Uma abordagem crítica do romance “A Última Lua de Homem Grande”, de Mário Lúcio Sousa (parte II)
IV
Uma postulação assaz controversa. Os possíveis, os consumados, os preteridos e os impossíveis Prémios Camões Caboverdianos
De tudo o que vem dito e do que vai ser ainda dito, afiguram-se-me óbvios (e, por isso mesmo, não nos cansamos de enaltecer) os muitos méritos literários e memorialísticos do romance A Última Lua de Homem Grande, tanto mais que, aliado à sua outra já vasta obra literária somada de narrativa de ficção, dramaturgia e poesia em língua portuguesa, o seu autor parece ter assegurado o seu lugar para o podium do Prémio Camões (o maior e o mais prestigiado de língua portuguesa) juntamente com outros legítimos postulantes caboverdianos, como sejam (por ordem de idade) Oswaldo Osório, Dina Salústio, Jorge Carlos Fonseca, Valentinous Velhinho, o próprio Mário Lúcio Sousa, José Luiz Tavares e mais um cultor pseudo-heteronímico de poesia lírica, existencialista e épico-telúrica, mais velho que os três últimos autores acabados de referenciar e que, por razões óbvias de farsa modéstia (para utilizar um neologismo do autor do romance ora em dissecação), me abstenho de aqui e agora nomear explicitamente. Só não sabemos se isso tudo que aqui publicamente se almeja vai realmente ocorrer, e se porventura ocorrer, se acontecerá com todos ou somente com alguns dos nomeados e por que ordem será.
Entretanto, outros cultores da escrita das ilhas podem continuar a consolidar a sua já significativa obra literária e perfilar-se igualmente como legítimos postulantes caboverdianos ao maior galardão literário de língua portuguesa, como são, por exemplo, os casos dos autores de Sob a Nossa Pele (Joaquim Arena), de As Frutas Serenadas (Filinto Elísio Correia e Silva) ou de Infinito Delírio (Danny Spínola), sem deixar de também mencionar três grandes pensadores caboverdianos que são Gabriel Fernandes, António Leão Correia e Silva e José Vicente Lopes, verdadeiros escritores de ideias em razão da qualidade estilística da sua escrita, para além de muito abalizados e inovadores especialistas nas respectivas áreas de investigação científica e de escrita, designadamente a sociologia, a história e o jornalismo (designadamente, a grande reportagem e o jornalismo de investigação histórica).
A essas imponderabilidades somam-se outras, ainda mais evidentes e primacialmente advenientes do critério geo-político-literário que preside à atribuição do Prémio Camões, instituído e inteiramente financiado pelo Brasil e por Portugal, qual seja a existência de numerosos candidatos de mérito e consagrados pergaminhos provenientes das super-potentes literaturas de Portugal e do Brasil, das poderosas literaturas angolana e moçambicana (tal como, aliás, igualmente a literatura caboverdiana) e das assaz consolidadas literaturas santomense, timorense e bissau-guineense, sendo que estas três últimas ainda não puderam ser agraciadas com o maior e mais prestigiado e abrangente prémio literário lusófono.
Tenha-se ainda em conta que desde a sua instituição, Cabo Verde tem sido quase que uma injusta vítima dos controversos critérios de atribuição do Prémio Camões, pois que somente muito tardiamente (em 2009) a literatura caboverdiana foi contemplada com esse mesmo prémio, tendo até agora sido agraciados o poeta e romancista Arménio Vieira e o romancista Germano Almeida. Entrementes, foram sucessivamente preteridos os grandes escritores caboverdianos que foram (e continuam a ser, apesar de já falecidos), o poeta, romancista, contista, cronista e ensaísta claridoso Manuel Lopes, o contista, romancista, ensaísta e cronista neo-claridoso Henrique Teixeira de Sousa, o poeta, contista e ensaísta nova-largadista de mérito Gabriel Mariano, o poeta ontológico- metafísico João Vário, o poeta épico-telúrico e ensaísta Timóteo Tio Tiofe e o ficcionista existencialista e poeta épico pan-africanista G. T. Didial (todos pseudo- heterónimos do neurocientista e cidadão nacionalista e cosmopolita João Manuel Varela) e o poeta épico-telúrico Corsino Fortes.
Anote-se ainda como questão sumamente relevante que entre a atribuição do primeiro Prémio Camões caboverdiano (Arménio Vieira-2009) e a atribuição do segundo Prémio Camões saheliano-insular (Germano Almeida-2018), decorreram nove anos.
Façam-se, pois, as contas e as apostas e formulem-se os necessários vaticínios….
V
Dois episódios e momentos mais polémicos do romance, designadamente os relacionados com Ernesto de la Sierna (Che) Guevara e com Juvenal Lopes da Costa cabral
Não obstante todos os seus muitos e incontestáveis méritos, o romance A Última Lua de Homem Grande, de Mário Lúcio Sousa, não deixa de ter alguns momentos e episódios mais polémicos.
Cumpre agora assinalá-los em nome da sinceridade e da honestidade intelectuais que faço por serem apanágio da minha conduta pessoal, moral e cívica.
Trata-se designadamente das abordagens que se faz no supra-referenciado romance i. do papel e das repercussões (adiamento, desistência e/ou abortamento) do fracasso no Congo e da morte de Ernesto Che Guevara na Bolívia no projectado desembarque de guerrilheiros do PAIGC em Cabo Verde e ii. do papel que é atribuído a Juvenal Cabral na educação, em especial na educação escolar e na educação política do seu filho Amílcar Cabral.
- 1. No que se refere ao papel e às repercussões (adiamento sine die ou, até, desistência e abortamento) do fracasso de Che Guevara no Congo e do seu assassinato após ferimento em combate e captura na Bolívia no projecto de desembarque em uma ou mais ilhas de Cabo Verde de guerrilheiros caboverdianos do PAIGC, desembarque esse sugestivamente baptizado com o nome de código Operação Esperança, significando esse mesmo desembarque de guerrilheiros caboverdianos do PAIGC em Cabo Verde a abertura de uma nova frente de guerra desse poderoso Movimento de Libertação Bi-Nacional e que poderia ter marcado o início da luta armada de libertação nacional de Cabo Verde em solo estritamente caboverdiano, pensamos que o evento trágico acima referido envolvendo o lendário guerrilheiro heroico cubano-argentino terá pesado, e muito, na ponderação dos seus prós e contras para a continuidade da muito expectada nova fase do desenvolvimento da luta em Cabo Verde (aliás, reiterada pelo próprio Amílcar Cabral no seu célebre Testamento Político).
Todavia, estamos em crer que não terá sido a razão determinante do adiamento da Operação Esperança, por muitos, aliás, tida como uma operação suicida condenada de antemão ao fracasso, em razão da dispersão, da exiguidade e da forte aridez das nossas ilhas, incluindo das tradicionalmente consideradas agrícolas, por isso alegadamente mais propícias à sobrevivência de guerrilheiros que, no caso de efectivação do desembarque guerrilheiro, teriam que contar com os seus próprios recursos, sustentando-de nas suas próprias forças, e com o eventual apoio no fornecimento de víveres por parte da população que pretendiam mobilizar para a insurreição armada anti-colonial.
A razão do protelamento da operação guerrilheira acima referida parece-me ter sido outra, muito mais verosímil, designadamente a deserção das fileiras do PAIGC de Albino Ferreira Fortes, mais conhecido e popularizado pelo seu nominho Bibino, um dos integrantes do chamado Grupo de Cuba, que recebeu treinamento político-militar na Argélia, em Cuba (durante mais tempo) e na União Soviética. Além de desertar do PAIGC, facto que, aliás, ocorreu com pelo menos mais um dos membros do Grupo de Cuba, designadamente com o mais velho e muito respeitado Sílvio Ferreira Querido, por, segundo corre, se ter recusado a integrar as frentes militares da Guiné do PAIGC, alegando que tinha sido preparado política e militarmente para exclusiva e/ou primacialmente participar na consecução prática da Operação Esperança, de desembarque guerrilheiro em Cabo Verde. A contrario do Bibino, não se conhecem de Sílvio Ferreira Querido quaisquer condutas anteriores ou comportamentos posteriores à sua saída do PAIGC que denotassem um qualquer envolvimento com as autoridades colonial-fascistas portuguesas, não obstante ter sido arbitrariamente expulso da sua ilha natal por ordem expressa do Governo de Transição nas imediatas vésperas da proclamação da independência de Cabo Verde, para onde tinha regressado para viver in loco esse acontecimento de transcendente relevância histórica e para o qual ele (a par dos seus irmãos e dos seus filhos) deu a sua preciosa contribuição, radicando-se na sua ilha natal de Santiago, na casa paterna/materna do Cutelo na Assomada de Santa Catarina.
