Algumas notas políticas e históricas avulsas,

Algumas notas políticas e históricas avulsas,

 

… quiçá desafiantes e provocatórias, a propósito da mudança política caboverdiana dos inícios dos anos noventa do século xx, propositadamente evocada e invocada por ocasião da  celebração do centenário natalício de Amílcar Cabral, e constantes do meu livro em processo de edição e intitulado “Amílcar Cabral - o maior morto imortal dos povos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau do ponto de vista histórico-político” 

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Considerações sobre o período de transição política democrática, os tempos e os modos da mudança do regime político caboverdiano de partido único socializante e da sequente e correlativa emergência  da segunda república caboverdiana e da primeira variante de um estado caboverdiano de direito democrático 

A Abertura Política, decidida pelo Conselho Nacional do PAICV (Partido Africano da Independência de Cabo Verde) como o mais importante resultado da sua reunião, realizada de 12 a 19 de Fevereiro de 1990, na sequência de uma sua anterior reunião, realizada em Dezembro de 1989, para a discussão, o debate e a deliberação sobre o aperfeiçoamento do sistema político caboverdiano, e anunciada, a 19 de Fevereiro de 1990, por Pedro Pires, Secretário-Geral Adjunto do mesmo partido, apanhou de surpresa a generalidade dos observadores políticos da sociedade caboverdiana, tendo despoletado imensa ansiedade e criado diversas apreensões e justificadas expectativas em relação a uma eventual mudança política, quer entre a massa militante do partido único socializante, quer ainda no seio da sociedade civil das ilhas e diásporas, tanto nos seus tradicionais círculos políticos oposicionistas ao regime de partido único socializante, como também naqueles círculos intelectuais, burocrático-administrativos e empresariais a ele afectos, mas por vezes dele simultaneamente assaz críticos enquanto colaboracionistas rebeldes do sistema político-económico, empresarial  e financeiro vigente no arquipélago saheliano e cidadãos activos que faziam por manter profícuos e não despiciendos laços comestíveis com o mesmo sistema político-económico, empresarial e financeiro. Por isso, e mesmo se desprovida, desacompanhada e/ou não seguida de manifestações de júbilo popular e de outras típicas expressões de geral regozijo por mor da libertação de presos políticos, que não havia, do regresso de exilados políticos, sendo que quase todos abandonaram de forma voluntária o seu amado país natal, ou de outras expressões públicas de sentida indignação e/ou de irreprimível cólera ante alegadas, presumidas, (re)conhecidas e/ou comprovadas atrocidades e iniquidades cometidas por uma execrada e odiada polícia política, como anteriormente ocorrido na sequência da eclosão das liberdades democráticas em resultado e na sequência do golpe de Estado do 25 de Abril de 1974 na antiga Metrópole colonial e cujas réplicas de alegria chegaram finalmente a um Cabo Verde em patente e entusiástica euforia, efusivamente demonstrada na libertação, a 1 de Maio de 1974, dos prisioneiros políticos caboverdianos, angolanos e bissau-guineenses encarcerados no temido e famigerado Campo de Concentração do Tarrafal, bem como dos eventos recentemente ocorridos na sequência das mudanças políticas promovidas pelas oposições políticas emergentes e pelas novas elites políticas dirigentes de alguns países do Leste Europeu, com destaque para a Queda do Muro de Berlim, a 9 de Novembro de 1989, a Abertura Política caboverdiana, anunciada a 19 de Fevereiro de 1990 pelo Conselho Nacional do PAICV, teve imediatas repercussões e muito relevantes consequências de médio/longo prazo na configuração do panorama político e jurídico-legal até então prevalecente nas ilhas e diásporas caboverdianas.

De entre essas repercussões e consequências destacamos as seguintes:

i. A publicação/apresentação para subscrição pública, a 14 de Março de 1990, da Declaração Política do MpD (Movimento para a Democracia), a qual marcou o nascimento de um novo movimento político, e na qual foi exposta a primeira e essencial ossatura do seu futuro Programa Político, a apresentar quando tivesse a oportunidade de se transformar em partido político plenamente legal, e trouxe a público as suas primeiras e impactantes reivindicações, nomeadamente a eleição do Presidente da República por sufrágio universal, directo, igual e secreto e a limitação do seu respectivo mandato; a alteração do artº 1º, nº 2, da vigente Lei das Associações, por forma a nela acolher e incluir as associações políticas e, assim, propiciar a emergência de diferentes correntes de opinião e plataformas políticas para a competitiva participação, em relativa igualdade com o partido único governante e com as suas organizações sociais de massas, nas eleições legislativas programadas para serem realizadas em Dezembro desse mesmo ano de 1990; a consagração do direito de greve e a garantia da liberdade e do pluralismo sindicais com concomitante fim da obrigatoriedade legal da unicidade sindical; a dissolução da polícia política; a despartidarização das Forças Armadas; a garantia da independência dos jornalistas e da isenção da comunicação social do Estado; a instituição de uma economia mista com coexistência dos sectores público, cooperativo e privado, com predominância do sector privado, compreendendo-se neste não só o capital e o empresariado privados propriamente dito, mas também os sectores informal e social da economia caboverdiana, sendo que não devia ser vedada nenhuma área de actividade económica, social, cultural à livre iniciativa privada e reservando a intervenção pública às áreas em que o ector não estivesse interessada e/ou em condições de actuar eficazmente, como algumas áreas  da educação, da saúde e, presume-se, os domínios da soberania (defesa, polícia de ordem pública, relações externas), etc.
Ademais, dispunha-se o MpD a colaborar com todas as forças políticas, tanto a já existente enquanto partido único governante e enquanto forças situadas na oposição política e obrigadas,  até então, a actuar somente na clandestinidade, como também aquelas que viessem a emergir no novo cenário político das ilhas, para a implantação de um sistema político democrático e pluralista no país, considerando outrossim que, por nunca ter existido em Cabo Verde, a democracia tinha de ser construída ex novo e de raiz no nosso país, mantido sob um regime político autoritário e não democrático desde a proclamação da sua independência política a 5 de Julho de 1975, assim, e deste modo, opondo-se e contrapondo-se o MpD radical e diametralmente aos dirigentes e aos ideólogos do PAICV, os quais persistiriam, segundo o MpD, em defender que, no caso caboverdiano, a mudança política visaria a reforma do regime político vigente mediante a transformação de um regime político democrático unipartidário num regime político democrático multipartidário.
Neste contexto, o MpD afirmou adoptar os princípios da liberdade, da democracia e da justiça social, assentes no maior marco político da história do povo de Cabo Verde que teria sido a conquista da sua independência política, e com base em políticas visando prioritariamente a diminuição do fosso social entre ricos e pobres e a diminuição dos desequilíbrios regionais, o combate à pobreza, ao nepotismo, à corrupção e ao desperdício e à má utilização dos dinheiros públicos, ademais declarando o nascente movimento político-social  propor-se a mudança radical do rosto político, económico, social e cultural de Cabo Verde, mudança essa que seria plasmada no seu Programa Político a ser oportunamente apresentada e se reflectiria numa proposta de profunda revisão constitucional, a ser apresentada no ano de 1991 (presume-se que depois e na sequência da realização da programadas eleições legislativas de Dezembro de 1990), e cujos pontos essenciais deveriam ser: a efectiva separação entre os poderes legislativo, executivo e judicial; a garantia efectiva da independência dos juízes e dos tribunais; a eleição do Presidente da República por sufrágio universal, directo e secreto e a limitação temporal do seu mandato; a incompatibilização entre o exercício de funções de membro do governo, de magistrado e de deputado; a criação de um Tribunal Constitucional; a liberdade de criação de partidos políticos; o fim da unicidade sindical; a edificação de um poder local forte, autónomo, descentralizado e livremente eleito pelas comunidades locais por forma a garantir a participação de todos os concelhos e ilhas no processo  do desenvolvimento equilibrado e equitativo do país; a criação de círculos eleitorais próprios nos países de residência habitual dos emigrantes caboverdianos; a adopção do princípio da plurinacionalidade para os emigrantes e os seus descendentes nascidos no estrangeiros; a criação de um Conselho de Comunicação Social para a garantia da independência dos jornalistas, da isenção, da objectividade, da imparcialidade  e do pluralismo dos órgãos de comunicação social e da igualdade de acesso aos mesmos por parte de todos os partidos políticos e de todas as correntes de opinião presentes na sociedade caboverdiana.
Deste modo, e passado quase um mês depois do início da Pirestroika (termo cunhado pelo falecido jornalista caboverdiano Manuel Delgado com o inequívoco propósito e o claro fito de suscitar similitudes políticas e semânticas positivas entre a Abertura Política caboverdiana e a Perestroika soviética, despoletada pelo Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética, Mikhail Gorbachov), o MpD surgiu como um movimento político independente e/ou oposicionista unificado visando primacialmente superar a dispersão política e a eventual falta, insuficiência e/ou ausência de unidade programática, alegadamente pretendida pelo PAICV, dos grupos de cidadãos independentes convocados pela Direcção Política do partido único governante, a participar, conjunta e concorrencialmente com ele, enquanto força política dirigente da sociedade e do Estado, e com as suas organizações sociais de massas, nas programadas eleições legislativas de Dezembro de 1990. Dessas eleições legislativas deveria resultar, na óptica do PAICV e implicitamente aceite pelo MpD, uma nova Assembleia Nacional Popular de composição politicamente pluralista e que teria como tarefa fundamental a promoção de uma profunda revisão constitucional com vista à revogação do artº 4º e dos artigos conexos da Constituição Política, de 25 de Setembro de 1980, na sua redacção de 14 de Fevereiro de 1981,  que, como era consabido, consagravam o PAICV como força política dirigente da sociedade e do Estado.

