O caso Amílcar Cabral. Apontamentos críticos a propósito do princípio e do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde. PARTE 3
IV
O período do pós-25 de Abril de 1974, as dissensões políticas e culturais entre os diversos protagonistas político-partidários em liça e período da transição política para a independência
- 1. A preponderância da via pan-africanista para a independência política das ilhas de Cabo Verde demonstrar-se-ia de forma inequívoca no período imediatamente pós-25 de Abril de 1974 quando, reunidos na Frente Ampla Anti-Colonial (FAAC), os presos políticos, os dirigentes e militantes do PAIGC saídos da clandestinidade política, algumas personalidades avessas ao regime colonial-fascista e os estudantes universitários regressados para a mobilização das populações em prol da independência nacional se declararam de forma esmagadora favoráveis ao PAIGC e aos seus princípios e objectivos e contribuíram de forma decisiva para a larga disseminação dos seus postulados ideológicos e das suas palavras de ordem políticas.
Tanto mais que, como estrategicamente previsível, a luta político-armada conduzida na Guiné- Bissau pelo PAIGC foi de valor determinante para o colapso do fascismo português e para a eclosão do 25 de Abril de 1974, o qual por sua vez inaugurou novas e inéditas perspectivas para o exercício do direito à autodeterminação ao povo caboverdiano e aos demais povos das colónias portuguesas e abriu novas oportunidades democráticas e desenvolvimentistas para o próprio povo português.
Estudantes universitários e liceais e activistas dos centros urbanos ensinavam à juventude curiosa, rebelde e sedenta de acção política a fazer ressoar nas ruas slogans enaltecedores da independência total e imediata, da unidade e luta, da unidade Guiné-Cabo Verde, da unidade e da revolução africanas, da vitória ou morte, da luta continua e contra a reacção invariavelmente botada abaixo. Reacção essa que se ia descredibilizando quer pela sua aliança com aquele que era considerado e invectivado como o mentor intelectual da morte de Amílcar Cabral (o General Spínola) e com as suas teses de reciclagem do adjacentismo no recém-inventado federalismo no seio de uma denominada Comunidade Lusíada, quer com os círculos mais retrógrados da Igreja Católica e das classes e categorias sociais oligárquicas, possidentes e privilegiadas dos meios urbanos e rurais.
A via estritamente nacionalista islenha representada por José Leitão da Graça seria, por sua vez, vítima do regresso tardio às ilhas desse político do seu exílio euro-africano (Senegal, Gana e Suécia) e do amalgamento que se pôde fazer da argumentação crioulista, neo-claridosa e avessa ao projecto cabraliano e paigcista da unidade Guiné-Cabo Verde da corrente política ferreamente nacionalista caboverdiana e de extrema-esquerda maoísta por ele representada com as correntes reacionárias, luso-crioulistas, lusófilas, colonial-saudosistas, adjacentistas/ federalistas e spinolistas, muito devido ao facto de, depois da queda em desgraça do Presidente da República Portuguesa, o General António Ribeiro de Spínola, nos acontecimentos do 28 de Setembro de 1974, muitos dos militantes da UDC (União Democrática de Cabo Verde), de João Monteiro, se terem mudado com armas e bagagens e passado para a UPICV (União do Povo das Ilhas de Cabo Verde), de José Leitão da Graça. Tal amalgamento tem lugar, apesar das discrepâncias político-ideológicas dos dois partidos e da assumida ideologia pan-africanista, como se disse já de um radicalismo de esquerda de feição maoísta e do independentismo soberanista e crioulista integral, porque adverso à unidade Guiné-Cabo Verde, professados pelo veterano resistente anti-colonial José Leitão da Graça. Curiosamente, terá sido a exacerbação de um nacionalismo caboverdiano, alicerçado nas especificidades geográfico-insulanas e culturais mestiças crioulas da caboverdianidade que foram fatais para a conjuntura política de José Leitão da Graça. Sem os pergaminhos míticos de que o PAIGC e os seus dirigentes, combatentes, presos políticos e militantes da clandestinidade eram portadores, o nacionalismo estritamente caboverdiano de José Leitão da Graça era primacialmente dirigido contra os muito vituperados princípio e projecto de unidade Guiné-Cabo Verde apodada de forma recorrente de união forçada com a Guiné, sobretudo numa primeira fase em que o mesmo solitário líder nacionalista e a organização política por ele chefiada exigiam em combativos comunicados (consultar a propósito o livro Golpe de Estado em Portugal…Traída a Descolonização em Cabo Verde!, de compilação por José Leitão da Graça dos documentos, comunicados e memorandos da UPICV) que a questão da unidade Guiné-Cabo Verde fosse objecto preferencial de referendo em lugar da questão da independência, como exigiam os adjacentistas da UDC ou alguns autonomistas, como Henrique Teixeira de Sousa. Por isso mesmo, foi facilmente confundido com a ideologia crioulo-lusitana dos claridosos, na altura em rápido refluxo e acelerado descrédito, do ponto de vista do seu ideário culturalista de promoção da diluição da África na cultura caboverdiana. Nem mesmo o radicalismo de esquerda dos comunicados da UPICV pôde ter acolhimento numa juventude estudantil que, seduzida pelo esquerdismo, o qual fora estigmatizado e desqualificado por Lenine como a doença infantil do comunismo, estava maioritariamente com o PAIGC e com o seu ideário pan-africanista e progressista e começava a digladiar-se abertamente entre as correntes trotskista e maoísta na sua disputa pela liderança do processo independentista e revolucionário então em curso com os chamados vindos de Conacry e das duas Guinés.
Anote-se ainda que, como esclarece o livro Cabo Verde-Os Bastidores da Independência, de José Vicente Lopes, a tentativa de Onésimo Silveira, o conhecido representante do PAIGC na Suécia e na Escandinávia qu se tornou dissidente do mesmo partido depois do trágico assassinato de Amílcar Cabral, e Baltasar Lopes da Silva, um emérito anti-fascista luso-crioulista, de fundação de um partido trabalhista caboverdiano frustrar-se-ia completamente em face da maciça adesão das populações das ilhas ao ideário e ao peso políticos do PAIGC, abertamente apóstolo de uma via socialista de desenvolvimento e de um pan-africanismo propugnador da unidade Guiné-Cabo Verde bem como da unidade e da revolução africanas.
Por sua vez, medidas de grande impacto político foram tomadas ou influenciadas pelas diferentes correntes político-ideológicas conotadas com o PAIGC. Foram os casos da libertação dos presos políticos do Tarrafal, a 1 de Maio de 1974, os confrontos de jovens praienses com os militares portugueses no dia 19 de Maio de 1974, a fundação do jornal independentista Alerta para substituir e em resultado da extinção do oficioso e (arqui-)colonial-fascista semanário O Arquipélago, a recusa dos mancebos caboverdianos aquartelados no Centro de Instrução Militar do Morro Branco, na ilha de S. Vicente, em prestar juramento à bandeira portuguesa, a greve geral da função pública, a ocupação da Rádio Barlavento, a mudança da sua linha editorial para um cariz inequivocamente paigcista e a alteração da sua denominação de Rádio Barlavento para Rádio Voz de S. Vicente, os inumeráveis comícios, sessões de esclarecimento, saraus culturais e outras acções de mobilização política, precedidas sempre e invariavelmente de um minuto de silêncio em memória do “Camarada Amílcar Cabral, Militante Número Um do nosso Partido e Herói do nosso Povo na Guiné e em Cabo Verde”, bem como de outros mártires guineenses e caboverdianos tombados na luta político-armada na Guiné, como Domingos Ramos, Jaime Mota, Justino Lopes ou Titina Silá, e preenchidas com slogans e excursos político-heróicos às tragédias e histórias do sofrimento dos caboverdianos, destacando-se sempre a escravatura, as fomes, a emigração forçada e o trabalho servil e semi-escravo nas roças de São Tomé e Príncipe e Angola, os inumeráveis vexames sofridos às mãos dos morgados e das autoridades coloniais (incluindo as religiosas), a lendária resistência anti-colonial do povo caboverdiano consubstanciada nas revoltas dos Engenhos, da Achada Falcão e de Ribeirão Manuel (ainda os Valentes de Julangue não eram conhecidos e rememorados) e nas figuras de Lázaro, o Salteador sedento de justiça social, e do Capitão Ambrósio, a denúncia da repressão das “nossas manifestações culturais mais genuínas” (com destaque para o batuco, a tabanca, o funaná, o colá sanjon), do inculcamento colonial da vergonha em relação às nossas características raciais de feição ou matriz negras, enfim, quase tudo o que tinha sido aflorado em 1962 por Manuel Duarte no panfleto político “Cabo Verde e a Revolução Africana”, assinado por A. Punói. Tudo muito regado a música revolucionária, nossa e dos outros africanos (com especial destaque para José Carlos Schwarz e os Cobiana Jazz, da Guiné-Bissau), e de muita “poesia de protesto e luta”, da autoria de poetas cabo-verdianos, africanos e progressistas do mundo inteiro. Nos comícios e sessões de esclarecimento, jovens e adolescentes recitavam com fervor “Labanta bo anda fidjo di África/ labanta negro/ obi grito’l povo/África Djustisa Liberdadi” do poema “Labanta, Negro”, de Kaoberdiano Dambará, e os versos de outros poemas, tais o “Poema de Amanhã”, de António Nunes, “Kabral ka More”, de Emanuel Braga Tavares, “Caminho Longe” e “Capitão Ambrósio”, de Gabriel Mariano, “Canta co alma sem ser magoado” e “Toti Cadabra”, de Arménio Vieira, “Bandera di Strela Negro (Black Star Over Africa”)” e “Batuco”, de Kaoberdiano Dambará, “Flagelados do Vento Leste”, de Ovídio Martins, “Poeta e Povo”, de Aguinaldo Fonseca, “Um Poema Diferente”, “Hora Grande” e “Têtêia”, de Onésimo Silveira, “Casebre”, de Jorge Barbosa”, “Ressaca”, de Osvaldo Alcântara”, entre outros também de outros poetas caboverdianos e africanos contestatários ou de denúncia social e política, e entoavam “Sol, Suor e o Verde Mar , de Amílcar Cabral e hino do PAIGC e da Guiné-Bissau, “Guerra Mendes”, de Abílio Duarte “Tchom di Morgado”, de Caló Querido, “Korda Skrabo”, “Minino Manso” e “Amílcar Cabral, Bu Mori Cedo”, de Tony Lima e do grupo Kaoguiamo, “Cabral ca Morre”, de Daniel Rendall, “Nos Raça”, de Manuel de Novas, entre muitas outras canções em voga nesses tempos de renovação da música caboverdiana, em especial das suas letras.
