cabo Verde, desde a revisão constitucional de 1999, todavia ainda em modo assaz diglótico e, por isso, ainda em demanda de um correlacionamento menos desequilibrado e mais igualitário entre as duas línguas oficiais de Cabo Verde, por forma a poder tornar-se mais profícua, mais frutífera e mais mutuamente vantajosa a coexistência entre a a língua caboverdiana e a língua portuguesano no chão islenho e arquipelágico caboverdiano. Na nossa modesta opinião, o engendramento e a consolidação de um novo modus vivendi entre as duas línguas de Cabo Verde, na feliz expressão da Professora Amália Melo, somente serão possíveis mediante a devida operacionalização do seguinte instrumentário e com a seguinte e sumária fundamentação:
i. A urgente superação da actual e desgraçada situação socio-linguística de diglossia, tenaz e persistentemente ancorada na nossa sociedade e com prejuízos evidentes tanto para a língua portuguesa como para a língua materna caboverdiana, graças à insistente e ignara (se bem que bastas vezes palavrosa) inércia dos políticos de serviço nos poderes instituídos, salvo as devidas e nobres excepções a essa por demais confrangedora e infeliz regra de actuação. Políticos esses que, aliás, por vezes demasiadas e, nalguns casos, aliados a serôdios tradicionalistas apegados a passadistas e regressivas formas de encarar o lugar da nossa língua materna na actual sociedade caboverdiana das ilhas e diásporas, primam pela descrioulização nas suas eloquentes e pretensiosas tomadas de posição de auto-nomeados novos-ricos da língua e nas suas arrogantes oratórias e falas comicieiras de demagogos tribunos da mercancia de promessas eleitorais, da compra de consciências e da mercantilização dos votos dos eleitores e que, alegadamente e a todo o custo, pretendem nobilitar a língua materna caboverdiana mediante o descarado e desaforado aportuguesamento do seu léxico, da sua morfossintaxe e do alfabeto utilizado na grafia das suas palavras crioulas.
Sublinhe-se, nesta concreta circunstância, que essa alienante e desatinada transmutação linguística e essa desafinada transfiguração vocabular não logram todavia atingir, nem de perto nem de longe, os reconhecidos e inovadores méritos e as potenciais virtudes e qualidades transformadoras intrínsecas ao chamado português literário caboverdiano de invenção claridosa, porque consabidamente propulsores da legitimação do surgimento e da consolidação (quer em registo escrito, quer em registo oral) no chão agreste e morábi das nossas ilhas afro-atlânticas e, eventualmente, nalgumas das chamadas ilhas da diáspora da variante caboverdiana do idioma português, actualmente a única língua de Cabo Verde consagrada como plenamente oficial, nos termos do artigo 9º, acima referido, da Constituição Política da República de Cabo Verde. Outrossim, as acima referidas e por demais desqualificadas démarches de abastardamento da língua materna caboverdiana, e cujas expressões oral e escrita podiam perfeitamente ser denominadas criouluguês e/ou portuguiolo, não possuem, nem sequer carregam consigo e em si próprias as virtuosas e jocosas criatividades e inventidades dos programas radiofónicos do célebre Nho Djunga, do anedotário lusófono de Nhu Puxim ou das crónicas literárias de Mari Preta de Nho Djunga e nem tão-pouco dos poemas e de outros textos híbridos, na sua assaz conseguida fusão do português e do crioulo, de Onésimo Silveira e de outros escritores teluricistas caboverdianos.
ii. O encorajamento da institucionalização de um bilinguismo real e efectivo com a consagração do bilinguismo oficial português-caboverdiano por via da oficialização plena (ainda que, como, aliás, proposto pelo jurista Mário Ramos Pereira Silva, inicialmente somente em modo político-simbólico e no plano jurídico-constitucional) da língua materna caboverdiana, em paridade com o português (como já referido, até agora a única língua oficial plena da República de Cabo Verde), a sua progressiva introdução no ensino oficial e a concomitante e paulatina ocupação por parte da língua portuguesa dos espaços informais de comunicação na sociedade caboverdiana por forma a que a mesma logre transformar-se, efectivamente e cada vez mais, na segunda língua dos caboverdianos radicados nas ilhas, mas obviamente que sem qualquer irrealista pretensão ou abstrusa veleidade no sentido de algum dia o idioma luso se transformar em língua materna desses mesmos caboverdianos radicados no chão natal das suas ilhas.