 
ii. A realização no mês de Abril de 1990 da V Reunião Ordinária  do Conselho Nacional do PAICV, para aprimorar e eventualmente mudar o perfil da Abertura Política Democrática, com a proposta de realização no mês de  Novembro de 1990 de eleições presidenciais por sufrágio universal, directo e secreto por proposta de grupos de cidadãos independentes, e no mês de Fevereiro ou de Março de 1991 de eleições legislativas pluripartidárias, isto é, com a participação de outros partidos políticos para além do PAICV, e não mais somente com a participação do PAICV e de grupos de cidadãos independentes, como inicialmente previsto na Declaração do Conselho Nacional do PAICV, de 19 de Fevereiro de 1990, de anúncio da Abertura Pública Democrática. A V Reunião Ordinária do Conselho Nacional do PAICV procedeu igualmente à calendarização de algumas actividades fundamentais para a concretização da Abertura Política Democrática, anunciada em 19 Fevereiro de 1990, quais sejam a  convocação de um Congresso Extraordinário do partido a ter lugar no mês seguinte de Julho;  a recomendação aos órgãos competentes do Estado da realização de uma sessão legislativa da ANP, já no mês de Maio seguinte, para a aprovação de algumas Leis estruturantes da Abertura Política Democrática, como, por exemplo as Leis regulamentadoras/reguladoras das liberdades de reunião e de manifestação e a Lei que consagra a liberdade de criação de associações políticas, bem como a revogação do artº 50º da Lei de Imprensa (que incriminava a imputação de factos ofensivos ao Chefe de Estado, não admitindo a prova da verdade dos mesmos factos),  da famigerada Lei do Boato e de outras normas e diplomas legais repressivos, primacialmente de natureza processual-penal, como aquela que permitia a detenção sem culpa formada de suspeitos por mais de seis meses pelas FSOP (Forças de Segurança e Ordem Pública). Ademais, a V Reunião Ordinária do Conselho Nacional do PAICV recomendou aos órgãos estatais competentes a tomada das medidas necessárias e pertinentes para a realização, no mês de Setembro de 1990, de uma sessão legislativa da ANP para a revisão constitucional de consagração do pluripartidarismo político e para a aprovação de outras Leis estruturantes da transição política democrática e da radical mudança do regime político caboverdiano.
Reagindo a essa reunião do Conselho Nacional do PAICV e às suas deliberações, num comunicado assinado pelo seu Coordenador Provisório, Carlos de Carvalho Veiga, o MpD disse congratular-se com a constatada irreversibilidade do processo de transição democrática em curso e mostrou-se satisfeito com o acolhimento por parte da Direcção do PAICV da sua proposta de eleição do Presidente da República por sufrágio universal, directo e secreto, bem como da sua proposta de alteração da vigente Lei das Associações visando alargá-la às associações políticas, mas afirmou-se completamente contrário à realização de eleições presidenciais já no mês de Novembro de 1990, alegando que a calendarização dessa eleição teria em vista não a remoção de alegados bloqueios à transição política, mas a solução de problemas de sucessão política no seio do PAICV, pelo que o mais importante, do ponto de vista do MpD, deveria ser a promoção de uma revisão constitucional imediata, se bem que reduzida ao mínimo possível, já na programada sessão legislativa de Maio da ANP, com vista à remoção dos artigos 4º e 46º da Constituição Política caboverdiana vigente bem como a adopção da Lei dos Partidos Políticos e da Lei de Bases do Estatuto da Oposição, para além, obviamente, da Lei das Associações Políticas. Ademais, lamentou o MpD que o Conselho Nacional do PAICV não se tivesse pronunciado sobre as suas exigências de extinção da polícia política, de despartidarização das Forças Armadas e da salvaguarda da isenção da comunicação social do Estado, exigindo ademais o corte imediato de subsídios públicos ao PAICV e às suas organizações sociais de massas a partir do OGE (Orçamento Geral do Estado).
Numa carta subsequente dirigida ao Presidente da República, também subscrita pelo seu Coordenador Provisório, Dr. Carlos Veiga, o MpD reclamou de novo contra a alegada falta de isenção dos órgãos de comunicação social do Estado no tratamento de eventos promovidos pela oposição política emergente e o seu suposto flagrante desequilíbrio em relação aos eventos promovidos pelo partido do governo e, por isso, exigiu a imediata demissão do ministro titular da pasta da comunicação social, exigência que doravante, e conjuntamente com as exigências de corte de subsídios públicos, nos termos acima referidos, de revisão constitucional imediata e mínima, de despartidarização das Forças Armadas e de extinção da polícia política farão parte da agenda de reivindicação e de mobilização políticas permanentes do MpD, comprovando-se a mesma como assaz produtiva, asseverando-se depois como decisiva, em especial quando e enquanto o MpD se viu e pôde colocar-se, sobretudo a partir da segunda metade do mês de Maio e até a primeira metade do mês de Junho, quase completamente sozinho no terreno político, encetando uma longa e eficaz campanha de mobilização política das populações de todos os concelhos do país e de todas as ilhas e diásporas caboverdianas, ficando o PAICV a ocupar-se primacialmente com o convencimento das suas próprias bases militantes da pertinência, da oportunidade e da tempestividade política das mudanças já encetadas e em curso e a assegurar-se da concretização das exigíveis e correspondentes adaptações e mudanças institucionais, político-legais e jurídico-constitucionais demandadas pelo doravante célere processo de transição política democrática.

iii. A subsequente e acelerada pluripartidarização de facto da sociedade caboverdiana das ilhas e diásporas, com a realização da primeira Conferência de Imprensa do MpD, a 3 de Maio de 1990, no Hotel Praia-Mar, da cidade capital do país, dirigida por Eurico Correia Monteiro e com a participação de Alfredo Teixeira e Teófilo Santos Silva, e a realização da sua primeira sessão pública de esclarecimento  no dia 3 de Maio de 1990, no Centro Social Primeiro de Maio, sito no bairro da Fazenda, na cidade da Praia, tendo sido Carlos Veiga o principal orador dessa sessão de esclarecimento, também entendida como o Primeiro Encontro Nacional do MpD e com participação de grupos e enviados de vários concelhos e ilhas. 