Nesta fase, em parte coincidente com a queda do fascismo em Portugal e em Cabo Verde, os princípios pan-africanistas e da unidade Guiné-Cabo Verde incorporados e defendidos no ideário político do PAIGC revelaram-se como encerrando um grande poder mobilizador.
2. Releva nesta circunstância o profundo e subliminar significado da proclamação, a 24 de Setembro de 1973, ainda no calor da guerra colonial/da luta armada de libertação (bi)nacional, do Estado independente e soberano da Guiné-Bissau, do qual Cabo Verde não fazia, nem podia fazer parte, quer por razões sumamente candentes e irrenunciáveis, porque fundadas na identidade própria do povo das ilhas e na intangibilidade das fronteiras do seu arquipélago, sendo que todas elas se funda(va)m em princípios de Direito Internacional Público imperativo (jus cogens), designadamente no princípio (direito) da autodeterminação e da independência dos povos coloniais e no princípio da intangibilidade das fronteiras herdadas do colonialismo, princípios esses consagrados em vários instrumentos jurídicos internacionais, designadamente na Carta das Nações Unidas, na Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral das Nações Unidas e na Carta da Organização da Unidade Africana (OUA).
Relembre-se neste contexto que na sua Mensagem de Ano Novo de 1973, considerado o seu Testamento Político, Amílcar Cabral arquitectara a proclamação de um Estado independente e soberano bissau-guineense pela Assembleia Nacional Popular (ANP) desse povo africano (e cujo processo de eleição indirecta estaria quase concluído com a eleição já realizada dos conselheiros regionais no seio dos quais sairiam os deputados à supra-referida ANP), e, posteriormente, a proclamação de um Estado independente e soberano caboverdiano, após a criação das devidas condições político-institucionais para o efeito, designadamente a eleição de uma Assembleia Nacional Popular caboverdiana. Esse Estado independente e soberano caboverdiano deveria ser distinto do Estado independente e soberano bissau-guineense, mesmo se Cabral continuava a almejar a associação entre ambos os Estados e a pugnar pela união orgânica de ambos, antevendo para prazo não muito longínquo a criação de uma Assembleia Suprema do Povo dos dois países, desde que assim fosse a vontade expressa dos respectivos povos para o efeito consultados e/ou das respectivas Assembleias Nacionais Populares. Como anteriormente referido, já no Memorando apresentado ao Governo português no ano de 1960, Cabral defendera, de forma inequívoca, a existência prévia de poderes soberanos independentes em cada um dos dois países como pressuposto jurídico-constitucional e político-institucional para qualquer eventual unidade orgânica entre os mesmos.
3.Acontecimentos de grande relevância política rodeiam esta fase de aceleração da internalização insular dos princípios pan-africanistas conexos com o projecto de unidade Guiné-Cabo Verde. São os casos do sucessivo regresso a Cabo Verde, ao longo do ano de 1974 e a partir do mês de Maio, dos combatentes e de dirigentes do PAIGC, como Zezé Manco, Toi de Suna, Lela Guerrilheiro, Henrique Pereira, Maria das Dores Silveira, Zezinha Chantre, Paula Fortes, Lilica Boal, Alexandre Alhinho, Corsino Tolentino, João Pereira Silva, Tchifon, João José Lopes da Silva (Jota-Jota), Álvaro Dantas Tavares, Carlos Reis, Agnelo Dantas, Olívio Pires, Osvaldo Lopes da Silva, Silvino da Luz, Pedro Pires, entre muitos outros dirigentes, responsáveis, comandantes, combatentes e militantes caboverdianos do PAIGC radicados nas duas Guinés, culminando, já a 27 de Fevereiro de 1975, na chegada à cidade da Praia de Aristides Pereira, Secretário-Geral do PAIGC, todavia permanecendo na Guiné-Bissau o membro do Secretariado e do CEL do PAIGC José Araújo e os Comandantes Honório Chantre e Júlio de Carvalho integrados nas FARP, na altura ainda exclusivas da Guiné-Bissau.
Relevante no que se refere a Aristides Pereira parece ter sido a sua implícita recusa de o mais alto dirigente político caboverdiano em assumir de forma imediata a candidatura à Presidência de uma República Unida da Guiné e Cabo Verde, a ser proposta à reunião do Conselho Executivo da Luta, e que teve lugar a 25 de Maio de 1975, menos de dois meses antes da proclamação da independência política das ilhas caboverdianas programada para 5 de Julho de 1975. É nessa sequência que Aristides Pereira é formalmente indigitado pelo alto órgão executivo do PAIGC para se apresentar à ANP caboverdiana como candidato único do partido para exercer o alto cargo de Chefe de Estado caboverdiano, isto é, de Presidente da República de Cabo Verde e Pedro Pires é escolhido pela ANP, por proposta do Presidente da República também eleito pela ANP, para ser o primeiro Primeiro-Ministro do Cabo Verde independente.
Relembre-se que a 30 de Junho de 1975 tiveram lugar as eleições para a Assembleia Legislativa soberana e constituinte do Estado de Cabo Verde, apresentando-se às mesmas eleições e nos termos da lei eleitoral vigente grupos de cidadãos total e completamente dominados pelo PAIGC, o qual, aliás, vinha agindo como partido único de facto desde a neutralização política dos partidos adversários do PAIGC na sequência dos acontecimentos que levaram em Dezembro de 1974 ao encarceramento de alguns dos seus altos responsáveis e importantes militantes no Presídio do Tarrafal (ainda que em regime de recreio).
As eleições de 30 de Junho de 1975 tiveram uma elevada participação com mais de oitenta por cento de votos sim, isto é, favoráveis aos candidatos apresentados nas listas dos grupos de cidadãos emanados do PAIGC. Por isso, e porque destituídas da competitividade entre programas políticos apresentados por candidatos de diferentes forças políticas, as mesmas eleições afiguraram-se como de natureza eminentemente referendária ou plebiscitária. Na verdade, elas vieram ratificar os acontecimentos de Dezembro de 1974, consagrando a um tempo i. o regime político de partido único do PAIGC; ii. o carácter socializante desse mesmo regime político e iii. o princípio e o projecto cabralistas de unidade Guiné.-Cabo Verde e de união orgânica pós-colonial entre as Repúblicas da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. É, assim que a recém-eleita Assembleia Legislativa soberana e constituinte se transfigura em Assembleia Nacional Popular, procede à proclamação da independência política e da soberania nacional e internacional do Estado de Cabo Verde a 5 de Julho de 1975, elege o Presidente da República, o Primeiro-Ministro e o Presidente da Assembleia Nacional Popular, proclama pela voz deste último a República de Cabo Verde livre, independente e soberana, e aprova uma LOPE (Lei da Organização Política do Estado), até ser aprovada a primeira Constituição Política da República de Cabo Verde, parecendo assim dar sequência aos trâmites todos previstos nos Acordos de Lisboa celebrados pelo Governo português e pelo PAIGC. Anote-se que Pedro Pires era o putativo candidato à Presidência da República de Cabo Verde, caso Aristides Pereira quisesse aguardar a assunção da Presidência de uma eventual República Unida da Guiné e Cabo Verde e não houvesse a alegada oposição de Luís Cabral, Secretário-Geral Adjunto do PAIGC e Presidente do Conselho de Estado (equiparado a Presidente da República) da Guiné-Bissau, à pretensão de Pedro Pires, apoiada pela Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC, de que Pedro Pires era o Presidente.