Com efeito, não satisfeito em desertar do PAIGC, situação, aliás, assaz frequente nos fins dos anos sessenta e inícios dos anos setenta do século XX enquanto abandono da militância política activa, sobretudo no chão logístico e político-militar das duas Guinés, por alegado cansaço, inadaptação (ou, in extremis, desvinculação) do próprio sujeito do abandono ou dos seus acompanhantes familiares próximos (como nos casos de António Mascarenhas Monteiro, Mário Fonseca ou Onésimo Silveira) ao ambiente de intrigas pessoais e políticas prevalecente em Conacri e à alegada podridão político-ideológica dele emergente, sobretudo no referente à sempre controversa questão da unidade Guiné-Cabo Verde (leia-se a propósito as páginas relativas às conversas entre Amílcar Cabral e o conspirador Momo Turé - português-guineense ou guinéu, na então legítima terminologia do seu presumível mentor e mandante General António de Spínola - e entre Amílcar Cabral e o dirigente caboverdiano Abílio Duarte, todas constantes do romance A Última Lua de Homem Grande, de Mário Lúcio Sousa, ou dos livros ensaísticos ou de história anteriormente mencionados), que depois conduziriam ao assassinato de Amílcar Cabral, o Albino Ferreira Fortes (Bibino) apressou-se a apresentar-se às autoridades portuguesas da embaixada portuguesa em Dacar, depois de ter encenado estar doente para obter a competente baixa para consulta e tratamento médicos na capital senegalesa, tendo sido posteriormente enviado para Cabo Verde para apresentar declarações à Delegação local da PIDE/DGS. Neste contexto de notórias delação e traição dos ideais da luta político-armada do PAIGC e de reconciliação com a obsoleta mãe-pátria portuguesa colonial, pluricontinental e multirracial ou, dito de outro modo, do salazarento Portugal de Minho a Timor, já por demais ultrapassado e prestes a ser definitivamente engolido pela convulsiva e imparável voragem da História, ele denuncia sem pejo e sem nenhum remorso a preparação da Operação Esperança à famigerada e impiedosa polícia política portuguesa colonial- fascista com uma grande profusão de detalhes e pormenores (incluindo os lugares previstos para o desembarque, as identidades dos participantes na mesma operação (sendo muitos deles naturais da sua ilha natal, Santo Antão), como atestam inequivocamente os documentos publicados por Aristides Pereira no seu livro Um Partido, Uma Luta, Dois Países (Versão Documentada), designadamente os autos de declarações de Albino Ferreira Fortes, dito Bibino, à PIDE/DGS.
Em face da deserção de Bibino e presumivelmente dos dados por ele fornecidos à criminosa policia política portuguesa, seria de todo em todo, verdadeira e plenamente suicidário realizar e contar com os necessários apoios logísticos, designadamente de Cuba, da União Soviética e dos demais países socialistas leste-europeus e asiáticos, para a prática concretização da operação nos temos anteriormente delineados e pensados por Amílcar Cabral e pelos seus companheiros e camaradas de luta, desde a realização, em Julho de 1963, em Dacar, da famosa Reunião de Quadros e Responsáveis do PAIGC sobre a Situação da Luta em Cabo Verde, cuja acta foi finalmente publicada em 2015 pela Fundação Amílcar Cabral no livro póstumo de Amílcar Cabral, organizado por Luís Fonseca e Olívio Pires e intitulado Cabo Verde- Reflexões e Mensagens. Anote-se ademais que é presumivelmente na sequência dessa abjecta denúncia que foram presos Lineu Miranda, Luís Fonseca, Jaime Schofield e Carlos Tavares e outros militantes clandestinos do PAIGC colocados na ilha de Santo Antão para preparar o desembarque guerrilheiro nessa muito montanhosa e agrícola ilha nortenha caboverdiana. Quanto aos presos políticos Fernando Tavares (Toco), José Aguiar Galina Monteiro (Zezé Manco), José Ferreira Querido (Zéqui), Kid Querido Varela e Emanuel Braga Tavares e outros militantes clandestinos do PAIGC encarregados de preparar o desembarque guerrilheiro na ilha de São Tiago, os mesmos terão sido denunciados por mor da ocorrência de um facto perfeitamente fortuito e imprevisível e que se passa a narrar em termos muito sintéticos: vindo da Suíça a caminho de Conacri e desembarcado em trânsito no aeroporto de Paris para se encontrar com o alto dirigente do PAIGC comandante Pedro Pires, Amílcar Cabral é barrado pela polícia das alfândegas, alegadamente por estar administrativamente interditado de entrar e/ou permanecer em França, e obrigado a expor a sua bagagem, da qual constavam importantes documentos ultra-confidenciais relativos à estratégia, aos meios materiais e logísticos e aos meios humanos para o desenvolvimento da luta em Cabo Verde e, em especial, em relação ao programado desembarque guerrilheiro na ilha de Santiago, sendo que integravam esse mesmo dossier os nomes dos acima referidos militantes clandestinos. Apreendidos os supra-referidos documentos ultra-confidenciais, os mesmos foram reencaminhados pela polícia secreta francesa à PIDE/DGS que encetou as diligências necessárias para a prisão na Cadeia Civil da Praia e na Colónia Penal/Presídio Político do Tarrafal e o julgamento no tribunal de São Vicente dos militantes políticos acima referenciados que, todavia e sob grande ovação popular, lograram ser absolvidos das acusações feitas muito por causa da competência da sua defesa conduzida pelos advogados Felisberto Vieira Lopes, Arlindo Vicente Silva e João Monteiro, resultado que todavia não seria conseguido pelo grupo de Santo Antão, cujos integrantes seriam condenados a pesadas penas de prisão e medidas de segurança cumpridos na colónia penal/no presídio político/no campo de concentração de Chão Bom do Tarrafal em posterior julgamento realizado na cidade da Praia. Em face das repercussões desses dois julgamentos políticos (bem assim de um anterior, de 1961, do grupo mobilizado pelo depois foragido político José Leitão da Graça) na opinião pública caboverdiana, que assim, deste modo inusitado, ficou a conhecer mais de perto alguns meandros e protagonistas da luta pela independência de Cabo Verde, não mais foram sujeitos a julgamento os posteriores presos políticos caboverdianos, designadamente Pedro Martins e o grupo de enganados mas corajosos e destemidos assaltantes do navio Pérola do Oceano, todos presos na Cadeia Civil da Praia e posteriormente encarcerados, até ao dia 1 de Maio de 1974, na colónia penal/no presídio político/no campo de concentração de Chão Bom do Tarrafal, e os grupos de militantes clandestinos do PAIGC presos nas cidades da Praia e do Mindelo e posteriormente enviados para a Foz do Cunene, em Angola, onde permaneceram até à sua libertação na sequência do 25 de Abril de 1974.
Neste ponto, seja-me permitida a seguinte reflexão: sendo o escritor totalmente livre em dar largas à sua imaginação, como, aliás, o presente livro é uma belíssima ilustração e um mais que convincente exemplo, as boas regras ditam todavia que um romance histórico deve fundamentar o essencial da sua intriga nos factos históricos comprovados e devidamente disponibilizado em documentação fiável e credível, como parecem ser aqueles tempestivamente disponibilizados por Aristides Pereira a partir dos autos de declarações recolhidas pela PIDE/DGS e constantes dos famosos e famigerados Arquivos guardados na sua esmagadora parte no célebre Arquivo Nacional/Torre do Tombo português.
- 2. Já no que se refere ao papel desempenhado por Juvenal Cabral na educação escolar do filho, Amílcar Cabral, e as influências por ele exercidas sobre o mesmo, a questão parece ser mais delicada, sensível e controversa.
Para melhor se interpretar essa candente questão deve-se, na minha opinião, inseri-la na problemática geral das elites letradas caboverdianas das ilhas e diásporas e da história dessas mesmas elites na pugna pela emancipação e afirmação cultural, social, económica, administrativa e cívico-política da terra e das gentes caboverdianas e na luta da independência de Cabo Verde e da libertação nacional do povo caboverdiano das ilhas e diásporas, assaz relevantes por se tratar de Juvenal Cabral, uma personalidade tida consensualmente por importante (“incontornável”, segundo Julião Soares Sousa) na história das letras e do nativismo caboverdianos e das relações entre essas elites letradas nativistas e as guerras de subjugação dos povos da Guiné dita portuguesa, oficialmente denominadas guerras de pacificação, e se tratar outrossim e ademais de Juvenal Cabral, o reconhecido pai de Amílcar Cabral, figura histórica cuja incomensurabilidade de pergaminhos para a libertação bi-nacional dos povos da Guiné e de Cabo Verde não parece carecer de maiores demonstrações, porque profusamente carreadas no presente romance histórico, mas também em várias obras relevantes , algumas devidamente escrutinadas pela Academia, como é o caso da obra do sempre referenciado Julião Soares Sousa sobre o líder caboverdiano e guineense e excepcionalmente grande revolucionário africano.