A acima-referida pluripartidarização da sociedade caboverdiana caboverdiana viria a ser reforçada com a actividade política, se bem que assaz incipiente, de algumas associações políticas, como a USD (Associação Social-Democrata), do engenheiro Jorge Ferreira Querido e do arquitecto Pedro Rolando Martins, e a Associação Democrata-Cristã, do padre António Fidalgo Barros e do arquitecto António Jorge Delgado, bem como da histórica UCID (União Cabo-Verdiana Independente e Democrática), fundada em Roterdão, a 13 de Maio de 1978, com o regresso do exílio de alguns dos seus dirigentes, como, por exemplo, António Gumercindo Chantre, tendo, até então, sido obrigada nas ilhas a actuar na clandestinidade política, tal como, aliás, os CCPD (Círculos Cabo-Verdianos para a Democracia), fundados em Portugal por Jorge Carlos Fonseca, nos inícios dos anos oitenta, e integrados por círculos políticos oposicionistas conotados, nas ilhas e diásporas, a par do GRIS (Grupo Revolucionário de Intervenção Socialista), de Helena Lopes da Silva, Eugénio Inocêncio, Gualberto do Rosário, Gustavo Araújo, Daniel Lobo, entre outros, com o antigo fracionismo e a passada dissidência trotskistas no seio do PAIGC, sendo que enquanto o GRIS permaneceu durante o período antecente da Queda do Muro de Berlim como um grupúsculo de obediência trokskista, os membros dos CCPD passaram, paralela e/ou conjuntamente com outros antigos radicais de esquerda, de filiações várias nominalmente maoístas, estalinistas, luxemburguistas, marxista-leninistas e outras similares, a integrar várias correntes políticas de esquerda, centro-esquerda, centro-direita e, até, de direita, tendo evoluído para a defesa e a promoção da democracia liberal, de matriz ocidental, e a sua urgente implantação em Cabo Verde como a questão política prioritária. Tendo um grande número de membros dos CCPD regressado a Cabo Verde depois da conclusão dos seus estudos universitários e ocupado posições e cargos de relevo nos sectores administrativo e empresarial do Estado bem como no sector privado e nas organizações da sociedade civil caboverdiana, como, por exemplo, o IPAJ (Instituto de Patrocínio e Assistência Judiciários), esses mesmos membros dos CCPD viriam a desempenhar um papel decisivo e preponderante na fundação, na organização, na promoção, na disseminação e na credibilização do MpD como alternativa governamental para uma eventual primeira alternância política, ademais democrática, no Cabo Verde pós-colonial.

iv. A realização em Julho de 1990 do Congresso Extraordinário do PAICV para avalizar todas as propostas do seu Conselho Nacional relativas ao novo perfil da Abertura Política Democrática e propô-las aos órgãos competentes do Estado para a devida e tempestiva aprovação na sessão legislativa de Setembro/Outubro da ANP.


v
. A realização nos inícios de Setembro de 1990 de negociações entre o PAICV e o MpD bem como entre o PAICV e a UPICV (tendo a UCID estranhamente indicado o MpD para a representar nas negociações com o PAICV, depois de num primeiro momento pós-Abertura Política ter exigido a deslocação de uma Delegação do PAICV aos EUA para com ela negociar directamente) para a calendarização definitiva da transição política democrática e para o tratamento de outras importantes questões relacionadas com a revisão constitucional, agendada para o o fim desse mesmo mês de Setembro/início do mês seguinte de Outubro de 1990. Nessas mesmas negociações, o MpD conseguiu que o PAICV aceitasse a sua proposta de realização das eleições legislativas antes da realização das eleições presidenciais, mas não da sua proposta de revisão mínima da Constituição e reduzida à revogação do artº 4º,do artº 46º e do arº 93º da Constituição Política caboverdiana de 5 de Setembro de 1980, na sua redacção de 14 de Fevereiro de 1981, e a sua substituição por normas consagradoras da livre formação de partidos políticos, tendo o PAICV contraposto a sua proposta, depois apoiada pela UPICV,  da consagração de um sistema de governo semipresidencial e parlamentar em lugar do até então vigente sistema de governo semipresidencial de assembleia, a) conferindo ao Chefe de Estado as novas competências de livre dissolução do parlamento e de nomeação e de exoneração do Primeiro-Ministro; de veto político contra diplomas emanados do governo e do parlamento; e b) atribuindo à ANP as novas competências de testemunhar a posse do Presidente da República eleito; de autorizar a saída e a ausência do país do Presidente da República; de aprovar o Programa do Governo; de apresentar moções de confiança e moções de censura ao Governo; de superar o veto político do Presidente da República, etc.

vi. A consagração de jure do pluralismo político e social e do multipartidarismo pela revisão de 29 de Setembro de 1990 da Constituição Política caboverdiana de 5 de Setembro, na sua redacção de 14 de Fevereiro de 1981, e a aprovação pela ANP nos termos consignados nas correspondentes propostas do PAICV de um pacote de Leis Ordinárias estruturantes, quais sejam a Lei dos Partidos políticos e do Estatuto da Oposição Democrática, a nova Lei para a Eleição dos Deputados à Assembleia Nacional Popular (ANP) por sufrágio universal, directo, igual e secreto, pela primeira vez no Cabo Verde pós-colonial em listas plurinominais e solidárias apresentadas por partidos políticos; a inédita Lei para a Eleição do Presidente da República, igualmente e, pela primeira vez no Cabo Verde pós-colonial, por sufrágio universal, directo, igual e secreto e por proposta de grupos de cidadãos independentes e com eventual apoio de partidos políticos, bem como das também inéditas Lei do Direito de Antena Política, Lei da Resposta e da Réplica Políticas e Lei da Greve e da Proibição do Lock Out. Estas novas Leis Ordinárias vieram juntar-se às também inéditas Leis Regulamentadoras da Liberdade de Reunião e da Liberdade de Manifestação e da Lei Consagradora da Liberdade de Criação de Associações Políticas, aprovadas na sessão legislativa de 29 de Maio de 1990 da mesma ANP. Toda essas Leis Ordinárias vieram complementar e completar a Revisão Constitucional de 29 de Setembro de 1990 no quadro de um novo regime político, doravante de perfil inegável e nitidamente pluralista de facto e de jure, e, por isso, susceptível de ser classificado como um Estado de Direito Democrático, posto que transfigurado em regime político pluripartidário num estádio muito avançado de sedimentação e efectivação, ainda nos transactos tempos do regime de partido único socializante, dos pilares essenciais de um Estado de Direito, formal e material. Tanto mais que o regime político pluralista e multipartidário emergente ficou marcado, imediatamente depois, por medidas fundamentais da iniciativa do MpD, ganhador com maioria qualificada das eleições legislativas de 13 de Janeiro de 1991, e, por isso, alcandorado ao poder político como um “Governo de Regime”, como oportuna e tempestivamente asseverado por Carlos Veiga na sua tomada de posse como novo Primeiro-Ministro de Cabo Verde perante o novo Presidente da República eleito do nosso país, António Mascarenhas Gomes Monteiro, bem como na apresentação do seu primeiro Programa de Governo ao plenário da ANP na sua nova legislatura, doravante bipartidária, quais sejam: a criminalzação e o sancionamento com pena de prisão efectiva da prática da tortura e de outros desumanos, cruéis e degradantes da dignidade do ser humano, detido e/ou preso; a dissolução formal e expressa dos serviços de segurança do Estado considerados integrantes da vituperada polícia política bem como a extinção de outros organismos remanescentes dos  tempos do regime de partido único socializante, como os tribunais de zona, as comissões de moradores, as comissões de reforma agrária, as comissões de litígios de trabalho e as milícias populares, severamente vilipendiados e execrados pelo MpD  como sendo alegadamente próprios e típicos desse mesmo regime político, por isso, qualificados como politicamente repressivos, e ademais considerados infestados de militantes do antigo partido único; a conclusão da despartidarização das FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo) e das FSOP (Forças de Segurança e Ordem Públicas), tendo esse mesmo processo de despartidarização sido, aliás, iniciado ainda durante a governação do PAICV, com a proibição de os seus membros no activo poderem candidatar-se a cargos electivos e com a colocação na reforma dos Comandantes e demais Oficiais que quisessem continuar na vida política activa ou nela enveredar (para o caso específico das FSOP); a aprovação da nova Lei que consagrou o pluralismo sindical e extinguiu a obrigatoriedade legal da unicidade sindical; a aprovação de novas leis autárquicas, reformadoras daquelas aprovadas ainda em Julho de 1989 para a realização de eleições relativamente pluralistas dos órgãos do poder local com a participação do PAICV e de grupos independentes de cidadãos, bem como a realização de eleições para os órgãos de um novo poder local democrático, autónomo e descentralizado com a participação de partidos políticos e de grupos de cidadãos independentes. 