O regresso apoteótico de Aristides Pereira a Cabo Verde em 27 de Fevereiro de 1975, e, depois, o seu regresso definitivo ao país natal com vista à assunção do cargo de Presidente da República de Cabo Verde, mesmo se conservando o altíssimo cargo supra-nacional de Secretário-Geral do PAIGC e, deste modo, a pretensão a uma futura Presidência de uma eventual República Unida da Guiné e Cabo Verde, bem assim os demais actos acima mencionados são de indubitável importância, quer para o condicionamento da abertura de uma via que se poderia demonstrar como sem retorno para o processo pós-colonial da união orgânica entre a Guiné e Cabo Verde (pelo menos na vigência do regime de partido único ou até à eclosão, sempre eminente, de um golpe de força militar similar ao despoletado a 14 de Novembro de 1980), quer para o correlativo aplainamento prático de uma via mais inequivocamente soberanista caboverdiana. Estamos em crer que essa via foi sempre perscrutada como opção fundamental pelos patriotas e nacionalistas caboverdianos integrados no partido bi-nacional, o PAIGC, e veio dar razão aos que defendiam com convicção que cada tiro disparado na Guiné, mormente se o fosse por um combatente caboverdiano, era um tiro disparado pela independência de Cabo Verde e, assim, intentavam legitimar o que consideravam ser o seu inequívoco nacionalismo caboverdiano. Tanto mais que, argumentavam, o caminho da Guiné só foi definitivamente encetado por se ter mostrado praticamente impossível levar a cabo uma luta armada não suicidária em Cabo Verde, depois de haver um grupo previamente preparado na Argélia, em Cuba e na União Soviética para o efeito, operacionalmente conduzido pelo Comandante então em ascensão, Pedro Pires, e superior e directamente liderado por Amílcar Cabral, e depois, em resultado de uma decisão do II Congresso concretizadora de um dos itens do Testamento Político (Mensagem do Ano Novo de 1973), com uma efectiva estrutura dirigente nacional caboverdiana estabelecida nas duas Guinés, a Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC, e, por isso, paralela ao Comité de Coordenação da luta política clandestina em Cabo Verde e liderada por Jorge Querido, que, vítima de intrigas intra-partidárias dos seus adversários trotkistas do Comité de Coordenação de Portugal, é suspenso no imediato pós-25 de Abril de 1974, não tendo sido nunca integrado na acima referida Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC.
Por sua vez, argumentavam, sem a participação caboverdiana na luta político-armada na Guiné não seria possível (ou seria extremamente difícil) fazer vingar junto das autoridades portuguesas o direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e à independência, negado ou relativizado por aqueloutros caboverdianos que ainda navegavam nas águas quer de “uma autonomia político-administrativa no quadro de uma Nacão portuguesa doravante progressista”, como defendia o médico e escritor anti-fascista Henrique Teixeira de Sousa, quer do federalismo adjacentista spinolista, comummente considerados como modelos apressados e oportunistas de reciclagem do mal-fadado adjacentismo político-cultural de msatriz colonial.
A independência política de Cabo Verde ocorreria, assim, em condições assaz favoráveis, na medida em que foi possível chegar-se a dois objectivos cruciais:
a) A obtenção de uma ampla adesão popular para a causa da independência política, sobretudo entre as camadas jovens e urbanizadas. Para esse efeito, foram decisivas tanto a catarse cultural no sentido da libertação da plenitude da identidade caboverdiana e da recuperação da dimensão afro-crioula, da co-matriz afro-negra e da margem continental africana da mesma identidade como também a euforia e a confiança no futuro da nossa terra despoletadas com as lutas políticas no pós-25 de Abril.
Tais estados anímicos foram potenciados, em grande medida, pela participação caboverdiana não só na guerra de libertação (bi)nacional levada a cabo com sucesso na Guiné-Bissau como também na saga heroica anti-colonial realizada nas difíceis condições da clandestinidade política nas ilhas e tornada visível na libertação dos presos políticos do Tarrafal de Santiago, logo no primeiro de Maio de 1974, no regresso dos presos políticos do Campo de São Nicolau localizado na Foz do Cunene no deserto do Namibe, no regresso triunfal e apoteótico daqueles militantes, combatentes, responsáveis e dirigentes caboverdianos directamente engajados na luta político-armada na Guiné-Bissau e/ou comprometidos na luta político-diplomática do PAIGC irradiada pelo mundo a partir da Guiné-Conacri, tendo sido de transcendente importância a mitificação de Amílcar Cabral quer como um profeta e sábio, tal Moisés negro, que não pôde pisar a Terra Prometida da Guiné e de Cabo Verde totalmente libertada do jugo colonial-fascista português, quer ainda como um Messias negro e combatente, tal um Jesus Cristo afro-crioulo.
Tais acontecimentos demonstraram-se como sumamente necessários para uma catarse psicológico-cultural de amplas repercussões identitárias e político-ideológicas e, assim, para a total ruptura com o assimilacionismo colonial e a tutela assistencial portuguesa, considerada até aí tanto em franjas extensas das camadas mais humildes e vulneráveis das populações como também por importantes sectores das elites letradas, burocrático-administrativas e comerciais do povo das ilhas como indispensável, senão insubstituível, para a viabilização da emigração caboverdiana para Portugal, para a manutenção dos planos de fomento e dos trabalhos públicos de apoio às populações (vulgarmente conhecidos como trabalhos de estrada), para o fornecimento num quadro suficientemente estável de todos os géneros de mercadorias e produtos comerciais e, assim, para a garantia da simples sobrevivência física das camadas sociais humildes e vulneráveis do povo caboverdiano e para a manutenção do nível de vida a que se habituaram as camadas sociais mais remediadas e abastadas das nossas ilhas.
b) A captação de recursos, de diversos quadrantes político-ideológicos, necessários, senão indispensáveis, para a viabilização do jovem Estado nacional independente e soberano, para a sobrevivência do seu povo, apavorado pela ameaça das fomes, e para a criação e potenciação de força anímica com vista à prossecução do futuro desenvolvimento sustentado do país.
Como é reconhecido pelo próprio Onésimo Silveira (mesmo se com algum contra-gosto), o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde consubstanciado na unidade de acção entre guineenses e caboverdianos comprovou-se, assim, historicamente como de grande utilidade e de inegável relevância para a obtenção da independência política dos povos da Guiné e de Cabo Verde.
V
A fase pós-colonial da aplicação do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e a emergência dos Estados independentes e soberanos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, a liderança político-partidária bi-nacional e as vicissitudes pós-coloniais do projecto de união orgânica dos dois países
Conquistadas as independências políticas e as soberanias nacionais e internacionais dos povos da Guiné e de Cabo Verde, inicia-se uma segunda fase no entendimento e na implementação do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde por parte dos nacionalistas caboverdianos e bissau-guineenses comprometidos com o PAIGC e alcandorados ao poder político no quadro de um regime de partido único bi-nacional.
Institucionalmente inaugurada com a proclamação da República de Cabo Verde, a 5 de Julho de 1975, essa fase indicia-se simbolicamente com o assassinato de Amílcar Cabral (como se referiu, motivado, directa e imediatamente, nas suas origens familiares e na sua identidade cultural caboverdianas, apesar da sua naturalidade guineense, do seu notável contributo para a libertação do povo da terra onde nasceu e graças a cuja luta heróica ganhou notoriedade internacional, bem como da sua posterior identificação com a comunidade política emergente com a guerra de libertação nacional e que ele próprio denominou a nossa nação africana forjada na luta e da consequente emergência da sua bi-patridia política.
Nessa fase pós-colonial, o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde é remetido a um duplo e dúbio estatuto:
i) De fundamento ideológico e legitimador do Partido Africano da Independência, o PAIGC, doravante jurídico-constitucionalmente instituído pela LOPE (Lei de Organização Política do Estado), de 5 de Julho de 1975, como força política dirigente da sociedade caboverdiana, isto é, como centro político de um regime autoritário de partido único, estatuto esse que foi consagrado na Constituição da Guiné-Bissau de 24 de Setembro de 1973 e é sancionado e relegitimado pelos artigos 3º e 4º da Constituição de Cabo Verde de Setembro de 1980 (a primeira do Cabo Verde independente), os quais passam a regular e tornam extensivo ao Estado esse mesmo estatuto de omnipotência e monopólio políticos.