2.1. A introdução, pela primeira vez na História do sistema educativo em Cabo Verde, do ensino da língua caboverdiana no 10º ano de escolaridade, a partir do ano lectivo de 2023/2024, pode ser interpretada como um sinal assaz positivo, nos trilhos que se querem e se almejam seguros e firmes rumo à generalização do ensino da nossa língua materna em todos os níveis de escolaridade, do 1º ano ao 12º ano, bem como no ensino técnico-profissional. Relembre-se neste contexto que no que se refere aos ensinos médio e universitário, a disciplina de língua caboverdiana tinha sido ministrada pelo linguista Manuel Veiga na Escola de Formação de Professores do Ensino Secundário da cidade da Praia, tendo o mesmo linguista, professor universitário e autor de inúmeras e aprofundadas obras de e sobre a língua caboverdiana (por isso mesmo, considerado, actualmente, a maior autoridade do nosso país em crioulistica caboverdiana de todos os tempos), introduzido e ministrado um Curso de Mestrado da e em Língua Caboverdiana na Universidade de Cabo Verde, no âmbito do qual foram levados a cabo, e pela primeira vez, pesquisas e estudos aprofundados sobre várias variantes do crioulo caboverdiano, como as das ilhas Brava, do Maio, da Boavista e do Sal.
2.2.Todavia, a adopção pelo Ministério da Educação de Cabo Verde, na sequência da introdução da língua caboverdiana, como disciplina opcional, no 10º ano de escolaridade, de um Manual de Língua e Cultura Caboverdiana, uma “criação intelectual” da linguista polaca Dominika Swolkień, da linguista brasileira Eliane Semedo e das linguistas caboverdianas Elvira Reis e Maria do Céu Baptista, com “revisão científica” das linguistas caboverdianas Amália de Melo Lopes e Ana Karina Moreira, e redigida num denominado crioulo caboverdiano interdialectal, em vez de alegria, entusiasmo e euforia, suscita várias, sérias e graves preocupações, quais sejam: esse denominado crioulo interdialectal é um crioulo completamente fabricado e artificioso, pois que não existe, nem em forma falada por populações de nenhuma ilha (a não ser, quiçá, na desabitada ilha de Santa Luzia e nos despovoados ilhéus Rombo, Raso, Branco, de Santa Maria, dos Pássaros e outros mais, se porventura as cagarras falassem e os répteis e insectos cantassem), e de nenhuma diáspora caboverdiana, nem em forma escrita por qualquer escritor, escriba e/ou letrista caboverdiano, seja ele alupecador ou tradicionalista; introduz regras avessas à escrita fonético-fonológica fundadas nas Bases do ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-Verdiano), pois que consegue banir qualquer forma de acentuação (nisso, aliás, imitando a metodologia utilizada por Marciano Moreira, um conhecido e acérrimo defensor e promotor da oficialização plena da língua materna caboverdiana, bem como por alguns jovens escritores crioulógrafos, seus discípulos), recorrendo ao denominado contexto para adivinhar a pronúncia das palavras; contraria frontalmente o consenso arduamente conseguido na sociedade caboverdiana e segundo o qual os alunos devem aprender a língua materna caboverdiana na respectiva variante dialectal insular e/ou regional, pois que é desta forma que, face à ainda persistente ausência/inexistência de um crioulo padrão oficial, a língua caboverdiana se actualiza como língua materna dos caboverdianos das diferentes ilhas e diásporas; é uma infeliz tentativa de imposição de um crioulo, como já referido, sumamente artificioso e fabricado, com recurso a regras gramaticais originárias predominantemente das variantes de barlavento da língua caboverdiana, precisamente naqueles pontos que foram considerados pelo grande filólogo caboverdiano Baltasar Lopes da Silva como as suas insuficiências intrínsecas, isto é, a sua incompletude vocálica, e que, na óptica do festejado filólogo caboverdiano, acima referenciado, as desqualificam para servirem de crioulo literário padrão, em razão primacialmente dos choques consonânticos que engendra, dificultando a sua escrita. Escrita que, contudo, vai sendo tentada com recurso ao ALUPEC, segundo as regras desenhadas e propostas por Manuel Veiga, consensualidadas pelo Grupo de Padronização do Alfabeto Unificado do Caboverdiano