Nesta concreta óptica, é o Estado caboverdiano resultante da transição política de 1990/1991 passível de ser caracterizado e qualificado como plenamente de Direito Democrático, do ponto de vista do respeito da dignidade da pessoa humana, da garantia das liberdades e dos direitos cívicos e políticos dos cidadãos, bem como, mas em muito menor medida, dos seus direitos económicos, sociais e culturais, da garantia da independência dos juízes e dos tribunais, da efectiva separação entre os poderes legislativo, executivo e judiciário, da existência de um poder local descentralizado e democrático e da emergência e da consolidação de uma imprensa livre e de uma cada vez mais pujante e pluralista sociedade civil. Na nossa provisória opinião, foi outrossim com a Revisão Constitucional de 29 de Setembro de 1990 e as Leis de Mudança Política aprovadas ao seu abrigo, à sua sombra fundamental e/ou tendo-a no horizonte, que não só se consagrou de jure um novo regime político, pluralista e multipartidário bem assim um Estado de Direito Democrático, dos pontos de vista formal e material, mas que, do ponto de vista jurídico-formal, teve igualmente o seu início e baptismo a Segunda República caboverdiana, que obteve depois, a 13 de Janeiro, a 17 de Fevereiro e em Dezembro de 1991, a completa legitimação política dos novos titulares dos órgãos do poder de Estado e do poder local mediante a realização de eleições livres, pluralistas e pluripartidárias e, por isso isso, plenamente livres e inteiramente democráticas. Esse novo regime político caboverdiano, devidamente consubstanciado num Estado de Direito Democrático, formal e material, e inaugural da Segunda República caboverdiana, permaneceu todavia, do ponto de vista da enunciação dos seus princípios e objectivos jurídico-constitucionais, muito marcado pelo flagrante dirigismo público nos domínios político, económico, social e cultural e pela insofismável e incontornável dominância da propriedade do Estado em sectores essenciais da economia, mesmo depois da liberalização da parte económica da Constituição Política caboverdiana, de 5 de Setembro de 1980, na sua redacção de 14 de Fevereiro de 1981, promovida pela Revisão Constitucional de 27 de Dezembro de 1988, na sequência da política da reorientação da economia caboverdiana para a sua extroversão, decidida pelo III Congresso do PAICV, de Novembro de 1988, ainda em plena vigência do regime de partido único socializante. Deste modo, a Constituição Política da República caboverdiana de 5 de Setembro de 1980, na sua redacção de 14 de Fevereiro de 1981, manteve-se refém e prisioneira da sua original matriz socializante e da sua denominação nacional-democrático-revolucionária porque impondo programaticamente a toda a sociedade num horizonte político-social de médio e/ou longo prazos, indiferente a eventuais alternâncias políticas e governamentais e cuja legitimidade tem de ocorrer necessariamente por via exclusivamente eleitoral, a construção de uma “sociedade liberta da exploração do homem pelo homem” e “da sujeição da pessoa humana a interesses degradantes de indivíduos, grupos e classes sociais”, isto é, de uma sociedade de matriz socialista e humanista, do ponto de vista material, por isso mesmo, susceptível de ser qualificada como autoritária, se bem que somente dos pontos de vista formal e nominal da acima refeida imposição de um projecto socializante de felicidade colectiva.

 
vii. A realização, em Novembro de 1990, da primeira Convenção Política do MpD. Nessa Convenção Política, integrada por delegados vindos de todos os concelhos e ilhas do país e dos mais importantes países de radicação das diásporas caboverdianas, o MpD apresentou-se como um amplo movimento político-social, congregador, inclusive do ponto de vista orgânico, de (quase) toda oposição política emergente, incluindo de todas as antigas facções políticas dissidentes do PAIGC-CV/PAICV em diferentes períodos históricos, bem como dos adversários políticos históricos de uma ou de mais vertentes da sua ideologia política nacionalista revolucionária, pan-africanista e progressista e do seu regime político de democracia nacional revolucionária, quais sejam o seu projecto pós-colonial de unidade Guiné-Cabo Verde, o seu ideário político socializante e o seu autoritarismo revolucionário, mais recentemente acrescidos das suas concepções e políticas económicas fundadas nos conceitos de economia nacional independente, de desenvolvimento tripolar do país, de substituição das importações e de reciclagem da ajuda externa e das remessas dos emigrantes, a sua ideologia culturalista afro-crioulista, posteriormente, sobretudo depois do colapso do projecto pós-colonial de união orgânica entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde, contaminada, postergada e  pejada de derivas barlaventistas e neo-claridosas fortemente regionalistas e bairristas, etc.. 

Tenha-se em conta nesse contexto que o desiderato do MpD de congregação político-social de todas as vozes oposicionistas (ou, igualmente, descontentes e críticas mesmo no seio da massa militante do antigo partido único) no quadro orgânico de uma ampla frente unida anti-paicvista foi sobremaneira favorecida pelos seguintes factores e circunstâncias:

  1. O amplo e comprovado conhecimento por parte dos mais importantes dirigentes, responsáveis, quadros e activistas do MpD dos muitos problemas, estrangulamentos e atribulações com que, no seu dia-a-dia, se confrontavam as populações dos vários concelhos, localidades, zonas e ilhas do país , bem como dos anseios, das aspirações e dos sonhos que acalentavam.
  2. A vasta e diversificada experiência política desses mesmos dirigentes,

responsáveis, quadros, militantes e simpatizantes do MpD, bastas vezes colhida durante e no quadro da sua antiga militância no PAIGC-CV/PAICV e nas suas organizações sociais e de massas.

 

3) A presença dos seus membros em lugares nevrálgicos e em cargos relevantes da administração e da gestão quotidianas do país (incluindo nos tribunais e nas forças de segurança e ordem pública, nos ministérios e secretarias de Estado, nos hospitais, nas escolas, nas empresas, nas cooperativas, nas repartições públicas, nos gabinetes de estudos, nos centros de investigação, nos serviços municipais,  no comércio, nas fábricas, na prestação de serviços, nas organizações autónomas da sociedade civil, etc.) e o seu correlativo envolvimento numa aura de competência e de dedicação na resolução dos ingentes problemas do país e das suas populações, o que, se por um lado, servia para justificar o seu bastas vezes dúbio papel e controverso estatuto de colaboracionistas, mesmo que alegadamente rebeldes ou forçados, do agora publicamente e por demais detestado, vituperado e execrado regime de partido único socializante e servir outrossim de alibi para justificar o entretecimento de laços comestíveis, de outro modo política e moralmente condenáveis, com o mesmo regime político e o seu sistema administrativo, económico-empresarial e financeiro, por outro lado, servia para explicar a relativa e inegável moderação repressiva do mesmo regime político e o prestígio de que os seus dirigentes gozavam junto dos seus parceiros internacionais, bilaterais e multilaterais, alegadamente em razão da sua boa governação e da gestão eficiente e transparente dos escassos recursos nacionais e dos recursos postos à sua disposição pela comunidade internacional, a isso acrescendo o seu modo de vida simples, austero e aparentemente incorruptível, embrenhados que pareciam estar, tal como propugnado pelo omnipresente ideólogo e guia imortal Amílcar Cabral, no processo de suicídio de classe enquanto classe de serviços pequeno-burguesa, se bem que também marcado por um certo distanciamento físico, social e simbólico, bastas vezes ritualizado, em relação às populações comuns dos centros urbanos e dos meios rurais das ilhas e diásporas e do seu difícil e sacrificado dia-a-dia. 