Sublinhe-se que tal estatuto se apoiou largamente na disseminação da crença, segundo a qual o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde seria indiscutível em si mesmo, porque concebido pelo génio singular e insubstituível de Amílcar Cabral e comprovado na praxis histórica da luta anti-colonial como indispensável para a conquista da independência política e da soberania nacional e internacional da Guiné-Bissau, mas sobretudo e especialmente para a obtenção das até então impensáveis independência política e soberania nacional e internacional de Cabo Verde, e, assim, para a criação nos dois países de alternativas africanas às dependências colonial e neo-colonial.
ii) De pública profissão de fé no princípio e de ansiosa e pragmática expectativa quanto à sua implementação prática.
No período que se seguiu à proclamação da independência política da Guiné-Bissau a 24 de Setembro de 1973 e ao seu posterior reconhecimento por parte da ex-potência colonial a 10 de Setembro de 1974, bem como à instituição, em fins de Dezembro de 1974, do Governo de Transição em Cabo Verde e, depois, à proclamação da soberania nacional e internacional plena do país afro-atlântico e peri-africano, procedeu-se prioritariamente à edificação ou à reconstituição dos alicerces das instituições nacionais no quadro de um regime de partido único bem assim à adopção de medidas urgentes para a satisfação das necessidades básicas das populações.
Neste contexto social e político, de euforia democrático-revolucionária dos caboverdianos e do seu engajamento de corpo inteiro na chamada saga da reconstrução nacional do país, a prevista união orgânica entre as Repúblicas da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, embora abordada com alguma veemência retórica e encarada com indisfarçável urgência no Comunicado do Conselho Executivo da Luta do PAIGC, de 25 de Maio de 1975, e apesar de tida como vocação histórica do povo das ilhas no Texto da Proclamação Solene da Independência Política de Cabo Verde lido por Abílio Duarte, a 5 de Julho de 1975, no Estádio da Várzea da cidade da Praia, foi sendo sucessivamente adiada ou, até, postergada para um futuro cada vez mais nebuloso e longínquo.
A extensão para as condições da pós-colonialidade da aparente sacralização do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde por parte de Amílcar Cabral e da sua intolerante dogmatização política por parte dos seus émulos e seguidores partidários demonstrar-se-ia como diferente nos seus efeitos político-estratégicos e foi, por isso, vista como dúbia, senão intolerável, do ponto de vista social e político-cultural, por parte de franjas importantes da sociedade caboverdiana, sobretudo as emigradas, fortemente assediadas pelas forças remanescentes da UPICV e da UDC, parcialmente reorganizadas no âmbito da UCID (União Cabo-Verdiana Independente e Democrática), fundada na Holanda a 13 de Maio de 1978. Argumentava-se tanto nos bastidores do nacionalismo revolucionário caboverdiano, como no seio da oposição ilegalizada, que outras correlações de forças socio-políticas e novas esperanças e perspectivas vieram abrir-se no processo da construção do progresso e da indagação dos caminhos para um desenvolvimento efectivo e auto-sustentado, sobretudo no que se refere a Cabo Verde.
Na verdade, puderam fazer a sua irrupção, relativamente exitosa porque coroada de algum sucesso durante um certo período de tempo, na história do povo das ilhas novos instrumentos e procedimentos de legitimação política e novos processos de engendramento do crescimento económico-social com vista ao desenvolvimento geral do país, com destaque para as retóricas da edificação no solo das ilhas de uma economia nacional independente resultantes da estratégia político-económica deliberada pelo único Congresso do PAIGC realizado no período pós-colonial, o célebre III Congresso, de Novembro de 1977, para ser aplicada nos dois países governados por esse partido bi-nacional.
Em Cabo Verde, as retóricas acima referidas e a estratégia político-económica na qual se sustentavam seriam objecto de tentativas várias de implementação por via da construção e/ou melhoria de algumas infra-estruturas rodoviárias, portuárias e aeroportuárias, do estabelecimento de empresas públicas nos domínios do controle do comércio externo e do abastecimento das populações com produtos básicos, dos transportes marítimos e rodoviários, das telecomunicações, das indústrias têxteis e alimentares (com vista sobretudo à substituição das importações). Todavia, a sua implementação aliava-se sempre à prática da reciclagem da ajuda externa e das remessas de emigrantes (tida então, nas palavras de José Carlos dos Anjos, como a expressão máxima da sagacidade dos dirigentes do país) e, sublinhe-se, seria fortemente limitada por uma ambiência geral marcada pela recorrência de secas cíclicas e pela consequente necessidade do recurso permanente a programas de emergência financiados pela comunidade internacional para a salvação colectiva, a par de alguns tentâmes no sentido da melhor exploração da posição geo-económica do país, tentâmes esses que, mais tarde, se concretizariam nas políticas do desenvolvimento tripolar do país-arquipélago centrado na cidade da Praia e nas ilhas de S. Vicente e do Sal e culminariam, já nos fins dos anos oitenta do século XX (1988) e ainda em plena vigência do regime de partido único, na liberalização da parte económica da Constituição Política da República, de Setembro/Fevereiro de 1980 e na adopção da política de extroversão económica do país.
Cabe destacar, neste contexto, o mais sacralizado de todos os mecanismos político-institucionais nascidos com o 5 de Julho de 1975: um Estado-nação, o Estado nacional dos caboverdianos, formalmente assente na vontade popular e na unidade e na soberania dos órgãos do poder de Estado legitimamente constituídos.
O jurista Manuel Duarte encarregar-se-ia de, sem prejuízo da reiteração da sua profissão de fé no projecto de unidade Guiné-Cabo Verde, fundamentar em estudo jurídico-político (agora constante do livro póstumo Cabo-Verdianidade e Africanidade, e Outros Textos) as perspectivas e os constrangimentos inerentes à associação política entre duas nações culturalmente distintas e geograficamente distantes, para mais constituídas em Estados independentes e soberanos em tempos históricos diferentes, ainda que assentes numa mesma génese libertária e lideradas pelo mesmo movimento de libertação bi-nacional, agora no poder e inseridos numa mesma época de ruptura anti-colonial, aliás, marcada por algum atraso em relação aos demais países vizinhos.
Já no Texto da Proclamação Solene da Independência de Cabo Verde, e não obstante aí se pugnar por “um destino africano, livremente escolhido pelo povo de Cabo Verde” bem assim, e tal como anteriormente referido, pela “sua vocação histórica para estabelecer”, após consulta popular, “laços de unidade com a República irmã da Guiné-Bissau”, o povo de Cabo Verde é exaltado como nação dotada de identidade cultural própria, forjada durante um processo histórico multissecular marcado por múltiplos actos de resistência e por revoltas de diversa índole.
Essa óptica ficou reforçada nas resoluções emanadas do III Congresso do PAIGC (de 1977), o qual se encarregaria de inequivocamente ratificar e politicamente consagrar os subsídios teóricos fornecidos por Manuel Duarte (e também por Renato Cardoso, como se verifica num dos textos da sua co-autoria publicados em Cabo-Verdianidade e Africanidade, e Outros Textos).
Nesses documentos, o PAIGC adaptou às condições pós-coloniais a chamada concepção dinâmica da unidade Guiné/Cabo Verde. Nos termos dessa concepção, os dois povos passaram a ser inequivocamente considerados como nações politicamente soberanas e culturalmente distintas, ainda que irmanadas pela história, pelo sofrimento e pela busca de um destino africano partilhado. A par do afastamento geográfico, do reconhecido défice de conhecimento recíproco entre os dois povos (sobretudo do caboverdiano das ilhas em relação ao bissau-guineense), da praticamente nula integração económica e socio-cultural entre os dois países, passaram tais considerandos nacionais, de fortes implicações soberanistas, a ser entendidos como pressupostos indeclináveis para a problematização da questão da unidade e para a configuração do futuro rosto das instituições conjuntas que eventualmente pudessem ser estabelecidas entre os dois países.
Ainda que pugnando, do ponto de vista retórico, pelo contínuo engajamento dos dois povos no processo de edificação de uma pátria africana una, progressista, solidária e fraterna, num futuro quadro unitário e solidário, consideravam os teóricos do PAIGC que esse processo deveria ser gradual, progressivo e devidamente alicerçado na construção das indispensáveis bases económicas e técnico-materiais. Estas bases eram consideradas como indispensáveis para uma segura integração económica bem como para a criação das condições para uma maior aproximação humana e um maior inter-conhecimento entre os dois povos, o qual deveria ser acelerado mediante um crescente e necessário intercâmbio, inclusive cultural, entre os mesmos. Seriam essas condições objectivas e subjectivas que deveriam sedimentar o auto-convencimento popular do bem fundado e dos benefícios práticos advenientes da unidade na sua futura configuração numa união orgânica, considerada a forma privilegiada da ulterior integração política dos dois países mas sem que se tivesse procedido a uma qualquer caracterização política e jurídico-constitucional dessa mesma união orgânica.