Mas convém antes esclarecer que, apesar de algumas nuances, o romancista histórico Mário Lúcio Sousa parece adoptar, assumir e sufragar em grande medida (se não quase por inteiro) a tese adoptada pelo historiador Julião Soares Sousa no seu excelente livro sobre Amílcar Cabral, designadamente a tese segundo a qual terá sido mínimo o papel de Juvenal Cabral na educação do secundogénito de Nha Iva e seu primogénito com ela, tese que parece ter sido levada ao extremo por António Tomás, no seu O Fazedor de Utopias-Uma Biografia de Amílcar Cabral, como teremos oportunidade de ver mais adiante.
Com efeito, é a Iva Pinhel Évora (a Nha Iva, do tratamento respeitoso em crioulo traduzível por Dona Iva em português ou no actualmente muito em voga crioulo acrolectal e que é mesmo que dizer descrioulizado, ou, ainda, a mãe Iva, da conhecida terminologia de Amílcar Cabral) que é creditada a totalidade da responsabilidade pela educação escolar de Amílcar Cabral, o que, à primeira vista, parece evidente e justíssimo, sobretudo depois de nos embrenharmos nos meandros biográficos devidamente documentados da obra de Julião Soares Sousa sobre o nosso comum Herói Maior Bi-Nacional.
Com efeito, é ela, a Dona Iva, que, depois de resgatar os filhos comuns do poder e das mãos paternais do antigo companheiro Juvenal Cabral em Achada Falcão do concelho de Santa Catarina de Santiago e assumir a sua inteira custódia no conhecido bairro (ou quarteirão) da Ponta Belém da cidade da Praia, o faz ingressar na escola primária da mesma cidade capital, onde o mesmo se distingue pela sua exemplar aplicação nos estudos (e nos jogos da bola). É também ela, a Dona Iva, que, em 1937, se muda com a família restrita, constituída pelo filho primogénito Ivo, Amílcar, as gémeas Armanda e Arminda e o codé Tói, para a ilha de S. Vicente para permitir que, tendo concluído com distinção o segundo grau do ensino primário na cidade da Praia e estando mesmo no limite da idade (treze anos feitos em Setembro de 1937) para a respectiva inscrição e admissão oficial no ensino liceal, o super-dotado e muito aplicado filho Amílcar Cabral pudesse frequentar o primeiro ciclo do curso liceal ministrado no então único Liceu de todo o Cabo Verde, criado em 1917, depois da extinção ainda em 1862 do Liceo Nacional de Cabo Verde, fundado em 1860 e sediado na então vila da Praia, e do Seminário-Liceu de São Nicolau, criado em 1866 e oficialmente extinto em 1917, passando a funcionar como mero Colégio.
É, pois, ela, a Dona Iva, que arca com todos os sacrifícios- como diz a própria em entrevista ao jornal bissau-guineense Nô Pintcha, em 1976: “cansei-me demais na tina, no ferro e na máquina”, a significar o seu trabalho como costureira e lavadeira, para além de operária sazonal e muito mal paga da fábrica de conservas de peixe de Manuel (Leça) Ribeiro de Almeida, curiosamente encarregado de educação na primeira fase dos estudos liceais mindelenses/sanvicentinos de Amílcar Cabral.
É ainda ela, a amada Mãe Iva, que Amílcar Cabral considera “a estrela” da sua “infância agreste”, sendo que ele, Amílcar, “só existe porque ela existe”, mãe que é, e que, como se sabe, é uma condição quase irrenunciável e particularmente imprescindível nas sociedades negro-africanas e/ou afro-descendentes como é a sociedade caboverdiana.
É também por causa dela, a Dona Iva, que, a caminho de Bissau e falecido que era o pai Juvenal Cabral, Amílcar Cabral desembarca no porto da cidade da Praia para ver em toda a plenitude e resplandecência os orgulhos filial e materno estampados nos respectivos rostos e corações quando ele, o recém-formado engenheiro Amílcar Cabral, lhe mostrasse, a ela, a mãe Iva, o canudo, o tão almejado diploma de conclusão dos estudos superiores em agronomia.
É a ela, à mãe Iva, que Amílcar manda buscar de Cabo Verde para residir, às suas expensas e por encargo da sua imensurável gratidão, em Bissau, a capital dessa Guiné portuguesa onde ela fora uma entre os milhares de imigrantes caboverdianos arribados em busca de melhores condições de vida, e onde ele, Amílcar Cabral, nasceu em Bafatá da fusão do sangue e da alma dela com o sangue e a alma do professor primário também emigrado Juvenal Lopes Cabral, para depois ele, Amílcar Cabral, se tornar migrante na terra dos seus pais onde cresceu e amadureceu como homem, vindo esse singular facto, aparentemente forjado pelo acaso do destino, a marcar toda a ulterior história política da libertação dos povos da Guiné e de Cabo Verde, a contrario de Rafael Barbosa, rambém ele filho de pais caboverdianos por inteiro, mas para além de nascido, também crescido e amadurecido na sua Guiné portuguesa natal, obviamente com o inamovível estatuto civilizado e cidadão português, , como,aliás, ocorria com todos os caboverdianos e filhos de caboverdianos.
É ainda a ela, a mãe Iva, que, mesmo estando longe, ela em Bissau sob o domínio português directo, ele em Conacri e no vasto mundo dos combatentes da liberdade de ambas as pátrias, Amílcar continua a sustentar, não apenas afectiva e espiritualmente, mas provendo-a com os necessários meios materiais e financeiros (parece que também à madrasta e mãe de Luís Cabral) por intermédio dos bons ofícios do advogado nacionalista e dirigente clandestino da organização caboverdiana do PAIGC Arlindo Vicente Silva, mais conhecido por Baco.
Finalmente, é a ela, a mais que adorada mãe Iva, que, no seu último suspiro, Amílcar Cabral dirige o seu pensamento, não por via da oração, mas recitando no seu mais recôndito e sagrado íntimo, o poema que lhe tinha dedicado no seu Livro do Curso de Agronomia.
Acontece todavia que, como bom e sério historiador que é, antes de introduzir, sustentar e colocar em curso de debate a sua própria tese sobre a muito pertinente questão ora em pauta e discussão, Julião Soares Sousa faz questão de não só elencar mas também de expor pormenorizadamente aquelas que considera as duas teses dominantes sobre a problemática das influências exercidas pelos progenitores sobre a educação escolar, as vocações universitárias, as opções profissionais e o destino político de Amílcar Cabral, designadamente a primeira que defende a influência repartida entre ambos os progenitores Juvenal e Iva, e a segunda que opta pela influência exclusiva de Juvenal Cabral.
Assim somos elucidados, com amplo recurso à respectiva bibliografia, que a primeira tese era defendida sobretudo por Mário de Andrade, Patrick Chabal, Carlos Pinto Santos, Cedric J. Robinson e Oswaldo Osório, sustentando-se esta primeira tese na cultura escolar e na erudição literária, a par da condição de professor primário por vocação de Juvenal Cabral, conjugando-se essas qualidades de Juvenal Cabral com os excepcionais sacrifícios consentidos por Nha Iva para que o filho pudesse preparar-se de forma atempada e conveniente do ponto de vista escolar para singrar na vida, enquanto que a segunda tese, propugnadora da influência exclusiva de Juvenal Cabral e defendida principalmente por Oscar Oramas, Oleg Ignatiev, Gérard Chaliand e Aristides Pereira, baseia-se fundamentalmente nos pergaminhos escolares, profissionais, literários e cívico-políticos do pai de Amílcar Cabral, pergaminhos esses, aliás, amplamente ilustrados e comprovados na sua carreira como professor primário por vinte anos activo na Guiné portuguesa e pelos escritos do mesmo letrado nativista dados à estampa na imprensa caboverdiana e nas mais diferentes ocasiões que lhe parecessem propícias à manifestação da sua matriz patriótica lusitana, da sua dimensão cívica nativista caboverdiana e da sua veia afectiva luso-crioulista em relação à terra e às gentes caboverdianas, como ilustrados nos casos da sua novela O Crime do Largo do Hospital, do seu poema satírico em crioulo Bêjo Caro (a propósito das brigas e atribulações amorosas de um chamado Zé Badio), dos seus artigos sobre as fomes, as questões agrárias e os sistemas de ensino e de educação escolar caboverdianos, muitos deles integrados depois na sua obra maior que é Memórias e Reflexões, integrantes de episódios ocorridos tanto na Guiné como em Cabo Verde, bem assim dos seus artigos de louvação a Salazar, ao Estado Novo e a “Portugal, enquanto nação colonizadora”, e de exaltação dos feitos de Teixeira Pinto nas guerras de pacificação da Guiné portuguesa (na verdade, como já referido, de subjugação dos aguerridos povos guineenses revoltados, rebelados e sublevados).