e, depois, adoptadas e estabelecidas a título experimental pelo Governo da República de Cabo Verde, sendo que actualmente o mesmo ALUPEC tornou-se o alfabeto oficial para a escrita da língua caboverdiana. Contudo, essa tentativa de escrita das variantes do barlavento da língua caboverdiana tem-se processado com grave e perturbante subversão da regra da biunivocidade que embasa esse alfabeto de base fonético-fonológica (embora com algumas pequenas concessões aos alfabetos de base etimológica e à escrita tradicional da nossa língua materna, por isso denominando-se alfabeto unificado, e que consiste no seguinte: a cada grafema deve corresponder um único fonema e a cada fonema deve corresponder um único grafema -ou de forma mais simples: a cada letra deve corresponder um som e a cada um som deve corresponder uma letra-, salvo nos casos das palatais correspondentes aos sons “ch”, “dj”, “lh”, “nh” e “tch”, para os quais se deve utilizar respectivamente os dígrafos x, dj, nh, lh e tx). Com efeito, essas tentativas de escrita das variantes de barlavento com recurso ao ALUPEC passaram a atribuir, de forma assaz estranha e totalmente inadmissível, um duplo valor à letra “e” nas variantes de barlavento, quais sejam de “e” mudo e de “e” com várias acentuações e graus de abertura. Diga-se, sempre em prol da honestidade intelectual, que os “autores intelectuais” do tal crioulo interdialectal podem congratular-se neste único ponto, pois que parece terem ultrapassado, pelo menos parcialmente, o imbróglio da atribuição de um duplo valor à letra “e”, como acima referido. Anote-se finalmente, e a mero título de curiosidade, que o chamado crioulo interdialectal aparenta-se a uma espécie de esperanto pan-caboverdiano, tão inútil, artificioso, fabricado e contraproducente, como o esperanto original em que parece ter-se inspirado.
Felizmente que a adopção desse tal Manual de Língua e Cultura Cabo-Verdiana, por muitos qualificado como uma autêntica fraude e/ou verdadeira aberração linguística, foi a título meramente experimental, podendo ainda o Ministério da Educação de Cabo Verde arrepiar caminho dessa malfazeja e por demais perigosa encruzilhada, pois que a indignação entre os linguistas, os professores e os escritores (multilingues, bilingues e monolingues) da e em língua caboverdiana é deveras generalizada e tonitruante!
linha de Sintra
2.3. Ressalve-se, todavia que, no seu conjunto o novo Manual de Língua e Cultura Cabo-Verdianas, anunciado pelo Ministério da Educação de Cabo Verde no passado dia 21 de Fevereiro de 2025, de celebração mundial do Dia Internacional da Língua Materna, contém partes assaz positivas, designadamente no que se refere à história da escrita da língua caboverdiana e à reprodução de textos em crioulo de importantes autores actuantes e presentes nas várias fases da escrita em língua caboverdiana, com destaque para Eugénio Tavares, Sérgio Frusoni, B. Léza, Danny Spínola, entre outros, acrescidos dos nomes de alguns autores e de algumas autoras de letras de composições musicais das novíssimas gerações. Neste contexto, foram incompreensível e lamentavelmente omitidos nomes e textos de escritores bem como de intérpretes e autores de letras de composições musicais reconhecidamente relevantes, designadamente nos domínios do batuco, do rabolo (mazurca foguense), da morna, da coladera, do funaná, da talaia baxo, entre outros géneros musicais tradicionais, tendo a contrario sido agregados nomes de autores que quase nada contam para a escrita e a literatura em língua caboverdiana. Um insano exemplo disso é o caso da poetisa e ficcionista lusógrafa Vera Duarte, de quem conheço somente um poema em crioulo, em contraponto a nomes de autores de obras relevantes em língua caboverdiana como Pedro Cardoso, Jorge Barbosa, Luís Romano, Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Kaoberdiano Dambará (pseudónimo de Felisberto Vieira Lopes), Emanuel Braga Tavares, Viriato Gonçalves, Artur Vieira, Kaká Barboza (pseudónimo de Carlos Alberto Lopes Barbosa), José Luiz Tavares, Tomé Varela da Silva, José Luis Hopffer Almada, Eneida Nellly, Armindo Tavares, Princezito e muitíssimos outros, de antigas e novíssimas gerações de escritores crioulógrafos.