Sintetizando, ajuizava-se que a união orgânica que desse processo gradual pudesse emergir só seria possível a médio e/ou longo prazo.
De grande relevância foi outrossim a paulatina autonomização dos ramos nacionais do PAIGC, tornada especialmente irreversível com a implantação desse partido em todo o território insular caboverdiano no período pós-25 de Abril de 1974 e com a consolidação dessa implantação no período pós-colonial com a sua transformação em movimento de libertação nacional no poder dotado dos recursos materiais, humanos e simbólicos que lhe advinham do seu estatuto político-jurídico e factual de força política dirigente da sociedade e do Estado.
Tal facto acarretou duas consequências de monta:
a) O aumento da propensão soberanista dos ramos nacionais do PAIGC e, consequentemente, dos Estados-nação que dirigiam, com o progressivo esvaziamento dos órgãos supra-nacionais do PAIGC (Conselho Superior de Luta, Comité Executivo de Luta, Comissão Permanente, Secretário-Geral, Secretário-Geral Adjunto e Secretariado Executivo) de efectiva capacidade decisória no plano supra-nacional, mesmo com a formal e nominal manutenção das suas atribuições e competências estatutárias. Dessa factualidade resultou o correlativo enfraquecimento das principais estruturas institucionais de salvaguarda e de garantia do princípio da unidade num quadro formal de regime de partido único bi-nacional. Sintoma dessa tendência foi a denominação PAIGC/CV, corrente no período pós-Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990, para (des)qualificar o ramo caboverdiano do Partido Africano da Independência da Guiné e de Cabo Verde. Ainda que essa mesma denominação pudesse também ser entendida como um estratagema de combate ao nacionalismo revolucionário integrante da ideologia e da prática políticas do PAIGC, considerado pelos inimigos e adversários tradicionais do cabralismo como estando ainda presente na teoria e na práxis do PAICV, partido que, aliás, se considerava e se proclamava como herdeiro caboverdiano legítimo e credenciado do passado de luta e do legado político-ideológico do PAIGC e do pensamento doutrinário de Amílcar Cabral.
b) A progressiva implantação dos combatentes caboverdianos (chamados, na altura, Grupo de Conacry, e, depois, Grupo de Cuba pelos seus rivais oriundos da luta clandestina anti-colonial) no solo das ilhas e o aprofundamento dos seus conhecimentos em relação às mentalidades e idiossincrasias do povo das ilhas, do qual viveu fisicamente afastado durante a luta político-militar e diplomática levada a cabo a partir da Guiné-Bissau, da Guiné-Conacri e de vários lugares exteriores ao Império Colonial Português.
Como assinala Humberto Cardoso no livro O Partido Único em Cabo Verde - Um Assalto à Esperança, esses conhecimentos demonstraram-se como fundamentais nas estratégias de busca de renovação no terreno restrito das ilhas, sobretudo no período pós-14 de Novembro de 1980, de uma controversa legitimidade histórica, eventualmente adquirida no campo da luta político-militar nas terras-longe guineenses, e sujeita a rápidos processos de desgaste nas condições autoritárias, ainda que mitigadas, de um regime de partido único. A concretização dessas estratégias de legitimação política foi sobremaneira dificultada devido não só às divergências interpartidárias e às sequentes purgas e dissidências maoísta, trotskista e outras dos antigos militantes da clandestinidade (com destaque para as de Jorge Querido, logo no imediato pós-25 de Abril, e a trotskista de 1979) como também ao seu estabelecimento e à sua indagação num país muito aberto ao Ocidente político e cultural e ao seu modelo democrático pluralista e dele economicamente muito dependente.
Na nossa opinião, acrescia sobremaneira no sentido da sua legitimação aos olhos das populações caboverdianas, o engajamento dos Combatentes da Liberdade da Pátria, agora como dirigentes e representantes do Estado independente e soberano caboverdiano, na luta pela captação de recursos externos e sua posterior reciclagem e redistribuição internas com o fito da sobrevivência do país e da melhoria das condições de vida das suas camadas sociais mais humildes e vulneráveis, nos planos da saúde, da educação, da cultura e, mais genericamente, da dignidade da pessoa humana.
Neste quadro e para além do papel de legitimação acima referido, parece incontornável para a compreensão da subsistência no período pós-independência das instituições incorporadoras do projecto da unidade Guiné/Cabo Verde, o papel que implicou a existência na Guiné-Bissau de uma comunidade de origem caboverdiana e de um regime político, o de Luís Cabral, o qual parecia rever-se completamente no nacionalismo revolucionário e no princípio da unidade Guiné-Cabo Verde, pois que neles se inspirava, se renovava e procurava legitimar-se quase que quotidianamente. A unidade Guiné/Cabo Verde parecia significar no plano interno da sociedade bissau-guineense a unidade nacional entre todos os seus grupos étnicos negro-africanos, crioulos e outros, sob uma incontornável hegemonia social da minoria étnico-nacional crioula, nativa da Guiné mas maioritariamente de origem caboverdiana. Teria sido uma fracção dessa minoria étnico-nacional a principal interessada na manutenção do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e na sua maior institucionalização nas condições pós-coloniais de existência do país africano continental-insular.
Neste contexto, que também era de indagação e de busca de caminhos, a programada unidade orgânica entre os dois países oeste-africanosfoi sendo reiteradamente proclamada, mas sucessivamente adiada.
No plano das relações entre os dois países, a implementação do princípio da unidade Guiné/Cabo Verde ficou-se pela realização de escassas e periclitantes medidas, a maioria com forte carácter simbólico. São os casos de:
a) Uma cada vez mais difusa supra-nacionalidade do partido único, detentor do monopólio do poder político nos dois países independentes e soberanos, transfigurado de forma eufemística na figura jurídico-constitucional de força política dirigente do Estado e da sociedade, alegadamente enquanto movimento de libertação nacional no poder.
b) O estatuto de igualdade civil e política dos cidadãos dos dois países numa época em que eram raros os guineenses que frequentavam as ilhas caboverdianas e nelas residiam.
c) A criação de algumas empresas mistas, sobretudo no domínio dos transportes marítimos, como foi o caso da NAGUICAVE.
d) A institucionalização de algumas estruturas estatais bi-nacionais, como o Conselho da Unidade (de natureza inter-parlamentar) e a Conferência Intergovernamental, a Comissão de Defesa e Segurança, de carácter partidário, supra-estadual e supra-nacional e que superintendia nas questões das forças armadas nominalmente comuns, as FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo), e outras formas assaz fluídas de cooperação intergovernamental, notoriamente distantes de formas mais avançadas e convincentes de integração económica ou, ainda menos, política.
e) A adopção no Primeiro Colóquio Linguístico sobre a Escrita do Crioulo (mais conhecido e celebrizado como Colóquio do Mindelo de 1979) de um alfabeto de base fonético-fonológica fortemente influenciado pelo Alfabeto Fonético Africano e que, como constatado na altura por Mário Pinto de Andrade, deveria ter em conta, e teve efectivamente em conta, as flagrantes semelhanças linguísticas entre os crioulos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau e a premência da adopção de normas comuns para a escrita de ambos.
Como se depreende dos documentos do PAIGC (sobretudo dos emanados do seu III Congresso, de Novembro de 1977) e dos pareceres de Manuel Duarte e Renato Cardoso sobre esta matéria (publicados postumamente, como já referido, em Cabo-Verdianidade e Africanidade, e Outros Textos, de Manuel Duarte), o modelo da unidade orgânica, o qual, tal como se previa na primeira Constituição de Cabo Verde (de Setembro de 1980), deveria ser aprovado formalmente em consulta popular, permaneceu incerto, acabando por se transformar num tabu, antes de se desmoronar completamente com o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, perpetrado por Nino Vieira contra Luís Cabral, a sequente criação do PAICV (Partido Africano da Independência de Cabo Verde) a 20 de Janeiro de 1981 e o desaparecimento/dissolução/extinção do PAIGC como partido bi-nacional e força política dirigente dos Estados e das sociedades da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, ficando o desaparecimento/dissolução/extinção do antigo partido bi-nacional e a transformação do seu ramo insular em partido nacional caboverdiano dotado de todos os recursos e prerrogativas de força política dirigente da sociedade e do Estado de Cabo Verde devidamente ratificados e consagrados pela revisão de Fevereiro de 1981 da Constituição caboverdiana de Setembro de 1980, na ,mesma sessão legislativa da Assembleia Nacional Popular na qual a mesma Constituição de Setembro de 1980 entrou e se manteve em vigor, ainda que por muito escassas horas.