Neste contexto, desempenha um papel importante a questão da localização do início da educação escolar do menino Amílcar Cabral.
Salvo os casos de Oscar Oramas (bem assim de Rafael Barbosa num testemunho- entrevista concedida a Julião Soares Sousa, segundo a qual Amílcar fez toda a instrução primária em Bissau, na Guiné portuguesa) que defendem que Amílcar Cabral teria iniciado a escola primária ainda em Bissau, onde teria permanecido com a mãe até 1934, depois do regresso definitivo de Juvenal Cabral à ilha natal no ano de 1932, e de Gerald Moser (no seu ensaio sobre a poesia de Amílcar Cabral) e Ana Lisboa (no seu documentário sobre Amílcar Cabral) que defendem que Amílcar Cabral iniciou os estudos primários em Santa Catarina, tendo ingressado imediatamente depois no Liceu de S. Vicente, sem todavia fazer qualquer menção à eventual prossecução dos estudos primários na cidade da Praia, a esmagadora maioria dos subscritores das duas teses acima referidas defendem que Amílcar Cabral teria iniciado os estudos primários na cidade da Praia, tendo feito os estudos secundários (liceais) na ilha de S. Vicente, sendo que alguns, designadamente José Vicente Lopes, José Pedro Castanheira e Carlos Pinto Santos, preferem ficar pela localização genérica do lugar da frequência dos estudos primários, isto é, a ilha de Santiago, sem todavia precisar uma localidade ou um concelho concretos onde tal teria ocorrido, optando, como não podia deixar de ser, pela ilha de S. Vicente como tendo sido o lugar da frequência dos estudos secundários por Amílcar Cabral.
Pretendendo defender e fazer vingar a sua própria tese favorável à influência exclusiva da mãe Iva, o historiador Julião Soares Sousa alega e sublinha que foi (quase) nulo o papel de Juvenal Cabral na educação e na socialização escolar de Amílcar Cabral, tendo aquele, até, alegadamente descurado, e de forma assaz flagrante, os seus papéis de pai e de professor primário, que, enquanto mestre-escola por vocação e ocupação profissional, ministrou aulas a crianças em várias escolas na Guiné portuguesa, designadamente em Geba, Bafatá e Bissau, tendo residido em Santa Catarina, depois do seu regresso definitivo a Cabo Verde, num sítio próximo de pelo menos duas escolas primárias, mais precisamente nas imediações da Escola Primária de Cabeça de Carreira, e, um pouco mais distante, da Escola Primária da Assomada (a sede do concelho de Santa Catarina). Tal negligência, imputada sem quaisquer rebuços ou meias-palavras a Juvenal Cabral, consubstanciar-se-ia no facto dele não ter matriculado o filho Amílcar Cabral numa das duas supra-referidas escolas enquanto o menino esteve sob a sua inteira custódia (de 1932 a 1933/1934).
Ademais e segundo Julião Soares Sousa, teria sido também nula, ou, pelo menos, mínima, a influência de Juvenal Cabral na detecção da vocação agronómica e na formação política de Amílcar Cabral (incluindo no que se refere à candente questão da unidade Guiné-Cabo Verde, sabendo-se que Juvenal Cabral mantinha grandes ligações afectivas a ambas as colónias/províncias ultramarinas portuguesas oeste-africanas, considerando-as complementares, a Guiné por alegadamente precisar dos quadros administrativos caboverdianos, Cabo Verde em relação às imensas potencialidades agrícolas da província ultramarina continental em contraste com as crises climatéricas e alimentícias que a assola(va)m regularmente, numa espécie de tentativa de perpetuação/retoma de facto (que não de jure) do antigo estatuto de “colónia da colónia” que foi a Guiné portuguesa em relação a Cabo Verde, enquanto seu distrito militar, até 1879, ano em que deu por findo esse mesmo estatuto na sequência do chamado massacre de Bolor de um contingente militar caboverdiano por guerreiros felupes em 1878, ano em que também é definitivamente extinta a escravidão nas ilhas de Cabo Verde e nas demais colónias portuguesas, vindo depois a ser criada a entidade colonial própria e autónoma, no sentido de directamente dependente de Lisboa, chamada Guiné portuguesa). Tanto mais que, segundo Julião Soares Sousa, e constitui efectivamente consenso geral devidamente documentado, Juvenal Cabral teria sido um admirador de Salazar de quem foi, aliás, colega no Seminário de Viseu, e um adepto do salazarismo e da vocação e missão colonizadoras de Portugal, bem assim um acérrimo defensor de Teixeira Pinto, o chefe militar português das guerras de pacificação contra os papéis e os grumetes de Bissau no primeiro quartel do século XX, como, aliás, de facto atestam artigos publicados pelo próprio Juvenal Cabral no jornal republicano caboverdiano A Voz de Cabo Verde , devidamente citados por Julião Soares Sousa na sua obra de referência sobre Amílcar Cabral. Ademais, argumenta Julião Soares Sousa que estando Juvenal Cabral reformado do seu ofício de professor primário na Guiné dita portuguesa e residindo num arquipélago a recuperar das crises e fomes de 1931 e entrado nas crises e fomes de quarenta e um em diante, já em processo de falência e/ou em perda da herança deixada pela madrinha Simoa dos Reis Borges Correia, a isso acrescendo uma alegada dívida em relação à Caixa Escolar de Bissau (que estaria efectivamente saldada, mas, porque carecendo do devido comprovativo, continuava a constituir mais um pesado fardo sobre os seus magros ombros financeiros), o mesmo não estaria em condições de financiar os relativamente dispendiosos estudos liceais do filho numa ilha distante como era S. Vicente na altura, tanto mais que o mesmo Juvenal Cabral era ademais (co)responsável pelo sustento de uma numerosa prole proveniente de, pelo menos, três mulheres diferentes.
Admitindo, como, aliás, está profusamente comprovado, que foi a mãe Iva que providenciou o ingresso de Amílcar Cabral na escola primária da Praia e sustentou, com imensos sacrifícios, os seus estudos liceais em S. Vicente, apraz-me todavia tecer as seguintes considerações no referente ao papel de Juvenal Cabral na educação escolar e na influenciação da vocação profissional e do destino político de Amílcar Cabral:
- 1.Não me parece de todo verosímil que um prestigiado letrado caboverdiano, ademais com bom nome na praça, tanto entre os seus colegas letrados, proprietários fundiários e funcionários públicos, como entre a população em geral, em nome da qual, aliás, redigiu discursos e dirigiu memorandos a altas entidades coloniais, como os Governadores coloniais em funções, os Ministros do Ultramar e Chefes de Estado de passagem e em missão de soberania portuguesa, a favor da disseminação do saber escolar e da “história pátria portuguesa” e da mitigação das consequências induzidas pelas secas endémicas e consequentes crises periódicas, com destaque para o que ele denomina o monstro das fomes, pudesse voluntariamente e por mera e/ou grosseira negligência, descurar a educação escolar dos filhos, sobretudo os que estivessem sob a sua directa custódia.
- 2. Ao tempo em que viveu longe da mãe Iva e sob directa influência do pai Juvenal Cabral em Achada Falcão, este era um grande (ou, pelo, menos, um médio) proprietário rural ou, se não, o administrador de grandes propriedades rurais da sua madrinha Simoa dos Reis Borges Correia, sendo certo que, segundo testemunho da filha de Juvenal e Iva e irmã de Amílcar, Armanda Cabral (aliás, expressamente referido por Julião Soares Sousa), ele quis levar o seu filho Amílcar para Cabo Verde, com o fito expresso de providenciar a educação escolar do mesmo. Desse testemunho pode-se inferir que Juvenal Cabral estaria provavelmente insatisfeito com o facto de o seu primeiro filho varão com Iva Pinhel Évora não ter sido tempestivamente matriculado na instrução primária em Bissau, pois que tinha atingido ainda residia nessa província ultramarina portuguesa a idade de sete anos requeridos para o efeito a 12 de Setembro de 1931. Nessa altura, Juvenal estaria presumivelmente em Cabo Verde, pois que entrara em gozo de licença por doença para acompanhar a esposa Adelina Correia Almeida Cabral e o seu comum filho Luís, nascido a 11 de Abril desse mesmo ano em Bissau. Talvez deste modo fique também explicado porque é que Amílcar Cabral não tenha frequentado o primeiro ano da instrução primária em Bissau, como parecem comprovar os arquivos disponíveis, antes de, juntamente com as irmãs Armanda e Arminda, acompanhar o pai Juvenal no seu regresso definitivo a Cabo Verde em Novembro de 1932. Anote-se neste contexto que é o próprio historiador Julião Soares Sousa a afirmar na sua valiosa e sempre citada obra sobre Amílcar Cabral que, devido à não catalogação dos arquivos escolares de Santa Catarina, conservados e disponíveis no Arquivo Nacional de Cabo Verde, não era ainda possível, ao tempo da defesa da sua tese de doutoramento, provar com as requeridas segurança e certeza que Amílcar Cabral tivesse frequentado ou não tivesse frequentado uma das escolas primárias de Santa Catarina mais próximas da residência do pai, designadamente a de Cabeça de Carreira e a da Assomada. A contrario, nada pode obstar a que se presuma com alguma certeza que Amílcar Cabral tenha frequentado uma dessas escolas primárias, como, aliás, assegurado pelo jovem economista José Luís Neves com recurso a uma conversa/ depoimento oral da sua avó paterna, a Dona Nair Pereira Neves (curiosamente mãe do actual Presidente da República José Maria Pereira Neves) que, segundo um post do mesmo José Luís Neves na sua página do facebook, diz ter sido colega de Amílcar Cabral na Escola Primária da Assomada. Do mesmo sentido creio ser um artigo do Sr Alfredo Veiga (curiosamente, pai de Carlos Veiga, antigo Primeiro-Ministro de Cabo Verde), o qual testemunha ter sido colega de Amílcar Cabral na Escola Primária da Assomada.