Amílcar CabralAmílcar Cabral

  1. 4) O fracasso da UCID em possibilitar o regresso atempado ao país para a sua confrontação política com o partido governante, o PAICV, o não alargamento da sua escassa implantação política no país, reduzida quase que às ilhas nortenhas de Santo Antão e de São Vicente e a correlativa impossibilidade de o mesmo partido, politicamente implantado sobretudo nos países de residência das diásporas caboverdianas,  se legalizar junto do Supremo Tribunal de Justiça e do impedimento da sua admissão como partido histórico caboverdiano e correspondente isenção de preenchimento dos apertados requisitos exigidos pela recentemente adoptada Lei dos Partidos Políticos, tal como proposto pelos deputados David Hopffer Almada e Francisco Correia, mas não aceite pelo Plenário da ANP, que todavia atribuiu ao PAICV esse mesmo estatuto de partido histórico.
    As considerações acima expendidas sobre a UCID podem ser também aplicadas mutatis mutandis à UPICV-R, de José Leitão da Graça, mas de forma muito mais agravada, pois que não nos parece crível que o seu líder histórico tenha alguma vez deixado de professar uma compreensão estritamente estalinista/maoísta/enver-hoxhista do seu marxismo-leninismo de obediência albanesa, também ele fustigado e varrido do mapa pelos ventos da mudança democrática na Europa de Leste. A sua adesão à mudança política em Cabo Verde significava sobretudo, como, aliás, confessou em entrevista, que a revolução socialista deixou de estar na ordem do dia político, quer em Cabo Verde, quer em outras partes da África ou do mundo. Ademais, e na verdade, parecia que, fora do círculo estritamente familiar de José Leitão da Graça, a UPICV-R parecia não ter militantes e simpatizantes, nem sequer se preocupando em tê-los. Daí, a sua irónica designação de “partido conjugal” pelo jornalista José Vicente Lopes.
    Com a realização da sua primeira Convenção Política Nacional, o MpD passou a dispor de um coerente, credível e desenvolvido Programa Político, dos órgãos estatutários respaldados nos respectivos Estatutos e de uma enorme e justificada sede de governação do país fundada na sua legítima ambição da devida e tempestiva concretização da aventura democrática de que  dizia ser, se bem que erroneamente,  o principal demiurgo e, se possível,  almejava ser o exclusivo protagonista no Cabo Verde pós-colonial.
    Por sua vez, Carlos Veiga, o até agora Coordenador Provisório do MpD, emerge na sua Primeira Convenção Política como o líder incontestado e o primeiro Presidente do MpD, estatuto político que se consolida durante as seguintes campanhas eleitorais vencedoras e o projectam para a figura de líder histórico do MpD e um dos principais rostos da mudança democrática em Cabo Verde ou, como ele próprio prefere dizer, da revolução pacífica, da revolução tranquila e/ou da revolução democrática  que assolou Cabo Verde e a sua transição política democrática, iniciada com a Abertura Política Democrática, de 19 de Fevereiro de 1990, e culminada e concluÍda, do ponto de vista político e jurídico-constitucional,  com a aprovação da Constituição Política caboverdiana, de 25 de Setembro de 1992. Estatuto de rosto da mudança democrática ou, tout court, da democracia caboverdiana, que Carlos Wahnon de Carvalho Veiga certamente partilha com Aristides Maria Pereira, Pedro Verona Rodrigues Pires, Abílio Augusto Monteiro Duarte, Olívio Pires, David Hopffer Cordeiro Almada, André Corsino Tolentino, João Pereira Silva,  António Mascarenhas Gomes Monteiro,  José André Leitão da Graça,  Lídio Silva, Felisberto Vieira Lopes, Onésimo Silveira, o padre António Fidalgo Barros, Jorge Ferreira Querido, Jorge Carlos de Almeida Fonseca, Eurico Correia Monteiro, Manuel Faustino, José Tomás Wahnon de Carvalho Veiga, Eugénio Inocêncio, Germano Almeida, Osvaldo Lopes da Silva, Pedro Rolando Martins, Aristides Raimundo Lima, Bartolomeu Varela, José Maria Pereira Neves, Manuel Inocêncio Sousa, Alfredo Teixeira, Vladimir Brito, José Manuel Pinto Monteiro, António Gualberto do Rosário Almada, Teófilo Santos Silva, Amílcar Spencer Lopes, António Espírito Santo Fonseca,  Jorge Maurício Santos, Basílio Mosso Ramos, Jacinto Abreu Santos, Mário Matos, Felisberto Alves Vieira Alves, José António dos Reis, Tchibia, António Monteiro e tantos outros proeminentes políticos, intelectuais e homens comuns caboverdianos que, com diferentes posicionamentos político-ideológicos e colocados em trincheiras diversas,  adversárias por definição, mas sempre necessárias, porque germinadoras, complementadoras e enriquecedoras do consenso e do dissenso democráticos, puderam integrar o povo da independência, que depois se fez ressurgir como povo da democracia, e, certamente anteviram e almejam integrar num futuro próximo tacteável  como o povo do desenvolvimento do nosso país, protagonizando ademais duas e mais alternâncias políticas democráticas, consabidamente todas decisivas para a consolidacão e a qualificação do Pluralismo Político-Social, da Democracia e do Estado de Direito Democrático e Social, consagrados na Constituição Política caboverdiana, de 25 de Setembro de 1992, e nas suas várias, enriquecedoras e cada vez mais consensualizadas Revisões Constitucionais. 

                                             II
 Parêntese aposto a propósito do pensamento marxista de Amílcar Cabral e de outras questões colaterais