2.4. Por outro lado, é patente o viés bairrista de forte teor barlaventista desse malfadado crioulo interdialectal vazado no malfazejo Manual de Língua e Cultura Cabo-Verdianas. Essa deriva bairrista e barlaventista evidencia-se não só no recurso, já acima referido, a regras predominantemente oriundas das variantes do barlavento do crioulo caboverdiano (diga-se ademais que minioritárias!) para a infeliz construção do dito crioulo interdialectal, mas também, e de forma por demais flagrante, na própria composição da comissão ad-hoc que elaborou o intempestivo Manual de Língua e Cultura Cabo-Verdianas. Com efeito, para além da linguista polaca e da linguista brasileira (esta provavelmente naturalizada caboverdiana por via do casamento), a mesma comissão integra duas linguistas santantonenses, sendo quase todas elas presumivelmente professoras e especialistas em variantes do barlavento da língua caboverdiana, ficando as demais linguistas, uma originária da ilha do Sal, a outra originária da ilha de Santiago, confinadas ao papel de “revisoras científicas”. É um verdadeiro escândalo que essa mesma comissão ad hoc não tenha integrado nenhum linguista originário ou estudioso da variante da ilha de Santiago, nem sequer das demais ilhas de Cabo Verde, nem mesmo da ilha de São Vicente e da ilha de São Nicolau. Como é sabido, além de ser considerado pelo linguista alemão Juergen Lang (considerado o maior especialista estrangeiro da língua cabo-verdiana, em particular da variante de Santiago) como o crioulo mais antigo de todo o mundo, a variante de Santiago, ilha onde germinou a identidade crioula caboverdiana e onde se localiza a capital do nosso país-arquipélago, é a variante-matriz da língua caboverdiana, sendo falada pela maioria do povo das ilhas e diásporas, tanto o de origem rural como o de matrizes urbana e suburbana, propiciando, assim, a existência de vários níveis sociolectais e regionais da sua utilização nas suas variações basilectal, mesolectal e acrolectal nos códigos oral e escrito, sendo que ademais a grande maioria dos escritores e escribas caboverdianos crioulógrafos têm actualmente a variante de Santiago da língua caboverdiana como língua de labor literário e de escrita.
3. A chamada escrita interdialectal da língua caboverdiana, vazada no acima referido Manual de Língua e Cultura Cabo-Verdianas, mereceu igualmente severas, fundamentadas e contundentes críticas de Eleutério Afonso, professor universitário e co-criador do programa do ensino da língua caboverdiana no 10º ano de escolaridade, num excelente artigo, publicado na edição de 3 de Março de 2025, do jornal online Santiago Magazine e, logo a seguir, reiterado numa também excelente entrevista ao jornal Expresso das Ilhas. No artigo publicado no jornal online Santiago Magazine, o articulista começa por escrever o seguinte sobre o processo de didactização da língua caboverdiana que, segundo ele, devia estar actualmente em curso no 10º ano de escolaridade do sistema de ensino caboverdiano: “Neste momento, era suposto estar a ocorrer, tão simplesmente, a experimentação de um programa de uma disciplina que nunca existiu antes. Os dados a serem experimentados são muitos, mas não incluem, por mais urgente que possa parecer, a experimentação de um novo sistema de escrita, cujo excerto se apresenta a seguir:
“Es manual fazed n´un context und inda no ka ten un norma d skrita pa língua kabuverdian. Alfabet Kabuverdianu (AK) ta permiti skrebe na tu variedad, ma inda nuinhun variedad d skrita k pode konsirad kom norma pa língua. Pur is, es manual ta aprozenta un proposta pandialetal d skrita. E kel skrita k bo ta atxa na text splokativ. Es proposta pandialetal ta permiti ten un niorma d skrita kabuverdian, moda defended pa Lopes (20111) y Reisa. El ta nase d spirimentason, ku konpromis d grup d trabadj kontinua ta studa-l y testa se regra adotad pa se konsolidason, ku xintid na kontinmuidad d´es disiplina. Grup ta propo-l y ta asumi-l moda un skrita spirimental k pode ben mudad y midjorad!” in manual de L&CCV, 10 º Ano, pág. 225”.