Neste contexto, parece-me que o depoimento do combatente da liberdade da Pátria e arquitecto Pedro Martins, constante do seu livro Testemunho de um Combatente e segundo o qual “Amílcar Cabral estaria atrasado nos estudos” (segundo citação de Julião Soares Sousa), pode igualmente ser interpretado no sentido de ele ter já iniciado os estudos em Santa Catarina, mesmo que sob a forma de ensino doméstico ou caseiro ministrado pelo próprio pai, o professor primário aposentado e muito amigo das letras Juvenal Cabral. Pode ser que aos olhos da Dona Iva o ensino primário que verdadeiramente contava fosse o ministrado nas escolas primárias públicas e nunca aquele ministrado em casa, ainda por cima pelo próprio progenitor. Nesta óptica, ela teria razões de ficar preocupada, ainda mais existindo uma escola primária nas imediações da vivenda de Juvenal Cabral, agravando-se tudo isso com o facto de o filho Amílcar ter já perdido um ano da escolaridade que, como já referido, deveria ter iniciado em Bissau.
Neste contexto, tornam-se credíveis não só o depoimento de Pedro Martins e a opinião do meio-irmão e companheiro próximo de luta, Luís Cabral, sufragadora da tese segundo a qual Amílcar Cabral frequentou a escola primária oficial pela primeira vez na cidade da Praia, mas também, se bem que com algumas nuances, o depoimento da irmã de Amílcar Cabral, Armanda Lopes Cabral, a qual o acompanhou em todas as suas vivências caboverdianas tanto em Achada Falcão e na cidade da Praia, como também na cidade do Mindelo e de novo, na fase pós-liceal, na cidade da Praia.
Nesse contexto, divisam-se duas possibilidades, ambas por igual pouco credíveis:
- a)Na hipótese de Amílcar Cabral ter frequentado a instrução primária em Santa Catarina no ano lectivo 1932/1933 na Escola Primária de Cabeça Carreira ou na Escola Primária da Assomada e a conclusão dos estudos primários se ter verificado em 1934 (conforme certidão/documento autêntico referido pelo próprio Julião Soares Sousa, os estudos primários de Amílcar teriam que ter começado em Bissau no ano lectivo 1931/1932, devendo Amílcar Cabral todavia fazer quatro classes em três anos lectivos (1931/1932, em Bissau, 1932/1933, numa das acima referidas Escolas Primárias de Santa Catarina, e 1933/1934 na Escola Primária António de Oliveira Salazar da cidade da Praia.
- b)ou, na alternativa disso não ter ocorrido, Amílcar Cabral teria que ter feito quatro classes em dois anos lectivos (1932/1933, numa das acima referidas Escolas Primárias de Santa Catarina, e 1933/1934 na Escola Primária António de Oliveira Salazar da cidade da Praia.
Em ambos os casos (aliás, assaz inverosímeis pelo que se poderia convir que a menção do ano de 1934 como sendo o da conclusão da instrução primária por Amílcar Cabral se trata de um lapso ou erro inserido num documento autêntico,como, aliás, defende Julião Soares Sousa), ter-se-ia que admitir que a Dona Iva teria permanecido mais de dois anos na cidade da Praia a ponderar e a reunir as condições necessárias antes de se decidir a se mudar e/ou de efectivar a sua mudança, com todos os filhos, para a cidade do Mindelo para efeitos primacialmente da prossecução dos estudos liceais de Amílcar Cabral (e, correlativamente, de outros níveis de instrução escolar e formação profissional dos demais filhos), hipótese que todavia não pode ser descartada, ainda que por menos tempo (um ano, no máximo), caso se venha a comprovar que Amílcar Cabral iniciou a instrução primária no ano lectivo de 1932/1933 ainda ele residia com o pai em Santa Catarina.
- c)Na hipótese de Amílcar Cabral ter começado os estudos primários somente no ano lectivo de 1933/1934 - já que, e ao que tudo indica, foi resgatado pela mãe Iva em Setembro de 1933, imediatamente depois do regresso da mesma de Bissau-, Amílcar Cabral faria, como de facto parece ter feito, um percurso escolar normal de quatro classes em quatro anos lectivos, mesmo com a alteração legal verificada em 1936 e que baixou de quatorze anos para treze anos a idade máxima para o ingresso no ensino liceal. Esta é a tese defendida e fundamentada por Julião Soares Sousa, a qual contrasta frontalmente com aquela defendida por António Tomás que, quiçá na esteira de um testemunho da irmã de Amílcar Cabral, Armanda Cabral, e retomada prr Oleg Ignatiev, defende que Amílcar Cabral frequentou e concluiu num único ano todas as quatro classes da instrução primária, tendo-se iniciado nas lides escolares com doze anos de idade.
Anote-se neste contexto que o romancista Mário Lúcio Sousa prefere optar pela frequência e conclusão das quatro classes da instrução primária em três anos lectivos em razão de Amílcar Cabral ter alegadamente iniciado a escola primária com dez anos de idade, isto é, em 1934.
- 3.Elucidativo é o facto de o encarregado de educação de Amílcar Cabral na primeira fase dos seus estudos liceais em São Vicente ter sido Manuel (Leça) Ribeiro de Almeida, empresário e dono da fábrica de conservas de peixe onde trabalhou a mãe de Amílcar Cabral, bem como proprietário e director do jornal mindelense Notícias de Cabo Verde, de que Juvenal Cabral era o correspondente na cidade da Praia e na ilha de Santiago. Tal circunstância pode atestar o visível interesse de Juvenal Cabral pela educação escolar do filho, interesse que se deve ter expressado na influenciação do amigo e colega letrado Manuel (Leça) Ribeiro de Almeida no sentido de providenciar um emprego à ex-companheira e sua mãe-de-filho Iva Pinhel Évora, deste modo peculiar também contribuindo para a radicação e o sustento da família materna de Amílcar Cabral na ilha de S. Vicente e, assim, para a educação escolar de Amílcar Cabral. Esclarecedor a este propósito parece ser o testemunho da Dona Iva na sua famosa entrevista ao jornal Nô Pintcha quando afirma que Juvenal Cabral se predispôs a ajudar financeiramente na educação liceal do filho Amílcar Cabral, impossibilitando-se depois de cumprir tal promessa pelas muitas dificuldades advindas da situação de falência e de endividamento na qual se tinha enredado ou na qual foi enredado.
Complementarmente, relembre-se que, segundo o agora narrado no romance de Mário Lúcio Sousa, Juvenal Cabral não hesitou em juntar as duas mulheres e respectivas famílias com os filhos Ivo, Amílcar, Armanda, Arminda e António, da Dona Iva, e Luís, da Dona Adelina, numa única e mesma casa em Bissau, permanecendo as duas famílias vizinhas e entre-ajudando-se sempre na cidade da Praia quando Juvenal Cabral teve de abandonar a casa e as propriedades da Achada Falcão.
- 4.É o próprio Julião Soares Sousa que, na sua rica documentação oficial relativa ao percurso da carreira profissional e à correspondência oficial de Juvenal Cabral, testemunha o seu interesse pelos filhos, nesse caso da sua primeira companheira Ernestina Soares de Andrade, no romance denominada por Dona Iva “a Paridera” em razão de uma prole de mais de dez filhos tidos com Juvenal Cabral (vide lista constante num dos anexos do livro de Julião Soares Sousa relativa à árvore genealógica de Amílcar Cabral), quando acompanha dois deles (Hermínio e Artemisa), já adultos e “indigentes”, de regresso à terra natal continental, onde nasceram, a expensas da administração colonial de Cabo Verde.