De todo o modo e independentemente da subsistência da boa-fé dos protagonistas bissau-guineenses e caboverdianos, em especial na sequência dos eventos relacionados com o assassinato de Amílcar Cabral e com o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, liderado por João Bernardo (Nino) Vieira, constata-se com alguma clareza que a eventual união orgânica entre a Guiné e Cabo Verde foi sempre rodeada de muitos mistérios e de algumas mistificações, a que não escaparam nem os mais consistentes teóricos nem tão pouco os mais altos dirigentes políticos do PAIGC.
VI
O colapso e a falência pós-coloniais do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e do projecto de união orgânica entre as repúblicas da Guiné- Bissau e de Cabo Verde
Tornadas (quase) insanáveis as fissuras provocadas especialmente pelas circunstâncias etnicamente marcadas do assassinato de Amílcar Cabral, está-se em crer que a não completa cicatrização das feridas provocadas pelo trágico e infausto acontecimento radicasse na pouca (ou nula) crença que alguns dos seus principais defensores públicos passaram a depositar na pertinência pós-colonial do princípio da unidade Guiné/Cabo Verde e na viabilidade do projecto dele decorrente de união orgânica entre os dois países. Na verdade, é crível que esses dirigentes tivessem pensado que estariam esgotadas as potencialidades emancipatórias do princípio da unidade Guiné/Cabo Verde e, nessa sequência, do projecto da união orgânica dos dois países, paradoxalmente devido ao pleno sucesso da operacionalização no terreno da luta do princípio das unidade Guiné/Cabo Verde e da união orgânica das forças patrióticas e nacionalistas dos dois países no seio do PAIGC para a conquista das independências políticas e das soberanias nacionais e à emergência dos dois povos nos palcos da história na busca de afirmação nacional e da resolução de problemas e conflitos internos, próprios a cada uma das respectivas sociedades. Deste modo, tornou-se quase inevitável o ulterior bloqueio pós-colonial do processo de união orgânica entre as Repúblicas irmãs da Guiné-Bissau e de Cabo Verde ou, pelo menos, a desaceleração do entusiasmo mobilizador que esse princípio pan-africanista suscitara para a luta anti-colonial galvanizando importantes sectores das duas sociedades e engendrando a unidade suficiente para a sua emancipação política.
Parecendo que não e apesar das cautelas postas na implementação prática pós-colonial do princípio da unidade Guiné/Cabo Verde e do correlativo projecto da pátria africana una, progressista e solidária que deveria resultar da união orgânica entre os dois Estados independentes e soberanos, a marcha fúnebre por esse mesmo princípio e o requiem pela pátria africana bi-nacional, imaginada e sonhada por Amílcar Cabral e da qual ele próprio foi o principal defensor e a vítima mais ilustre e mais chorada, terão sido entoados com a tristeza e a consternação devidas à morte de um ente muito querido, mas igualmente com o alívio que se deve ao óbito daqueles que em vida vegetam mais do que vivem, sofrem atrozmente calados mais do que sobrevivem em condições mínimas de dignidade. De natureza e efeitos mortíferos para o princípio e para o projecto da unidade Guiné/Cabo Verde, o golpe de Estado militar perpetrado por Nino Vieira, mais do que um assassinato, que seria o segundo de Cabral, na óptica dos detractores, dos sacrificados e dos alvos dos eventos de 14 de Novembro de 1980, representou, por assim dizer, uma espécie de acto de eutanásia. Por isso, foi amplamente tolerado, senão incensado, por quase todos aqueles que o interpretaram como significativo de um novo começar para os que puderam sobreviver ao que se tinha tornado um silente cancro político susceptível de gangrenar o corpo dos dois Estados-nação emergentes, especialmente do Estado-nação bissau-guineense, e a reconciliação nacional da sociedade caboverdiana. A tal compreensão, por demais tolerante, terão quiçá escapado os poucos caboverdianos das ilhas que, depois de conseguida a independência política de Cabo Verde, permaneceram na Guiné-Bissau e aqueloutros pan-africanistas de extracção paigcista que, mesmo depois da evidência da irreversibilidade das independências e soberanias nacionais, continuaram a apostar, e até às derradeiras consequências, no sonho cabraliano da unidade Guiné/Cabo Verde. Tal aposta poderia ter tido como motivações tanto uma genuína convicção e a crença inabalável no princípio unitário a que se vem fazendo referência como também a vontade de prestação de uma homenagem póstuma ao seu doravante imortal criador festejado com o maior Morto Imortal da Guiné e Cabo Verde. Mais pragmaticamente, a defesa persistente do princípio da unidade Guiné/Cabo Verde poderá ter tido como motivação a sua compreensão enquanto fonte de legitimação do poder que alguns efectivamente exerciam, certos deles, considerando-se eles próprios, na sua dupla pertença nacional e identitária, como encarnando a ideia da unidade e da pátria africana bicéfala e bi-corporal (no sentido de bi-nacional). Mesmo se o princípio da unidade Guiné/Cabo Verde se tenha tornado em si mesmo cada vez mais inócuo na sua radicação complementar nas potencialidades libertárias e desenvolvimentistas dos dois países.
Sublinha Humberto Cardoso no livro acima referenciado, que, em reacção ao golpe de Estado protagonizado por Nino Vieira, as estratégias de renovação da legitimidade histórica por parte dos antigos dirigentes caboverdianos do PAIGC conheceram uma inequívoca, visível e inédita deriva nacionalista e soberanista, divergente do mais lato patriotismo de teor pan-africanista ínsito no projecto de unidade Guiné-Cabo Verde, dantes abraçado com muito entusiasmo e indesmentível generosidade. Até porque os dirigentes bissau-guineenses, ora golpistas, não mereceriam a grandeza e a generosidade de tal projecto, primacialmente dedicado à venerável memória de Amílcar Cabral, da sua ingente obra e do seu sonho de construção de uma vida de liberdade, democracia, paz, justiça, progresso social e prosperidade para os povos e para todos os filhos da Guiné e de Cabo Verde. É essa deriva nacionalista que teria levado os dirigentes caboverdianos a apressar o fim do PAIGC bi-nacional, condenando imediatamente o golpe de Estado como método censurável e condenável a todos os títulos e forma inaceitável de resolução de conflitos intra-partidários, onerando pela exacerbação dos problemas ocorridos na Guiné-Bissau todos os dirigentes bissau-guineenses (tanto os auto-considerados e auto-proclamados como autenticamente guineenses como os de origem cabo-verdiana, neles incluindo assim Luís Cabral e Nino Vieira que alegadamente teriam à sua disposição as instâncias nacionais do ramo bissau-guineense do partido para resolver os seus eventuais diferendos, sendo que ambos eram os mais altos dirigentes não só do ramo bissau-guineense do PAIGC, um como Secretário-Geral Adjunto residente no país-irmão e o outro como Presidente do seu Conselho Nacional, como também do próprio Estado bissau-guineense, o primeiro como Presidente do Conselho de Estado- equiparado a Presidente da República, o segundo como Comissário Principal- equiparado Primeiro-Ministro). Com esse argumentário, os dirigentes caboverdianos do PAIGC e do seu ramo nacional islenho rejeitaram quaisquer compromissos com os dirigentes do Conselho da Revolução (aliás, considerado golpista com sucesso e, por, isso, interlocutor ilegítimo nas questões partidárias, mas autoridade política e órgão soberano bissau-guineense, doravante considerados legítimos no encetamento e na prossecução das relações entre os Estados independentes e soberanos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde).
Paradigmático desse posicionamento é a atitude de Aristides Pereira no período imediatamente posterior ao golpe de Estado: na correspondência trocada com Nino Vieira, o Secretário-Geral do PAIGC começa por adoptar o comportamento de líder máximo desse partido supra-nacional e de paternal e, por isso, severa repreensão do método golpista adoptado por aquele que, com ele, tinha tido a responsabilidade político-militar bicéfala de uma das Frentes de combate guineense (a Frente Sul); a partir da circunstância de João Bernardo Vieira considerar a destituição de Luís Cabral como irreversível e, por isso, como facto absolutamente consumado, Aristides Pereira passa a adoptar a postura de Chefe de Estado caboverdiano e, como tal, estrangeiro em relação à Guiné-Bissau. Por isso e em coerência com esse estatuto, Aristides Pereira, como, aliás, os membros do Conselho Nacional de Cabo Verde do ainda subsistente ainda que agónico PAIGC, entretanto reunido em sessão de emergência, recusaram-se a interferir nos assuntos internos da Guiné-Bissau para tão-somente indagar e preocupar-se com o destino dos cidadãos caboverdianos, seus compatriotas, residentes no doravante considerado ex-país irmão.