Sobre a mesma escrita dita interdialectal o autor assevera o seguinte: “Tal tentativa de escrita, apresentada como sendo pandialetal, pode não ser tanto isso, mas, mais uma ou mais de uma do que de outra. Na verdade, acaba sendo algo contra os valores subjacentes à criação da própria disciplina e que consta tanto da lei que a criou como do próprio programa a partir do qual o manual foi elaborado”. Para provar as suas afirmações, o articulista, também co-autor, como já referido, do programa de ensino anteriormente referenciado, cita excertos do mesmo programa, considerando nomeadamente que a criação da disciplina obedece a valores plasmados na sua finalidade que a seguir esclarece, destacando suas nuances mais importantes para sociedade cabo-verdiana actual, designadamente:
“1. A desocultação da língua em todas as suas variedades. Tal desiderato não se realiza com a apresentação de uma escrita que, oculta em vez de aumentar a familiaridade dos alunos com a diversidade de sua língua.
2. Desmistificar preconceitos, promovendo a compreensão interdialetal . Para que se promova a diminuição dos preconceitos os textos devem aparecer, hora numa variedade, hora em outra, incluindo os comandos, pois, não se quer passar uma ideia de inutilidade cientifica das variedades. Pelo contrário, o que se pretende é mostrar que, em princípio, qualquer uma serve. De referir que o manual apresenta os dados científicos na tal escrita pandialetal como se nenhuma das variedades do berdianu se prestasse para esse efeito;
3. Apresentar a língua ensinando as regras e suas variações favorecendo uma padronização participada e consensual. Este valor está sendo violado flagrantemente, pois, a escrita já apresenta uma variedade padrão forjada pelo Ministério da Educação, cujo Ministro já tinha dito na Televisão de Cabo Verde (TCV), por ocasião da abertura do ano letivo 2022/2023, que não se vai colocar em causa nenhuma variedade e que os objetivos de padronização não são imediatos. Aliás, o programa manda ensinar todas as variedades no sentido de formar a sociedade para que ela venha a participar desse processo, de um modo mais democrático (o tal molde pós-moderno referido no início), em lugar de uma abordagem de cima para baixo como acabou de ser feita nesse manual (abordagem mais antiga, ocorrida com algumas línguas coloniais em tempos e sociedades não democráticas);
4. Abordagem descritiva, comparativa e contrastiva. O foco hoje é aumentar o conhecimento dos alunos sobre a diversidade da sua língua desenvolvendo a capacidade metalinguística, processo importantíssimo no desenvolvimento intelectual, emocional e moral dos alunos. Disso decorre maior respeito e maior compreensão do irmão falante de outras variedades e mais inteligentes e unidos seremos, sem sermos iguais!” (in programa de Língua e Cultura Cabo-Verdianas do 10º ano de escolaridade)”.
Sumariando, afirma o articulusta de forma assaz contundente e conclusiva: “Por estas razões apontadas, a escrita pandialetal se mostra inoportuna e inadequada. Viola, de modo sorrateiro, os valores de democracia e participação plasmados na Constituição e demais leis da República (Decreto-Lei n.º 28/2022 , art.º 15.º, que cria a disciplina), principalmente nos valores e princípios de base da criação da disciplina, e, ainda, o processo de didatização de um conteúdo nunca dantes constituído em formato de disciplina, processo cujos princípios científicos precisam ser observados”.
Desenvolvendo o seu raciocínio quanto à conclusão acima retirada, o articulista Eleutério Afonso reitera o que se devia prosseguir com o ensino do crioulo neste momento, nos seguintes termos: “No essencial, o que esta fase deve propugnar é que os alunos possam, i) entender as variedades que não a sua (tanto na oralidade como na escrita) para poderem respeitá-las; ii) estudar e compreender a sua variedade materna e escrevê-la… e pouco mais que isso”.