- 5.Também me parecem evidentes as ligações afectivas entre pai e filho, se bem que necessariamente marcadas por uma relação de respeito temeroso e um claro distanciamento reverencial do filho em relação ao pai (aliás, habituais e exigíveis nessa época), “pois que não eram colegas” (como se narra num dos episódios do romance ora em apresentação).
O respeito intelectual de Amílcar Cabral pelo pai Juvenal Cabral parece-me inegável e evidenciou-se, por exemplo, quando e enquanto Vice-Presidente da Direcção da Secção de Cabo Verde, Guiné e São Tomé e Príncipe da Casa dos Estudantes do Império e responsável do seu Boletim Mensagem, Amílcar Cabral mandou publicar nesse mesmo Boletim um excerto do livro Memórias e Reflexões, de Juvenal Cabral intitulado “O Mostro”, de sentida e veemente vituperação das fomes caboverdianas.
Aliás, segundo escreve o próprio historiador Julião Soares Sousa, é por ter pensado que fosse o filho Amílcar Cabral (e não Agostinho Neto, como realmente ocorreu e se veio depois a saber em Cabo Verde) a pessoa presa pela polícia política portuguesa no contexto da angariação de assinaturas contra a adesão de Portugal à NATO que Juvenal Cabral sofreu um ataque cardíaco fulminante que lhe tirou a vida em 1951.
Segundo depoimento da primeira mulher, a então colega e namorada Maria Helena Ataíde Vilhena Rodrigues, Amílcar Cabral teria entrado em profundo estado de choque e de depressão quando soube do falecimento do pai, por isso isolando-se no quarto por vários dias.
- 4.Estamos em crer que a marcante influência de Juvenal Cabral na educação do filho Amílcar se terá processado não por via de laços afectivos expressos de forma pública mas pelo poder de exemplo enquanto letrado e “político” (como diz a Dona Iva, na sua única entrevista dada ao jornal No Pintcha).
Exemplo que foi certamente positivo em tudo o que tivesse que ver com o gosto pelo saber em geral e pelo saber erudito e especializado com relação à agricultura, em especial, bem como pelo interesse pelas questões mais estreitamente relacionadas com a terra e as gentes caboverdianas.
Exemplo que pode ter sido negativo pelos dilemas, ambiguidades e ambivalências em que pode enredar as pessoas a que respeita, cabendo a quem observa tirar as devidas lições positivas e negativas de tal situação dilemática. É o que terá acontecido com Amílcar Cabral ao constatar que, apesar da sua erudição escolar e do seu saber literário, do seu patriotismo luso-crioulista, da sua dedicação à sua profissão, escolhida por vocação e não por uma qualquer imposição exterior, todos os caminhos pareciam fechados a um Juvenal Cabral, ademais falido. Estou certo que esse terá sido um dos factores determinantes para a transição de Amílcar Cabral de uma ideologia vagamente luso-crioulista induzida pela sua cultura escolar bebida nos manuais e estabelecimentos de ensino coloniais e pela suas quotidianas vivências telúricas crioulas para uma fase superior de assumido nacionalismo africano. Tal percurso parece ser característico de vários intelectuais nacionalistas africanos caboverdianos, como parecem atestar inequivocamente os casos de Aristides Pereira em relação ao pai, o padre Porfírio Pereira, de Luís Cabral em relação ao pai, Juvenal Cabral, dos irmãos Manuel, Abílio e Pedro Duarte em relação ao pai, o padre Francisco de Deus Monteiro Duarte (que, curiosamente, foi quem baptizou Amílcar Cabral), de Jorge Pedro Barbosa e, sobretudo, de Eduardo Barbosa em relação ao pai Jorge Barbosa, de Valdemar Lopes da Silva em relação ao pai Baltasar Lopes da Silva, de Baltasar Barros (Nho Balta) em relação ao pai Antero Barros, etc, etc..
Comum aos pais de todos os nacionalistas africanos caboverdianos acima referenciados é a sua opção pela ligação de Cabo Verde a “Portugal como nação colonizadora”, quer por via da adjacência político-cultural, quer por via do regionalismo identitário político-cultural. Alguns deles foram assumidos antifascistas, como parecem ser os casos de Jorge Barbosa e Baltasar Lopes da Silva, como outros pareciam ser declarados admiradores do Estado Novo português, como parecem ser os casos evidentes de um tardio e recuperado José Lopes (depois de uma primeira fase juvenil vagamente independentista e contestatária das discriminações do sistema colonial contra as elites caboverdianas) e de Juvenal Cabral (apesar da incúria e do abandono coloniais que sempre denunciou e anatemizou).
Acontece que, fazendo jus à dialéctica da dinâmica da História, tudo nele, Juvenal Cabral, transformou-se no seu filho em seu dialéctico contrário. É assim que os Rios da Guiné do Cabo Verde e as colónias/províncias ultramarinas da Guiné portuguesa e de Cabo Verde, vistos como complementares no quadro do império colonial/ultramarino português, tornaram-se a Guiné e Cabo Verde emancipalistas e independentistas do PAIGC de Amílcar Cabral, tal a Casa dos Estudantes do Império que se virou subversivamente contra o Império colonial. Tal qual!
Por fim, seja ainda referido o papel assaz positivo que, na sua Análise de Alguns Tipos de Resistência - A Resistência Armada (conferências no Seminário de Quadros de 1969 proferidas por Amílcar Cabral em crioulo e recolhidas e editadas em português por Mário Pinto de Andrade), o grande pedagogo e estratega político-militar caboverdiano- guineense atribui a Honório Barreto (um ilustrado e rico negro guineense de origem caboverdiana e um convicto “patriota português”, segundo a caracterização do próprio Amílcar Cabral, ou um “preto-patriota, como o próprio Juvenal Cabral se auto-descreveu e a outros negros retintos defensores da “mãe-pátria portuguesa” e da colonização portuguesa) na delimitação das fronteiras actuais da Guiné-Bissau em face das pretensões colonial-expansionistas da França, então potência colonial no Senegal e em Casamansa, situando todavia Amílcar Cabral o alegado papel positivo desse assimilado luso-crioulo no seu devido contexto histórico e diferenciando-o de um qualquer outro protagonista pró-colonialista dos tempos contemporâneos da luta de libertação bi-nacional, tido por isso como colaboracionista ou mesmo traidor, porque pugnando por ideários politicamente obsoletos e navegando contra os ventos dominantes da História, servindo para tanto os exemplos de Aguinaldo Veiga e Antero Barros (talvez assaz injusto para este último caso), os quais, elucida Amílcar Cabral no Seminário de Quadros de 1969, tendo representado Portugal, enquanto a potência colonial tergiversante em admitir que possuía territórios coloniais, na Assembleia-Geral das Nações Unidas num momento decisivo em que Amílcar Cabral (acompanhado de Dulce Almada Duarte) apresentava o caso colonial da Guiné dita portuguesa e de Cabo Verde perante a mesma organização internacional universal, teriam traído as promessas feitas a Amílcar Cabral num encontro secreto em Nova York no sentido de aderirem, ainda que clandestinamente, à luta pela independência de Cabo Verde e da Guiné dita portuguesa.
Por tudo isso que vem acima explanado, estranhamos pois que numa tão sensível questão tenha o romancista histórico Mário Lúcio Sousa deliberadamente optado por uma das muitas possíveis saídas nessa controvérsia, precisamente a mais odiosa, humilhante e vergonhosa para o pai de Amílcar Cabral e delineada tanto pelo insigne historiador Julião Soares Sousa, mesmo na ausência ou na insuficiência de provas sólidas, cabais e irrefutáveis, como mais acima tentámos argumentar e contra-argumentar, como também por António Tomás, de forma assaz extremada.
Todavia, Mário Lúcio Sousa parece por vezes vacilar na sua adopção dos pontos de vista sufragados e defendidos por Julião Soares Sousa e António Tomás quanto à socialização escolar de Amílcar Cabral com exclusivo papel da mãe Iva. Se, na verdade, a sua descrição romanesca das vivências de Amílcar Cabral em Achada Falcão nada deixam transpirar de uma sua qualquer eventual educação escolar (mesmo que doméstica e ministrada pelo pai Juvenal Cabral), sendo que, a par das brincadeiras a que ele e as irmãs gémeas se dedicam, dos trabalhos caseiros e eventualmente agrícolas (providenciados certa, primeira e essencialmente pelos empregados domésticos e por outros trabalhadores rurais adstritos aos mesmos) de que eles, Amílcar e as irmãs-gémeas, são circunstancialmente incumbidos parecem inserir-se num quotidiano normal de meninos do campo vivendo naquela época, cabendo-lhes dar o seu contributo, na medida das suas forças, para as diversas tarefas familiares do dia a dia rural, a que, aliás, bastas vezes os meninos do campo, e não só, se dedicam prazerosamente e de bom grado em razão da sua utilidade para a sua aprendizagem do mundo e para a respectiva integração familiar, todavia sem prejudicar as suas eventuais obrigações escolares, aliás e como já referido, nunca por nunca referidas pelo romancista Mário Lúcio Sousa.