Já não eram os Estatutos do partido bi-nacional nem sequer as normas do Direito Constitucional e do Direito Penal bissau-guineenses, e sua eventual violação, nem sequer as funções de Secretário-Geral do PAIGC que exercera Aristides Pereira, por um lado, e, por outro lado, de Membro da Comissão Permanente do PAIGC (a mais alta instância executiva do PAIGC, de composição paritária bi-nacional por alturas do desferimento do demolidor golpe de Estado) e de Presidente do Conselho Nacional da Guiné-Bissau do mesmo partido, a presidir à interlocução entre Aristides Pereira e Nino Vieira, mas as normas de Direito Internacional Público incidentes nas relações entre Estados independentes e soberanos que doravante estão presentes nas palavras trocadas entre o Presidente da República de Cabo Verde e o Presidente do Conselho da Revolução da Guiné-Bissau.
Rejeitando, de início, qualquer solução que não implicasse a reconstituição do status quo anterior ao reajustamento ninista, isto é, a libertação e a reposição de Luís Cabral nas suas funções de Secretário-Geral Adjunto do PAIGC e de Presidente do Conselho de Estado (Chefe de Estado) bissau-guineense, já claramente impossível de concretizar, bem como qualquer saída à crise que pudesse significar a superação da alegada unidade entre cavalo e cavaleiro, isto é, a recomposição, a favor dos chamados bissau-guineenses autênticos, da correlação de forças ao mais alto nível bi-nacional e nacional-guineense do comatoso PAIGC, os dirigentes caboverdianos do mesmo partido optaram pela transformação do ramo caboverdiano desse partido em partido nacional autónomo, o PAICV, culminando, assim, o que desde há muito (pelo menos, desde o assassinato do “caboverdiano” Amílcar Cabral) se adivinhava, ainda que por indícios contraditórios.
À inicial estupefacção face ao desmoronamento de um princípio largamente propagandeado como intocável e assente em bases inquebrantáveis seguiram-se a revolta e a respiração aliviada dos caboverdianos e a total recentragem do Partido Africano da Independência sobre as problemáticas da sociedade e da terra caboverdianas. Tais reacções foram justificadas, em certa medida, pelo ramo caboverdiano do PAIGC em face das graves acusações e da responsabilização por parte dos golpistas de Bissau dos dirigentes políticos caboverdianos (neles incluindo tanto aqueles exercendo funções político-partidárias nas estruturas supra-nacionais e nas estruturas nacionais da Guiné-Bissau como os regressados às ilhas e os radicados no território da Guiné-Bissau, tanto os que se identificavam como caboverdianos como os que se identificavam como bissau-guineenses - ou, que, a partir da sua inserção na saga libertadora do PAIGC passaram a identificar-se como tal) por má gestão, abusos de poder e graves e flagrantes violações de direitos humanos e outros malefícios totalitários pós-coloniais ocorridos, de forma sistemática, na sociedade bissau-guineense, destacando-se a execução extra-judicial e em massa dos ex-Comandos Africanos e de outros chamados inimigos do povo (ora ostensivamente apresentados pelo novo poder emergente na Guiné-Bissau como vítimas da unidade Guiné-Cabo Verde) e o projecto de revisão da Constituição bissau-guineense de 1973. Segundo os golpistas, com essa revisão constitucional pretender-se-ia fundamentalmente reforçar os poderes presidenciais do “caboverdiano” Luís Cabral, acrescendo-se a intenção de manter a pena de morte, alegadamente em nítido contraponto a Cabo Verde, onde o exercício do cargo de Presidente da República era reservado a cidadãos caboverdianos de origem. Argumentos todavia estranhos e falaciosos pois que: a) A pena de morte deixou de existir e de ser aplicada em Cabo Verde desde a época colonial pós-escravocrata, não tendo ademais sido reintroduzida, nem no período colonial, nem no período pós-colonial, não podendo, por isso, ser aplicada mesmo em casos excepcionais pois que em Cabo Verde não houve lugar à guerra colonial/à guerra de libertação nacional. b) Para além de ter nascido no território da antiga Guiné portuguesa e ser assim possível aplicar ao seu caso o princípio do jus soli para efeitos da sua consideração como cidadão originário da Guiné-Bissau, Luís Cabral foi um dos pais-fundadores do Estado soberano e independente da Guiné-Bissau - tal como, aliás, João Bernardo (Nino) Vieira- na sua indesmentível e inalienável condição de um dos mais importantes dirigentes da luta político-militar para a independência conduzida pelo PAIGC enquanto co-fundador e um dos seis membros com assento no Conselho de Guerra e depois como Secretário-Geral Adjunto do PAIGC.
Relembre-se que a Guiné-Bissau é o país com o qual Luís Cabral passou a identificar-se inteiramente enquanto guineense filho de pai caboverdiano e mãe portuguesa, apesar de ter passado e vivenciado praticamente toda a infância e toda a adolescência nas ilhas de Cabo Verde, designadamente em Santa Catarina e na cidade da Praia na ilha de Santiago, e na cidade do Mindelo na ilha de São Vicente, onde fez os estudos liceais. Vindo da Guiné dita portuguesa Luís Cabral chegara a Cabo Verde com apenas um ano de idade, aparentando o seu percurso de vida - parte da infância na cidade da Praia, estudos liceais em São Vicente, emigração para a Guiné-Bissau ainda na adolescência, participação activa nos movimentos reivindicativos dos trabalhadores guineenses e nas reuniões de fundação do PAIGC (salvo a circunstância de Luís Cabral ter nascido em Bissau, passado uma parte da infância em Santa Catarina, no interior de Santiago, e trabalhado na Casa Serbam, na cidade da Praia, antes do seu regresso, já adulto, à terra natal, a Guiné dita portuguesa, e Abílio Duarte ter nascido e passado toda a infância na cidade da Praia).
São essa infância, essa adolescência e essa juventude vividas por Luís Cabral nas ilhas de Cabo Verde (em especial em Santa Catarina e na cidade da Praia na ilha de Santiago e na cidade do Mindelo na ilha de São Vicente) que lhe enformaram a personalidade e a identidade culturais. Situação em (quase) tudo semelhante à do próprio Amílcar Cabral, que, segundo o raciocínio de pureza étnico-racial acima referida, nunca poderia almejar ser Presidente da República da Guiné-Bissau. Raciocínio que, teria, aliás, consagração constitucional, já durante o consulado de Nino Vieira (tanto no seu período ditatorial como no seu período pluripartidário) e com continuidade até aos dias de hoje, ao se estipular na Lei Magna desse país africano, naquela que ainda vigora depois de algumas revisões constitucionais, que só podem candidatar-se e almejar ascender ao cargo de Presidente da República os cidadãos guineenses de origem filhos de pais guineenses de origem, isto é, que, por sua vez, deviam ser também de ascendência guineense.
Anote-se ainda que o exercício do mais alto cargo do Estado por parte de Luís Cabral e a sua alegada intenção de reforçar os seus poderes presidenciais com correlativo enfraquecimento dos poderes do Primeiro-Ministro Nino Vieira foram apontados pelos golpistas como o exemplo mais flagrante da continuidade da hegemonia caboverdiana na condução dos destinos da Guiné-Bissau, hegemonia essa que remontaria aos tempos da luta de libertação bi-nacional quando os mais elevados cargos político-militares no partido combatente, designadamente os de Secretário-Geral e, depois, de Secretário-Geral-Adjunto e de Membro da Comissão Permanente (criada em 1970), foram desempenhados pelos “caboverdianos” Amílcar Cabral, Aristides Pereira e Luís Cabral (como se depreende, entendendo-se aqui por caboverdianos tanto os nascidos e vindos nas ilhas, como no caso de Aristides Pereira, como também filhos de pais caboverdianos criados nas ilhas, mesmo quando nascidos na Guiné, como os meio-irmãos Amílcar e Luís Cabral). Pouca relevância se atribui ao facto de esses “caboverdianos” (por via do jus soli, do jus sanguinius ou da identidade cultural) terem partilhado com os “guineenses de gema” Osvaldo Vieira, João Bernardo (Nino) Vieira e Francisco Mendes (Chico Té) as funções de membros do Conselho de Guerra (a mais alta instância militar do PAIGC, desde a sua instituição no Congresso de Cassacá de 1964) vindo a Comissão Permanente a ser integrada, depois da morte de Amílcar Cabral, em Janeiro de 1973, por resolução do II Congresso do PAIGC, de Junho de 1973, por Aristides Pereira, Luís Cabral, Francisco Mendes (Chico Té) e João Bernardo Vieira (Nino Vieira) e, por determinação do III Congresso de 1977, por Aristides Pereira, Luís Cabral, Francisco Mendes (Chico Té), Pedro Pires, João Bernardo Vieira (Nino Vieira), Abílio Duarte, Constantino Teixeira (Tchutcho Axon) e Umaró Djaló), cabendo a maioria ao ramo nacional da Guiné-Bissau do PAIGC e, depois, de composição paritária após a morte de Chico Té em 1978, mas de composição inicialmente paritária e, depois da morte do primeiro Comissário Principal (Primeiro-Ministro) da Guiné-Bissau, maioritariamente caboverdiana, se nos ativermos meramente à sua composição étnico-cultural segundo o raciocínio que considerava Luís Cabral como caboverdiano, mesmo se, filho de pai caboverdiano e mãe portuguesa, nascido na Guiné e se assumindo perentoriamente como bissau-guineense.