Aliás, e de todo o modo, a sociedade desejavelmente de matriz socialista e feições humanistas consagrada pela revisão constitucional de 29 de Setembro de 1990 da Constituição Política caboverrdiana de 5 de Setembro de 1980, na sua redacção de 14 de Fevereiro de 1981, afigurava-se como plenamente conforme com o pensamento progressista de matriz marxista e teor revolucionário de Amílcar Cabral, visível na sua célebre comunicação à Conferência Tricontinental de Havana, de 1966, e intitulada “A Luta de Libertação Nacional com Relação aos seus Fundamentos e aos seus Objectivos”, mundialmente celebrizada como a “A Arma da Teoria”. É nesse extenso, denso e profundo texto/ensaio que Amílcar Cabral se apresenta como importante teórico africano, renovador do pensamento marxista com várias teses e concepções assaz inovadoras e bastas vezes surpreendentes, expondo ademais a sua teleologia finalista da História com as suas sequenciais fases de evolução, iniciando-se na sociedade comunitária primitiva (ou comunismo primitivo, na terminologia marxista clássica) passando pelas sociedades baseadas na exploração do homem pelo homem, quais sejam as sociedades agrárias escravocratas, feudais, tributárias e aparentadas (por vezes designadas por alguns teóricos e estudiosos de matriz marxista como modo de produção asiático) e as sociedades agro-industriais capitalistas e culminando nas sociedades socialistas enquanto antecâmara das sociedades comunistas. Atente-se que a teleologia finalista da Historia, a que acima se referiu, não significa de modo nenhum o fim da História, pois que, segundo Amílcar Cabral, o ser humano continuará, enquanto existir, refém do seu cérebro, das suas mãos e das suas necessidades, os quais sempre o determinarão ao desenvolvimento das forças produtivas, a verdadeira força motriz da História, e ao aperfeiçoamento das relações sociais emergentes do nível de desenvolvimento dessas mesmas forças produtivas.
Por outro lado, as sociedades comunistas vindouras, recorrentemente referidas e antecipadas pelos marxistas e pelas suas muitas variantes reformistas e revolucionárias, permanecem revestidas, desde sempre e até à actualidade, mas sobretudo depois do desmoronamento das suas variantes doutrinárias utópicas revolucionárias, burocrático-administrativas e autogestionárias, todas vituperadas, vilipendiadas e renegadas, sem excepção alguma, como política, económica, social e culturalmente legitimadoras de formas totalitárias e/ou autoritárias de regimes políticos formal e nominalmente de esquerda num socialismo de Estado que teria representado uma mera, pura e/ou lamentável degenerescência  da verdadeira e autêntica sociedade socialista e do seu rosto humano e plenamente democrático, que na verdade nunca teria existido e permaneceria ainda por edificar, pois que tendo sido estranguladas no ovo todas as experiências políticas mundiais que realmente almejavam concretizá-la e/ou tendo essas mesmas experiências sido usurpadas pelos interesses e privilégios das nomenclaturas que, nas sociedades edificadas nos antigos países do chamado socialismo real, lograram substituir as antigas classes exploradoras, abertamente possidentes dos meios de produção e dos instrumentos de coerção política e de coacção ideológica e cultural, e que, no seu intuito de preservar, a todo o custo, os seus privilégios e as suas regalias de classe político-burocrática dominante, tudo fizeram por alimentar, aliás, com inusitados fervor, afinco e afã, as características míticas e místicas de ilusórios paraísos, consabidamente imaginados como celestiais pelas mais diferentes mitologias religiosas e transfigurados em terrestres pelas diversas doutrinas políticas fundadas em diferentes variantes do socialismo utópico. Paraísos terrestres que, tal como concebido pelo marxismo, estariam temporalmente localizados num futuro assaz incerto, indeterminado e ainda por concretizar, mas que se anteviam/se antevêm e se imaginavam/se imaginam dotados de um desenvolvimento técnico e científico nunca dantes visto, nisso residindo o motivo da sua designação como comunismo científico contraposto ao comunismo primitivo dos  primórdios da humanidade, hoje largamente comprovados como tendo realmente existido e continuado a existir em zonas recônditas e isoladas do nosso planeta, mas povoados de e alavancados por criaturas humanas integrantes de uma sociedade liberta da exploração do homem pelo homem, isenta da sujeição da pessoa humana a interesses egoístas e degradantes de indivíduos, de grupos e de categorias e classes sociais e inundada do espírito solidário e fraternitário de um vindouro homem novo, finalmente humanista na plenitude do seu ser e na inteireza das suas diferentes e diversas expressões de vida, por isso mesmo, totalmente desalienado e cabalmente capacitado para prescindir da necessidade da existência do Estado, enquanto organização política da classe social economicamente dominante e cultural e moralmente hegemónica e detentora do monopólio da violência e de outras formas de coacção expressas em forma de lei e válidas e obrigatórias para todos os seus destinatários. É nessa antevista e vindoura sociedade desprovida de classes sociais e, por isso mesmo, sem interesses sociais de classe, a radicar na nossa Terra ou em qualquer outro sítio situado algures na nossa galáxida ou em galáxidas alheias, mais próximas ou mais longínquas, mas sempre habitadas por criaturas humanas e/ou criaturas outras com elas aparentadas e ainda mais avançadas, do ponto de vista do nível da  sua inteligência, da sua tecnologia proporcionada pelo extraordinário desenvolvimento das suas forças produtivas  e/ou da sua História, que finalmente deverá germinar e eclodir entre os seres humanos concretos e de carne e osso a chamada sociedade comunista para finalmente possibilitar que os mesmos seres humanos possam substituir o Reino da Necessidade pelo Reino da Liberdade, consabidamente marcado pela aplicação prática da consigna “de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades” e em que a liberdade e a dignidade de cada um, enquanto pessoa humana inconfundível e infungível considerada individualmente, é a condição da liberdade e da dignidade de todos, considerados colectivamente como igualmente inconfundíveis e infungíveis. Obviamente que num mundo natural rico na sua diversidade biológica e na equidade das suas relações  humanas e ecologicamente sustentável.
É por isso mesmo, isto é, em razão da natureza utópica da vindoura e até hoje nunca concretizada sociedade comunista avançada, almejada e e alegadamente antecipada de forma científica pela ideologia marxista (por isso também, e, quiçá, arrogante e pretensiosamente, denominada socialismo científico, e confessa e indubitavelmente professada por Amílcar Cabral) permaneceu como uma mera e longínqua, se bem que profecia laica para o realista e pragmático nacionalista pan-africanista, revolucionário e patriota cabo-verdiano/bissau-guineense e humanista africano e universalista que do marxismo preferiu valorizar sobretudo a vertente científica e sociológica consubstanciada no materialismo dialéctico e no materialismo histórico. Neste sentido, estamos em crer que tanto para Amílcar Cabral como também para os adeptos da sua singular compreensão da ideologia marxista e da sua praxis progressista nela inspirada, a sociedade comunista permanece como um ideal a atingir e uma utopia por concretizar nas suas vestes revolucionárias e emancipatórias bem como nas suas contemporâneas repercussões advindas da premente necessidade de radical transformação das sociedades presentes inelutavelmente fundadas na exploração do homem pelo homem, na sujeição da pessoa humana a interesses egoístas e degradantes de indivíduos, de grupos e de categorias e classes sociais e na dominação e/ou hegemonia políticas das classes exploradoras privilegiadas sobre as classes exploradas. 
É essa concepção marxista do mundo, intrínseca ao pensamento político-ideológico de Amílcar Cabral e fundada na metodologia de análise científica da natureza, da história e da sociedade propiciada pelo materialismo dialéctico e pelo materialismo histórico, que foi sendo adaptada pelo grande teórico  africano às diferentes etapas da luta de libertação bi-nacional dos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde e concretizada nos diferentes Programas Mínimos e Maiores do PAIGC, certamente elaborados com a mão e sob a orientação do seu líder carismático e ideólogo maior ou, com a sua irreparável, mas não insubstituível ausência física, à luz do seu pensamento político-ideológico ou, erroneamente ou não, inspirado nesse mesmo pensamento político-ideológico, tanto o primeiro aprovado na Reunião de Dacar de 1960 e reiterado no Congresso de Cassacá, de 1964, como o segundo, aprovado já depois da morte do grande líder caboverdiano e bissau-guineense e icónico pensador africano pelo Segundo Congresso do PAIGC, de Julho de 1973, e, já no período pós-colonial, nas Resoluções do seu III Congresso de Novembro de 1977 e, reconfirmado, depois da falência pós-colonial do projecto de união orgânica entre as Repúblicas irmãs da Guiné-Bissau e de Cabo Verde em resultado de golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, na Guiné-Bissau, pelo Congresso constitutivo do PAICV e pelos seus posteriores conclaves partidários, em especial daqueles precedentes da sua estrondosa derrota nas eleições legislativas, presidenciais e autárquicas de 1991.