Sintomático e assaz significativo para a dissecação do caso em apreço parece ser o facto de o romancista fazer o jovem bolseiro Amílcar Cabral desembarcar em Lisboa vestido com um fato cedido pelo pai Juvenal Cabral. Tal somente poderia acontecer, na minha modesta opinião, havendo laços de afecto e relações de amizade e confiança assaz estreitas entre pai e filho!
Também sintomáticos são os factos romanescos de, antes de dar o seu último e definitivo suspiro, imediatamente antes de repousar o seu pensamento no regaço da sacrossanta mãe Iva, Amílcar Cabral se lembrar por duas vezes do seu pai, a primeira vez, quando na sequência da suposta gravidez da namorada Carla pensou aconselhar-se junto do pai, só não o fazendo porque achou que mãe Iva não podia saber do evento pela interposta boca do seu pai-de filho; a segunda vez, quando imaginara o que diria o pai, Juvenal Cabral, em face da sua, dele Homem Grande, morte iminente: Alea jacta est!
- 5.Todos os testemunhos dos contemporâneos, colegas, condiscípulos e professores de Amílcar Cabral coincidem na exaltação dos seus méritos escolares e das suas qualidades humanas no exercício e na liderança de actividades escolares e extra-curriculares, a par da sua fulgurante inteligência, desde os seus tempos da Escola Primária da Praia passando pelos tempos do Liceu de São Vicente.
Lendo o romance A Última Lua de Homem Grande a par do livro Amílcar Cabral (1924-1973)- Vida e Morte de um Revolucionário Africano e do livro O Fazedor de Utopias-Uma Biografia de Amílcar Cabral, nas suas partes respeitantes à infância e à adolescência de Amílcar Cabral, fica-se com a impressão que estamos face a um menino super-dotado, a um verdadeiro menino-prodígio, tão agarrado aos estudos que diverge completamente da imagem que normalmente se tem dos retardados escolares, isto é, daqueles que ingressam na escola perfazendo idades muito superiores às dos demais condiscípulos e colegas que ingressaram na escola com a idade considerada normal e requerida pelas leis vigentes. Todos nós conhecemos casos desses. Tais alunos evidenciam-se pela sua relativa madureza (maturidade) em relação a determinadas questões e adveniente da sua idade mais avançada, tentando amiúde impor-se face aos condiscípulos mais novos e mais fracos por via da sua força física ou da sua maior “experiência do mundo”.
Ora, parece ser exactamente o contrário do ocorrido com o Amílcar Cabral menino, sendo que as características acima delineadas talvez se aplicassem com maior propriedade ao irmão mais velho, Ivo Carvalho Silva, como gostosamente ilustrado no episódio do Cutumbembem da floresta do Taiti do romance A Última Lua de Homem Grande, e outros episódios do livro que ilustram as razões que fizeram o estimado e adorado irmão mais velho de Amílcar Cabral optar precocemente pela profissão de marceneiro (diga-se que com o apoio material do irmão mais novo que o ajudou a comprar o material necessário para o exercício da profissão), nunca alvitrando sequer iniciar os estudos liceais, depois de, segundo o romance de Mário Lúcio Sousa, ter chumbado nos exames da quarta classe (segundo grau, como se dizia na altura), exactamente no ano em que Amílcar Cabral concluiu a instrução primária.
Em Amílcar Cabral menino (e depois, coerentemente, adolescente e jovem liceal, estudante universitário, engenheiro agrónomo, revolucionário bi-nacionalista, pan-africanista, humanista e universalista, estratega e líder político-militar, diplomata e teórico, ressaltam como qualidades distintas a inteligência incomum, a aguda curiosidade intelectual, a lealdade, o humanismo, o cultivo do saber, o amor das artes, o culto da terra e da natureza, a indagação do destino e do quotidiano, o amor ao próximo, a tolerância para se obter o melhor de cada um, a intolerância perante os erros persistentes, a crença na recuperação do ser humano para ideais nobres, a persistência na luta em prol dos mais fracos e humilhados e da humanidade toda e inteira… tudo qualidades a que não são alheias as influências bebidas em ambos os progenitores, mas também nos livros e, eventualmente, nos professores, nos amigos, companheiros e camaradas, em personalidades históricas exemplares e junto de pessoas humildes, anónimas, comuns do povo.
Neste contexto, parece-me evidente que somente um ensino doméstico (com concomitante ingresso ou não no ensino escolar formal) ministrado pelo pai primeiramente em Bissau, depois na Achada Falcão quando teve a guarda exclusiva do filho, num relacionamento próximo, se bem que marcado pela hierarquia e autoridade parental, e que certamente se prolongou pelas muitas conversas que certamente mantiveram na cidade da Praia na fase caboverdiana mais adulta e madura de Amílcar Cabral, explicam os feitos e façanhas escolares do Amílcar menino-prodígio e adolescente/jovem muitíssimo aplicado nos afazeres curriculares e extra-curriculares e que teria ingressado tardiamente nas instituições escolares formais, com nove anos no caso do impressionante livro-dissertação de Julião Soares Sousa, com doze anos, imagine-se!, no caso do texto biográfico de António Tomás, e com dez anos no caso do romance, ora em indagação, de Mário Lúcio Sousa. Acredite-se pois que, como referido num poema de Tomé Varela da Silva, Amílcar Cabral é, para todos os efeitos, o fruto da ligação afectiva entre Nho Juvenal Lopes da Costa Cabral e Nha Iva Pinhel Évora que, emprestando toda a genialidade à obra feita, veio mudar radicalmente os destinos dos povos da Guiné e de Cabo Verde e de todos nós, beneficiários directos da sua vida e do seu exemplo de nosso maior Morto Imortal!
VI
NOTAS FINAIS E (IN)CONCLUSIVAS
- 1.Como já dito e referido por várias vezes, (quase) todo o enredo do romance A Última Lua de Homem Grande, de Mário Lúcio Sousa, impressiona pelo seu elevado conseguimento técnico-literário, sendo ademais altamente verosímil por se fundar em documentos e ensaios históricos bem fundamentados, com destaque para os supra- referenciado livros de Julião Soares e Sousa e António Tomás, e para Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?, de José Pedro Castanheira, para além dos oficialmente canónicos Amílcar Cabral-Ensaio de Biografia Política, de Mário Pinto de Andrade, Crónicas da Libertação, de Luís Cabral, e Uma Luta, Um Partido, Dois Países-O Meu Depoimento, de Aristides Pereira (também publicado numa versão com um impressionante apenso documental), sem mencionar os livros traduzidos para o português ou originalmente escritos em português de Oleg Ignatiev, Pedro Martins, Oscar Oramas, Leopoldo Amado, Ângela Coutinho, entre outros, bem como das cativantes obras Cartas de Amílcar Cabral para Maria Helena e Postais de Amílcar Cabral para Ana Maria, ambas organizadas e publicadas pela editora Rosa de Porcelana.
A este propósito, escreve o romancista Mário Lúcio Sousa: “um romance não é um livro de histórias. Para além das convenções maiúsculas e minúsculas, no Livro de História, Verdade é tudo aquilo que o historiador consegue provar; no romance Verdade é tudo aquilo a que o escritor teve acesso. Neste livro, os factos, as datas, os nomes, as lembranças, os acontecimentos e seus conteúdos, estão todos documentados, aconteceram e existiram bem antes desta escrita, ainda que alguns deles tenham sido comprovados na origem.. A intervenção do autor foi harmonizar tudo, tornando de ordem literária os factos. Talvez seja esse o papel da literatura, inverter os papéis.”