Alegou-se com veemência que essa suposta hegemonia insular vinha alimentando e agravando os tradicionais ressentimentos anti-caboverdianos herdados dos tempos das guerras coloniais de pacificação e da edificação da administração colonial na Guiné dita portuguesa, nas quais, como é sabido, os caboverdianos desempenharam papel de destaque.
Alguns incidentes, ocorridos particularmente nos meses que se seguiram ao golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, são, no entanto, de molde a testemunhar os sentimentos dos futuros dirigentes do PAICV, reforçados com outros dirigentes caboverdianos históricos (como José Araújo, Júlio de Carvalho e Honório Chantre), chegados do ambiente repressivo e politicamente esquizofrénico da Guiné-Bissau e imediatamente colocados nas mais altas instâncias da nomenclatura dominante nos poderes partidário e governamental (ao contrário dos seus companheiros guineenses, designadamente Umaro Djaló, Lúcio Soares e Bobo Keita que, estando em Cabo Verde, tal como os dirigentes caboverdianos radicados na Guiné-Bissau, acima referidos, para participar numa reunião da Comissão de Defesa e Segurança do PAIGC, também se pronunciaram contra o golpe ninista de 14 de Novembro de 1980). Está-se em crer que os dirigentes caboverdianos do PAIGC se sentiam politicamente acossados por parte daqueles que doravante eram desqualificados como autores de um segundo assassinato de Amílcar Cabral e do seu projecto de unidade Guiné-Cabo Verde e aliados dos mentores e dos apaniguados da reacção e da contra-revolução internas tanto na Guiné-Bissau como em Cabo Verde, alegadamente saudosistas do período colonial e inseridas numa contra-ofensiva geral do neo-colonialismo em África. Por isso, o claro fito de demonstração de força, experimentada politicamente com muito sucesso em face dos acontecimentos de Bissau, na irrupção repressiva dos eventos da (contra) reforma agrária em Santo Antão de 31 de Agosto de 1981 e na reacção estridente e, por vezes, histérica contra algumas denúncias de alegadas violações de direitos humanos nessa altura e em tempo imediatamente seguinte feitas por alguns dirigentes do IPAJ (Instituto de Assistência e Patrocínio Judiciários) e da Comissão Cabo-Verdiana de Direitos Humanos (sediada em Portugal) e tidas pelo regime de democracia nacional-revolucionária vigente por absolutamente extemporâneas.
Ainda que tivesse logrado manter o regime de partido único por mais de dez anos após o fracasso e a falência pós-coloniais do projecto de unidade Guiné/Cabo Verde e tivesse persistido na defesa da identidade africana de Cabo Verde, doravante optando por uma crescente inserção política e no conjunto dos países africanos de língua portuguesa denominados Os Cinco, no CILSS (Comité Inter-Estados de Luta contra a Seca no Sahel), na CEDEAO, na OUA, no Grupo Africano no Movimento dos Não-Alinhados, na ONU e nas suas Agências Especializadas, o regime de partido único socializante do PAICV pôde e, de certo modo, soube envolver essas duas premissas ideológicas essenciais em compromissos vários, com vista à manutenção da Ajuda Pública ao Desenvolvimento de proveniência ocidental, à descompressão do autoritarismo revolucionário do regime de partido único, mitigando-o cada vez mais nas suas repercussões ditatoriais de cariz autoritário e (quase) nunca totalitário, à valorização da crioulidade, à reconciliação com as elites letradas claridosas e à mobilização e/ou neutralização política dos quadros recém-regressados dos estudos universitários e potencialmente adversos do ponto de vista político. Foi o que, aliás, intentámos modestamente demonstrar no texto “Síndromas de orfandade continental, indagação identitária e funcionalização político-ideológica nos discursos identitários caboverdianos” (publicado no jornal online Liberal e, depois, com ligeiras alterações no título e no conteúdo publicado como separata em Cabo Verde–Três Décadas Depois (número temático especial da revista Direito e Cidadania).
Deste modo e a título de desassombrado e descomplexado balanço, pode-se dizer que o princípio da unidade Guiné/Cabo Verde se demonstrou, historicamente, como o mais eficaz instrumento de catarse cultural e de libertação política do povo caboverdiano, para depois se desvanecer definitivamente e ao correlativo projecto de pátria africana bi-nacional nos horizontes geograficamente longínquos do “reajustamento” de Nino Vieira. Reajustamento, cujos fautores eram, tal “os bárbaros” do poema de Kavafis, muito aguardados, ainda que esconjurados como implicados numa odiosa “segunda morte” de Amílcar Cabral, de que “esses outros”, “os suspeitos de costume”, seriam os responsáveis directos.
“Reajustamento”, aliás, antecipado por Onésimo Silveira em artigo de clarificação da sua dissidência com o projecto paigcista de unidade Guiné-Cabo Verde, publicado, em 1974, no jornal francês Le Monde Diplomatique.
“Reajustamento” na sua verdadeira expressão e no seu sentido mais profundo de golpe contra o “caboverdiano” (ou se se quiser, o caboverdiano/guineense, o cabo-verdiano nascido na Guiné ou o guineense de origem caboverdiana) Luís Cabral, personalidade histórica cujo nome passou a identificar a expressão política primeira do regime vigente depois da conquista da plena soberania política e a deposta governação da Guiné-Bissau, de cujo Conselho de Estado (jurídico-formalmente entendida como chefia colectiva do Estado bissau-guineense, à semelhança, aliás, do Conselho de Estado da antiga República Democrática Alemã, todavia de composição pluripartidária no quadro específico do sistema político leste-alemão, ou do Soviete Supremo soviético que, como é sabido, acumulava as funções de chefia colectiva do Estado e de presidência do monolítico parlamento soviético ) era o Presidente e de cujos Governo e ramo nacional do Partido Único era considerado o chefe efectivo e o responsável máximo no território nacional bissau-guineense, sem prejuízo da existência e do gradual agravamento da luta interna entre diferentes alas e facções partidárias bissau-guineenses conduzidas, o mais das vezes, na sombra das intrigas e dos conluios políticos por diferentes chefes carismáticos da luta armada de libertação bi-nacional, com destaque para Chico Té (antigo Comissário Principal do Governo da Guiné-Bissau -equiparado a Primeiro-Ministro- e Presidente do Conselho Nacional da Guiné do PAIGC, falecido em 1978 em circunstâncias assaz estranhas) e Nino Vieira que, pelo menos nominalmente e na condição de sucessor de Chico Té, desempenhava por alturas do seu golpe de Estado as funções de Comissário Principal do Governo da Guiné-Bissau e Presidente do Conselho Nacional da Guiné do PAIGC.
“Reajustamento” nos seus assumidos e correlativos objectivos de manter no (ou de fazer alcandorar ao poder e de reforçar o papel de quase todas as outras proeminentes figuras do regime de partido único vigente, desde que indubitavelmente bissau-guineenses (mesmo se mestiços, como Vasco Cabral, ou de origem cabo-verdiana (e geralmente denominados burmedjos), dando-se até o caso de um caboverdiano originário das ilhas, o Primeiro Comandante Manuel -Manecas- Santos, ter-se tornado figura proeminente do Conselho da Revolução, do novo Governo e do partido único bissau-guineense, depois de ter optado por aderir ao golpe de estado ninista, tendo inicialmente resistido ao mesmo golpe de Estado e se posto em fuga.
“Reajustamento” afinal pouco diferente nos seus propósitos (explícitos ou inconfessados) e na sua motivação mais profunda daquele que, ainda em plena luta armada de libertação nacional e com a activa participação das forças coloniais de ocupação e de outras forças mais obscuras, se engendrou para a neutralização e a eliminação dos “elementos caboverdianos” da Direcção político-militar do PAIGC.
“Reajustamento”, enfim e literalmente significativa de reajustamento da utopia, outrora libertadora, da pátria africana supra-nacional a um presente pós-colonial de inadiável maturação e consolidação do Estado nacional soberano tanto em Cabo Verde como na Guiné-Bissau.