Foi essa mesma démarche marxista, consabidamente avessa a radicalismos, aventureirismos e voluntarismos político-ideológicos, inerme a posturas dogmáticas e incólume a apressadas, inconsequentes e gratuitas rotulações revolucionaristas, ademais muito marcada pelo realismo e pelo pragmatismo políticos, que permitiu a Amílcar Cabral conceber e pôr em prática a sua doutrina de teor ético-político humanista de “melhores filhos dos nossos povos e das nossas terra africanas da Guiné e de Cabo Verde” e inseri-la no húmus histórico da sua dinâmica teoria de “partido-movimento” e dos seus dialécticos conceitos de “povo-população” e de “democracia revolucionária”, entendida como”poder do povo, pelo povo, para o povo” resultante da ” luta do povo, pelo povo e para o povo”, e, assim, lhe permitiu forjar as alianças políticas e as unidades necessárias, suficientes e imprescindíveis com diferentes correntes nacionalistas, patrióticas e revolucionárias dos dois países para a vitoriosa consecução da luta bi-nacional com vista à realização e à concretização prática do direito à auto-determinação e independência política dos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde e, se tivesse sido possível, para a sua associação política e a sua união orgânica no seio de uma “átria africana una, forte, progressiva e solidária rumo à gradual unidade - a nível continental, regional e sub-regional- de todos os povos africanos e em profícua e mutuamente vantajosa cooperação com todos os países do mundo para a construção de um mundo de paz, liberdade, democracia, progresso e prosperidade material e espiritual para toda a Humanidade. Certamente que quem era dotado desse pragmatismo político e se sustentava na identidade cultural dos seus dois povos amados, na civilização do universal, na ciência e no profundo conhecimento do mundo, fazendo-se iluminar pelo pensamento marxista e alimentando-se de uma visão profundamente humanista do mundo e respeitosa do outro, seu semelhante, saberia adaptar-se a todas e quaisquer contingências e vicissitudes da História contemporânea e a todas as mudanças do mundo, aliás, para ele, Amílcar Abel Djassi Cabral, sempre inspiradoras e desafiadoras, mormente quando têm por base e fundamento a defesa da inviolável, imprescritível e inalienável dignidade dos seres humanos e dos povos da sua pátria africana, desejavelmente a constituir-se bi-nacionalmente das Repúblicas irmãs livres, independentes e soberanas da Guiné-Bissau e de Cabo Verde e das duas nacionalidades gêmeas que resultaram da colossal e imprescritível pertinência da sua luta e,  afinal, a razão mais profunda e permanente da sua pugna fraternitária e emancipatória em prol da autodeterminação e independência política, da liberdade e da prosperidade colectivas dos povos da Guiné e de Cabo Verde e do progresso e da felicidade individuais dos seus filhos, luta fraterrnitária e pugna  emancipatória essas que por sua vez foram sempre por ele entendidas como o seu específico contributo pessoal enquanto parte integrante da ingente e valiosa contribuição colectiva dos dois pequenos povos oeste-africanos, afro-lusófonos e crioulófonos que o geraram e no seio dos quais se forjou e amadureceu como criatura humana para a incomensurável saga e a nunca acabada odisseia a favor da obtenção e da conquista da paz, da democracia, da justiça social, do bem-estar e da felicidade para todos os africanos e para todos os seres humanos do mundo. Tanto mais que foram os seus discípulos e sucessores que lideraram as mudanças que, no pós-25 de Abril de 1974, propiciaram a conquista da independência política do arquipélago caboverdiano, a construção do Estado independente e soberano caboverdiano e, chegado o momento considerado propício, tendo certamente em conta a aceleração dos acontecimentos políticos na União Soviética despoletados pelas políticas da perestroika e da glasnost de Mikhail Gorbachov e rapidamente conducentes à Queda, a 9 de Novembro de 1989, do Muro de Berlim e a céleres mudanças de teor democrático-pluralista em alguns países do Leste da Europa, declararam a Abertura Política Democrática que inaugurou a transição política e as mudanças político-sociais, institucionais, jurídico-legais e constitucionais que, num relativamente curtíssimo espaço de tempo e com relevante contributo da oposição política emergente, fizeram emergir no escalavrado chão do povo das ilhas e diásporas um novo regime político de democracia plena e uma nova República (a Segunda da curta da História pós-colonial caboverdiana) fundados no pleno respeito da dignidade da pessoa humana e consolidado no quadro de um Estado de Direito Democrático e Social lavrado, patenteado, garantido e consolidado de forma extensa, desenvolvida e exemplar pela Constituição Política caboverdiana, de 25 de Setembro de 1992, que, ademais, dotou a República de Cabo Verde, se bem que de forma assaz controversa, de novos símbolos nacionais, e pelas suas várias e cada vez mais consensualizadas revisões constitucionais, consensos político-sociais esses particularmente visíveis nas revisões constitucionais de 1999 e de 2010. República de Cabo Verde, de cujo exemplar percurso pós-colonial e de cujo Estado de Direito Democrático e Social Amílcar Cabral certamente se sentiria orgulhoso, caso estivesse vivo, ainda segundo explanado por Carlos Veiga na sua intervenção proferida no Segundo Simpósio Internacional Amílcar Cabral, realizado nas cidade da Praia, em 2004. Na feliz e muito pertinente expressão de Carlos Veiga (relembre-se que também ele, aliás, integrante do Panteão das Grandes Personalidades Históricas Caboverdianas em razão de ser o líder histórico do MpD por ter sido sucessivamente o primeiro Coordenador Provisório indigitado e o primeiro Presidente eleito do mesmo partido/movimento político; antigo Primeiro-Ministro de Cabo Verde por dois mandatos consecutivos conquistados com maioria qualificada e derrotando primeiramente o histórico Pedro Pires e, depois, Aristides Limas, candidatos a Primeiro-Ministro pelo PAICV; antigo candidato presidencial apoiado pelo MpD derrotado por duas vezes por Pedro Pires, apoiado pelo PAICV; antigo candidato a Primeiro-Ministro pelo MpD derrotado por José Maria Neves, Presidente do PAICV; antigo líder da oposição parlamentar do MpD e antigo candidato presidencial apoiado pelo MpD e derrotado por José Maria Neves, apoiado pelo PAICV), Amílcar Cabral é “o maior dos nossos Heróis, o mais Grande dos Grandes de Cabo Verde” em razão do seu papel ímpar na concepção dos caminhos e das vias e da liderança político-militar exemplar da luta para a conquista e a obtenção da independência de Cabo Verde e, ademais, da sua teorização em bases marxistas dos caminhos pós-coloniais do povo caboverdiano visando a obtenção completa da sua liberdade, da sua dignidade e do seu progresso e dos seus filhos, desejavelmente em democracia, mantendo-se ainda actuais muitos dos seus ensinamentos, mesmo aqueles incidentes sobre temas e matérias mais controversos como “o suicídio de classe da pequena-burguesia”, “a opção e a via socialistas de desenvolvimento”, “a democracia revolucionária” e os correlativos “princípios do centralismo democrático, da crítica e autocrítica e da direcção colectiva”. A este propósito, considerou todavia Carlos Veiga que é a “democracia revolucionária”, enquanto princípio modelar e fundante do sistema de partido-Estado implantado, primeiramente, nas zonas libertadas da Guiné-Bissau e, depois, tornado extensivo e constitucionalmente impregnante dos Estados soberanos e independentes da Guiné-Bissau e de Cabo Verde modelados pelos seus colaboradores mais próximos e sucessores como regimes políticos de democracia nacional revolucionária nos quais o PAIGC foi unilateralmente erigido como partido único, isto é, como “o único partido autorizado” e qualificado, ademais, como “força, luz e guia do nosso povo”, “expressão suprema da vontade soberana do povo”, “força política dirigente da sociedade e do Estado”, entre outros epítetos e características supra-constitucionais que teriam propiciado a concepção do Estado independente e soberano como mero instrumento para a aplicação do “programa político, económico, social, cultural, de defesa e segurança” definido por esse mesmo “partido de vanguarda”, cujos dirigentes, responsáveis e militantes eram considerados e foram alcandorados ao estatuto de “melhores filhos do nosso povo”. Em razão disso tudo, considera Carlos Veiga que, apesar das suas virtualidades e actuais potencialidades enquanto eventualmente potenciador de uma democracia participativa complementar da democracia representativa democrático-liberal de matriz ocidental consagrada na Constituição Política caboverdiana de 1992, o conceito de democracia revolucionária foi sujeito nos últimos anos a severas críticas porque, tal como os “Estados da legalidade socialista “, também desqualificados como “Estados da deriva totalitária socialista”, os regimes de partido único da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, comum e oficialmente designados por regimes de democracia nacional revolucionária, podem ser inseridos na categoria de Estados de não Direito e/ou de Estados contra o Direito, diametralmente opostos ao Estado de Direito, do ponto de vista conceptual,  e ao Estado de Direito Democrático plasmado na Constituição Política caboverdiana de 1992. Todavia, considera Carlos Veiga que devido à sua morte prematura em razão do seu “traiçoeiro e bárbaro assassinato”, Amílcar Cabral não pôde adaptar ao período pós-colonial e sobretudo às especificidades culturais e identitárias caboverdianas a sua concepção de Estado engendrada a partir do conceito de democracia revolucionária para ser primacialmente aplicado às condições especificas da luta armada e visando prioritariamente a administração das zonas libertadas da Guiné-Bissau, onde o PAIGC vinha actuando e agindo como um verdadeiro Partido-Estado. Por isso, segundo Carlos Veiga, a grandeza teórica e a grande envergadura política e intelectual de Amílcar Cabral não teriam ficado beliscados por essa mesma circunstância histórica, sentindo-se por isso muito honrado por poder homenagear essa grande figura histórica caboverdiana e africana.
Vale todavia relembrar que, em Dezembro de 1960, Amílcar Cabral tinha apresentado ao Governo português em nome do PAIGC um Memorando no qual propunha uma solução pacífica e negociada para a obtenção da independência política da Guiné dita Portuguesa e de Cabo Verde com instauração de uma ordem democrática com a devida e requerida salvaguarda das liberdades democráticas fundamentais de expressão, de reunião, de manifestação, de associação, de greve e de criação de partidos políticos e de organizações sindicais com vista à realização de eleições gerais e livres por sufrágio universal, directo, igual e secreto da Câmara de Representantes do Povo da Guiné Portuguesa na proporção de um representante para trinta mil habitantes e da Câmara de Representantes do Povo de Cabo Verde na proporção de um representante para dez mil habitantes, ambas dotados de poderes soberanos legislativos e de designação dos respectivos poderes executivos, ficando abertas as possibilidades alternativas da união entre os dois territórios ou da sua independência separada, conforme decidissem as duas Câmaras de Representantes em reunião conjunta. 