- 2.Sendo certo que o romancista histórico Mário Lúcio Sousa foi e é um leitor atento, previdente e providencial das obras lavradas pelo punho de Amílcar Cabral, ele prescinde todavia de incursões à obra teórica do grande líder e estratega africano, aliás, de grande actualidade e imensos teores inovador e renovador no âmbito do pensamento marxista e das ideologias progressistas no que respeita às questões e às problemáticas da dignidade da pessoa humana, da cultura, da liberdade dos processos históricos, do suicídio de classe da pequena-burguesia intelectual e burocrática assalariada (isto é, da classe de serviços que dirige a luta pela independência e herda o aparelho burocrático-administrativo colonial, colocando-se assim ante um quase inultrapassável dilema, qual seja o de deixar expandir a sua natural propensão para se transformar numa classe burguesa nativa compradora e burocrática pseudo-nacional(ista) ou ressuscitar como trabalhador intelectual identificado com os interesses das classes trabalhadoras e laboriosas dos campos e das cidades), da questão da moral e da ética do trabalho no desenlace dos processos de radical transformação da sociedade, do homem novo impregnado de uma mentalidade patriótica e progressista e de uma cultura nacional, popular, científica, humanista e universal, do significado e da relevância histórica do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e do princípio da unidade africana no período colonial e no período pós-colonial e, especialmente, no que se refere à explicação do processo histórico caboverdiano (um processo especial, no quadro africano, segundo as próprias palavras de Amílcar Cabral) e da correlativa crioulidade , enquanto resultado dinâmico da mestiçagem afro-europeia nascida nas nossas ilhas, segundo os profícuos, produtivos e, por vezes, divergentes estudos empreendidos por Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, João Lopes, Baltasar Lopes da Silva, Jaime de Figueiredo, Arnaldo França, Nuno Miranda, Félix Monteiro, Manuel Duarte, Henrique Teixeira de Sousa, Gabriel Mariano, Manuel Ferreira, Dulce Almada Duarte, Maria Luísa Ferro Ribeiro, Pedro de Sousa Lobo, João Lopes Filho, bastas vezes sufragados pelo próprio Amílcar Cabral, mas emprestando-lhes outras, novas feições no quadro da sua pugna pela reafricanização dos espíritos com o fito da obtenção da catarse cultural-identitária para o des-atrelamento da carruagem arquipelágica caboverdiana da locomotiva e do comboio da história colonial portuguesa com vista a lograr a liberdade de desenvolvimento do processo histórico das suas forças produtivas e para o encetamento dos caminhos ascendentes da sua cultura com o pró-activo concurso de todas as suas matrizes, dimensões e vertentes afro-crioulas, euro-crioulas e outras que porventura houver, como, por exemplo, se vem verificando com os vários géneros musicais caboverdianos e das suas novas correlações rítmicas de fusão e feição jazzística . Por outro lado, persistem as divergências sobre essas mesmas problemáticas no seio dos estudiosos neo-claridosos de serôdio e patente pendor luso-tropicalista, dos estudiosos afro-crioulistas seguidores da explicação cabralista da crioulidade caboverdiana e de autores das novas gerações pós-coloniais, como Timóteo Tio Tiofe, Onésimo Silveira, Cláudio Furtado, David Hopffer Almada, Manuel Veiga, António Leão Correia e Silva, Gabriel Fernandes, José Carlos Gomes dos Anjos, José Luís Hopffer Almada, Leão Lopes, Moacyr Rodrigues, Eurídice Monteiro, entre outros, dos quais o próprio Mário Lúcio Sousa, autor de um muito recente, interessante e instigante Manifesto a Crioulidade.
- 3.Chegados aqui, apetece perguntar: será que Mário Lúcio Sousa se tornou no mais recente medium de Amílcar Cabral, ele que, em vida, ia aparecendo ao povo das ilhas e diásporas nas mais diversas formas humanas, desde o pastor de almas ao pastor das áridas achadas das ilhas, e, mesmo depois de morto, foi convocado e compareceu perante afro-descendentes em Massamá e em vários centros do racionalismo cristão, de que se tornou frequentador assíduo e estimado, para além de solícito e solicitado conselheiro, todavia deixando nas brumas incógnitas da primeira língua africana, da qual restam somente dois idosos e doentes falantes residentes na África do Sul, ou remetendo para o futuro a vir em doze mil anos-luz a revelação da identidade de todos os seus matantes, assassinantes e respectivos mandantes.
Será A Última Lua de Homem Grande a almejada revelação final dos meandros e dos bastidores nos quais se movimentaram os mandantes, os autores intelectuais, os autores mediatos e os instigadores dos para sempre amaldiçoados Inocêncio Cani, Mamadu Indjai, Bacar Cani, Momo Turé, Aristides Barbosa e os respectivos cúmplices, já bastamente nomeados em outros livros e (in)tempestivamente fuzilados e calados para todo o sempre?
As pistas lavradas no livro ora em apresentação deixam poucas dúvidas, se pudermos descodificar as mensagens enviadas de Lisboa e Bissau aos conspiradores, depois emboscados na trágica noite de Conacri: “Não matem o Amílcar, por amor de Deus!” e “Luz verde à não luz vermelha!”. Facto é que Amílcar Cabral pagou com a vida a circunstância de não querer deixar-se amarrar para ser exibido em Bissau e Lisboa como alegado terrorista acossado, capturado e vilipendiado, como em tempos passados acontecera com o Imperador de Gaza, Ngungunhane, e, ademais, se recusar a calar a boca, como irritado e fora de si quisera o famigerado, descontrolado e odioso Inocêncio Cani.
- 4.Inserindo vários monólogos de Amílcar Cabral consigo próprio, vazados e lavrados em modo diarístico na sua depois desaparecida, ou, melhor, surripiada agenda azul, o romance A Última Lua de Homem Grande pretende ser uma espécie de reconstituição póstuma dessa mesma agenda azul e de eventos marcantes da vida e da obra de Amílcar Cabral, esse Morto Imortal, cujos dilemas, paradoxos, ambivalências e notável coerência do ser e do estar são traçados à saciedade nesse deslumbrante e cativante, mas também trágico perfil social e psicológico de Amílcar Cabral que é o romance A Última Lua de Homem Grande, doravante um marco fundamental do percurso literário de sucesso de Mário Lúcio Sousa que vem, aliás, marcando com um verbo muito próprio e luzente as letras caboverdianas contemporâneas, tornando-se assim por mérito próprio um dos maiores, mais criativos, imaginativos e produtivos escritores (enquanto romancista, dramaturgo e igualmente poeta em língua portuguesa) da geração literária que tenho a honra de integrar, aditando-se-lhe ainda os celebrados qualificativos de músico-compositor e letrista em língua caboverdiana de grande nomeada, amante e praticante das artes plásticas e pensador-ensaísta da identidade crioula caboverdiana, na senda de tantos Grandes das nossas ilhas e diásporas que nos precederam, com destaque para Amílcar Cabral, o Maior dos Nossos Mortos Imortais ou, como diria o outro não necessariamente cabralista (no caso concreto, Carlos Veiga numa sua importante intervenção enquanto Primeiro-Ministro de Cabo Verde num dos Simpósios Amílcar Cabral realizados pela Fundação homónima) O Mais Grande dos Grandes do Povo das Nossas Ilhas e Diásporas.
Monte Abraão-Queluz, 17 de Maio/18, 19, 20, 21 e 22 de Agosto/12, 19, 22, 23 e 24 de Setembro de 2022
Nota do autor: Constitui o presente ensaio uma versão muito desenvolvida do meu texto de apresentação do livro A Última Lua de Homem Grande, de Mário Lúcio Sousa, lida no dia 17 de Maio de 2022 perante uma sala totalmente lotada do Centro Cultural Cabo Verde (Rua de São Bento, Lisboa), coordenado por José Silva e gerido por Ângela Barbosa, tendo a mesa de apresentação do livro sido constituída, segundo a ordem de apresentação, por Maria do Rosário Pedreira (editora), José Luís Hopffer Almada (poeta e ensaísta), Clara Seabra (professora liceal aposentada), Julião Soares Sousa (historiador), Mário Lúcio Sousa (autor)
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- 1. Poema KABRAL KA MORE! (versão escrita / transcrita segundo o Alupec)
Na libri’l noti mistériu d’Áfrika
na mê di floresta
lumi di oru faiska strela
fumu di prata subi d’insensu
fitiseru labanta tan
Na si odju, si rostu
éra un kusa galanti di konta
más na si mo si mo ndreta
sustedu ku sustentu d’ódiu-l bingansa
staba un lansa rixu di feru pretu
ponta d’asu, oru finu-l marfin
na si boita staba buitus
di tudu fantasma ta badja
Ti kantu luminar paga
nton na matu obidu un djátu,
Kabral ka more!
Lânsia na matu nobidadi-l bu nomi
lânsia na mar lágua burmedju-l bu sangi
lânsia na séu strela nos lus
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Arvi, kutelu, planta, tudu treme
na seti kredu, seti banda`l mundu
stribilin kunsa inda simé
ben ratxa txon na pé di krus
Txoru, sufrimentu, suparason,
ozénsia,
à! distánsia!
Ma korneta dja pupa
dja pupa sangi`l bingansa
ki kudi na monti, na len, na kobon,
pa tudu banda:
À! Kabral!…
Konbersu d’óra e bo na boka
alebu firmi na kada noris,
nton bu sta bibu:
Kabral ka more!
Kabral é noti!
Kabral é konsénsia!
Kabral é bandera!
Kabral é liberdadi!
Djasi e noti`l sonu ki áta korda
na susegu turbulénsia d´Áfrika
pa pusentu d’aima sima nha sonhu
na labada libri ta kore agu…..