O articulista explica ainda : “Para isso, há que ver em quantos anos é possível alcançar esses resultados e quais conteúdos são essenciais. Para começar, enquanto autores, vazamos muitos conteúdos no programa do décimo ano, para que os professores experimentassem à vontade; fossem seguidos e capacitados, de modo contínuo, para que se pudesse vir a reformular tudo e dar indicações para o alargamento dos conteúdos para os anos letivos anteriores e posteriores e demais medidas curriculares essenciais. O Ministério da Educação foi incapaz de gerir o processo neste sentido, mas não se coibiu de raptar o processo, afastando-o da comunidade e redirecionando-o para rumos inaceitáveis”.
Finalmente, o articulista conclui o seu excelente artigo nos seguintes termos: “A criação desta disciplina não é para afastar os cabo-verdianos de sua língua e nem tão pouco abrir a oportunidade para que uma elite imponha uma língua de ninguém como sendo “a língua” dos cabo-verdianos, por dificuldades em fazer uma política que, verdadeiramente, leve os cabo-verdianos a se unirem e se respeitarem na sua diversidade”.
5.1. Entretanto, em artigo publicado na versão online do jornal Expresso das Ilhas, de 2 de Março, noticia-se que o Ministro da Educação de Cabo Verde afirmou, em entrevista à Agência Lusa, que ainda há “um caminho a fazer” nos domínios técnico, científico e da formação de professores para que se estabeleçam as bases da oficialização plena da língua cabo-verdiana. Aliás, noticia-se no mesmo artigo do jornal Expresso das Ilhas que, na entrevista acima referida à Agencia Lusa, o mesmo Ministro sublinhou que “a formação de professores de língua cabo-verdiana nunca levará menos de 10 anos, período necessário para a preparação do sistema e para que um primeiro grupo passe por três anos de formação no ensino secundário, seguidos de mais quatro a cinco anos no ensino universitário”.
5.2. Sublinhe-se neste contexto que, ao contrário do que se pode pensar ao se tomar conhecimento da entrevista, acima referida, do Ministro da Educação de Cabo Verde, as suas asserções não invalidam de maneira nenhuma a solicitação do Presidente da República, reiterada em diferentes instâncias, circunstâncias e ocasiões, no sentido da co-oficialização plena da língua caboverdiana, ao lado da língua portuguesa, neste ano de celebração do cinquentenário da proclamação solene da independência nacional de Cabo Verde, desde que essa mesma oficialização plena tenha um carácter primacialmente político-simbólico, aliás, na linha defendida pelo jurista Mário Ramos Pereira Silva, isto é, desde que a norma constitucional que consagra essa oficialização plena seja acompanhada e complementada por uma outra norma constitucional redigida de forma quase idêntica àquela actualmente vigente, isto é, que “o Estado promove as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com o português, e para a sua introdução paulatina como disciplina obrigatória em todos os níveis de ensino das escolas públicas, privadas, cooperativas e outras em Cabo Verde”.
5.3.De se lamentar é que na acima referida entrevista o Ministro da Educação de Cabo Verde tenha adoptado a postura política eleitoralista de um importante membro do actual Governo do MpD e, adoptando uma atitude assaz amnésica, tenha tentado ocultar os crescentes esforços num passado recente pós-colonial, incluindo os relativos à primeira governação do MpD nos anos noventa do século XX, e à mais recente da governação do MpD, a partir de Março de 2016, bem como os relativos às governações anteriores do país e aos meritórios contributos de linguistas, escritores, tradicionalistas, músicos e outros relevantes actores linguísticos em prol da permanente valorização e da constante promoção da língua caboverdiana e das suas diversas variantes e variedades dialectais, designadamente: i. No domínio técnico-linguístico, com a elaboração de obras de crioulistica caboverdiana (gramáticas, dicionários, manuais, teses de mestrado e de doutoramento, etc.) por um apreciável número de especialistas nacionais e estrangeiros. ii. No domínio literário, com a consolidação de um sistema literário caboverdiano lavrado em língua caboverdiana com um importante número de obras nos domínios da poesia, da prosa de ficção (romance e conto), do teatro e do ensaio literário e científico. iii. No domínio da recolha da oratura e das tradições orais de todas as nossas ilhas, com um extenso, variado e muito meritório trabalho levado a cabo pelas instituições públicas da área da cultura, devidamente complementado pelo labor de algumas entidades privadas, incluindo estrangeiras, e visando primacialmente os caboverdianos da diáspora. iv. No domínio da tradução, com a versão em língua caboverdiana de importantes instrumentos jurídicos nacionais e internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Declaração da UNESCO sobre os Direitos Linguísticos e a Constituição Política da República de Cabo Verde, e de obras da literatura universal de autores estrangeiros, como os sonetos de Luiz Vaz de Camões e poemas de Fernando Pessoa e David Mourão-Ferreira, o Evangelho de São Lucas (nas variantes das ilhas de Santiago e São Vicente) e de autores nacionais, como Corsino Fortes, Gabriel Mariano e Daniel Filipe, além de poemas, contos e peças de teatro de lavra própria, elaborados originalmente em português, de Sérgio Frusoni, Luís Romano, Danny Spínola, Armindo Tavares, Manuel Veiga, Eutrópio Lima da Cruz e José Luiz Tavares. v. No domínio da educação formal, com a aprovação de diplomas legais, com destaque para a Lei de Bases sobre o Sistema de Ensino, que obrigam à introdução da língua materna caboverdiana em vários níveis de ensino; a introdução da disciplina de língua caboverdiana na Escola de Formação de Professores do Ensino Secundário e no Instituto Superior da Educação, do ensino bilingue caboverdiano-inglês em escolas frequentadas por caboverdianos nos Estados Unidos da América, do ensino bilingue caboverdiano-português numa escola do Vale de Amoreira, no concelho da Moita, na região da Grande Lisboa, e, depois, a título experimental em duas escolas da ilha de Santiago e em uma escola na ilha de São Vicente, de um Curso de Mestrado em Língua Caboverdiana na Universidade de Cabo Verde. vi. No domínio do uso em espaços formais, a aprovação de várias Resoluções do Governo de Cabo Verde que incentivam a utilização da língua caboverdiana, nos espaços formais da comunicação, como a administração pública e a comunicação social, depois de se ter tornado habitual a utilização da língua materna caboverdiana em sessões parlamentares, nos meios de comunicação social, incluindo na imprensa escrita, e nas redes sociais; vii. no domínio da normalização, a adopção de vários alfabetos de base fonético-fonológica ao longo do período pós-colonial, designadamente do chamado Alfabeto do Mindelo, de 1979, do Alfabeto do Forum para a Alfabetização Bilingue de Adultos, de 1989, do ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escritaa do Cabo-Verdiano), de 1993/1994, numa primeira fase a título experimental e numa segunda fase, em 2009, como alfabeto oficial da língua caboverdiana; vi. no domínio dos estímulos da criatividade e da criação literárias, a instituição do Prémio Pedro Cardoso, depois descontinuada pela actual governação do Mpd. viii. E, finalmente, no domínio artístico, primacialmente musical, com a internacionalização e a consagração a nível mundial/global de vários compositores e intérpretes musicais caboverdianos, tendo sempre a língua caboverdiana, nas suas diversas variantes insulares e regionais e grafados em diferentes alfabetos, como língua de labor musical para a escrita das suas letras.
Muito relevante neste aspecto foi a constitucionalização da língua materna caboverdiana, pela primeira vez na História, no decurso e como resultado da revisão constitucional de 1999, nos termos anteriormente dissecados, sendo que os tempos e as exigências actuais da sociedade civil caboverdiana e da generalidade do povo das ilhas e diásporas demandam a passagem urgente a uma fase jurídico-constitucional superior, qual seja a da oficialização plena da língua materna caboverdiana, em paridade com a língua portuguesa, numa primeira fase todavia somente do ponto de vista simbólico-político por via jurídico-constitucional, em havendo suficiente vontade política dos parlamentares caboverdianos, prosseguindo-se posteriormente com a formação dos professores e a produção de material didáctico-pedagógico indispensáveis para a generalização, a médio e a longo prazos, do ensino, como disciplina obrigatória, da língua caboverdiana, bem como a consagração plena do bilinguismo oficial caboverdiano com a emissão gradual de legislação em língua caboverdiana e a par e concomitamente com a emissão de legislação em língua portuguesa, como , aliás, vem ocorrendo desde sempre na História caboverdiana.