Esse facto foi, aliás, expressamente referido por Carlos Veiga na sua comunicação apresentada em 2004 ao Segundo Simpósio Internacional Amílcar Cabral, considerando todavia, e erroneamente, na minha opinião, que com o início e o crescente sucesso da luta político-armada de libertação binacional dos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde  e influenciado pelas correntes políticas revolucionárias em voga nos anos sessenta do século XX e pelos países socialistas de onde provinham os apoios à luta conduzida pelo PAIGC, Amílcar Cabral teria renunciado, de forma definitiva e irreversível, à possibilidade de implantação nos nossos países do modelo liberal-democrático de Estado, optando, em sua substituição e como uma sua alternativa, por um modelo de Estado fundado no conceito de democracia revolucionária. 

Sendo certo que desde a apresentação dessa por demais surpreendente proposta, o PAIGC pôde encetar com muito e inegável sucesso uma luta político-armada de longa duração que lhe granjeou imenso prestígio diplomático na arena mundial e o reconhecimento internacional como único e legítimo representante dos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, primeiramente, em 1965, junto da OUA (Organização da Unidade Africana), depois, em 1972, junto da ONU (Organização das Nações Unidas), que, depois de ter enviado uma sua Missão Especial às zonas libertadas da Guiné-Bissau, reconheceu o PAIGC como membro observador da ONU, seguindo-se o reconhecimento pela OUA, em Novembro de 1973, do Estado independente e soberano da Guiné-Bissau , proclamado unilateralmente, a 24 de Setembro de 1973, por uma Assembleia Nacional Popular, eleita indirectamente por deputados integrantes dos Conselhos Regionais  eleitos directamente por sufrágio universal, directo, igual e secreto pelas populações das zonas libertadas e radicadas nos países vizinhos e amigos, e dotada de poderes soberanos e constituintes e de poderes de designação de um poder executivo constituído por uma Chefia de Estado colectiva denominada Conselho de Estado e por um Governo denominado Conselho dos Comissários do Estado. Ademais, a Assembleia-Geral da ONU reiterou o seu reconhecimento do PAIGC como único e legítimo representante do povo de Cabo Verde em fins de Março de 1974, depois da apresentação da apresentação de um Relatório sobre a Situação em Cabo Verde por uma Delegação do PAIGC chefiada por Abílio Duarte, membro do CEL (Comité Executivo da Luta) do mesmo movimento de libertação bi-nacional.

Delegações portuguesa e cabo-verdiana que negociaram o Acordo de Lisboa para a proclamação da Independência política de Cabo Verde, a 5 julho 1975, recebidas pelo Chefe do V Governo Provisório Português, Vasco Gonçalves Delegações portuguesa e cabo-verdiana que negociaram o Acordo de Lisboa para a proclamação da Independência política de Cabo Verde, a 5 julho 1975, recebidas pelo Chefe do V Governo Provisório Português, Vasco Gonçalves
Se é verdade que seria difícil para Amílcar Cabral retomar para a Guiné-Bissau o plano constante do Memorando apresentado ao Governo Português em Dezembro de 1960, pois que para a Guiné-Bissau a questão passou a reduzir-se ao reconhecimento de jure pelo Governo português da República da Guiné-Bissau, na altura já gozando de amplo reconhecimento internacional, para Cabo Verde a situação era completamente diferente. Apesar de nos Acordos de Argel celebrado entre o Governo Provisório Português e o PAIGC, a 25 de Agosto de 1974, para o reconhecimento de jure, a 10 de Setembro de 1974, pelas autoridades políticas portuguesas da independência política da República da Guiné-Bissau, o Governo português ter também reconhecido o direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e independência política, as autoridades políticas portuguesas mantinham alguma relutância em reconhecer o PAIGC como único e legítimo representante do povo de Cabo Verde, tal como tinha ocorrido com a OUA e a ONU e, nesse contexto, mormente quando ainda estavam em cena os apoiantes das teses spinolistas, insistiam na realização em Cabo Verde de um referendo de autodeterminação política com a participação dos três partidos políticos presentes no cenário caboverdiano, designadamente o PAIGC, a UPICV e a UDC, ao que se opunha o PAIGC, aliás, com inusitada firmeza, alegando e contrapondo com o seu reconhecimento internacional como único e legítimo representante do povo de Cabo Verde, considerando ademais que os outros dois partidos caboverdianos eram partidos fantoches e pouco representativos. Os representantes do MFA (Movimento das Forças Armadas) presentes em Cabo Verde comungavam do mesmo posicionamento político defendido pelo PAIGC, vindo, ademais, a apresentar um ultimato ao Governo Provisório de Lisboa ameaçando-o com a entrega imediata e a correlativa transferência ao PAIGC dos poderes soberanos que Portugal detinha sobre Cabo Verde. Neste contexto, o Governo Provisório Português não teve outro remédio senão iniciar as conversações com o PAIGC, as quais culminaram na celebração dos chamados Acordos de Lisboa, de 17 e de 19 de Dezembro de 1974, integrante, segundo o jurista português, António Duarte Silva no seu mais recente livro intitulado Amílcar Cabral e o Fim do Império-Independência s Políticas da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, o Protocolo de Lisboa propriamente dito, celebrado a 19 de Dezembro de 1974 entre Portugal e o PAIGC, e a Lei Orgânica do Estado de Cabo Verde, aprovada pelas autoridades a 17 de Dezembro de 1974, com  o conhecimento e o aval do PAIGC,  e que, como é sabido, instituíram um Governo de Transição para a Independência de Cabo Verde, nomeado pelo Presidente da República, integrado por sete Ministérios, constituído por três Ministros designados pelo PAIGC, dois Ministros designados pelo Governo Provisório Português e chefiado por um Alto-Comissário português, marcaram a data da ocorrência deste evento histórico maior para 5 de Julho de 1975, devendo a independência política e a soberania nacional e internacional da nova República ser proclamada por uma Assembleia Representativa do Povo Caboverdiano, a ser eleita a 30 de Junho de 1975 por sufrágio pluralista, universal, directo, igual e secreto em listas plurinominais e solidárias apresentadas por grupos independentes de cidadãos. Estamos em crer que o PAIGC gozava de toda a legitimidade, quer a histórica, quer a  internacional, para ser o único interlocutor do Governo Português nas negociações conducentes à independência política e à soberania nacional e internacional do nosso país, mas também estamos em crer que o cenário político existente em Cabo Verde em inícios de Dezembro de 1974 corresponde exactamente àquele desenhado por Amílcar Cabral no seu conhecido Memorando ao Governo Português, de Dezembro de 1960. Por isso, acreditamos que teria sido possível realizar eleições livres e democráticas para a Assembleia Representativa do Povo Caboverdiano e prevista nos Acordos de Lisboa, de 17 e 19 de Dezembro de 1974, com a participação de todos os partidos políticos presentes na altura no cenário político caboverdiano e não, ou não só, unicamente com a participação de grupos independentes de cidadãos, depois de terem sido interditadas as actividades da UPICV e da UDC e alguns dos seus membros terem sido encarcerados no presídio político do Tarrafal. Não estando de maneira nenhuma em causa a concretização efectiva da independência política de Cabo Verde na data e nos moldes em que realmente veio a ocorrer, com previsível vitória esmagadora das listas afectas ao PAIGC, as eleições de 30 de Junho não teriam todavia sido um mero referendo/plebiscito às listas de grupos de cidadãos, afinal completamente dominados e controlados pelo PAIGC, mas eleições verdadeiramente livres e democráticas, mesmo se ocorrendo com a participação exclusiva de grupos independentes de cidadãos, mas influenciados e/ou determinados na sua composição por todos os três partidos políticos presentes, em inícios do mês de Dezembro de 1974, no cenário caboverdiano. Contra esse cenário alta e efectivamente democrático posicionaram-se consabidamente todas as correntes político-ideológicas presentes no ramo caboverdiano do PAIGC, designadamente a nacionalista revolucionária e a democrático-revolucionária, de feição cabralista, vindas das duas Guinés e da clandestinidade política e da luta legal de massas em Cabo Verde, Portugal e outros países, tal como, aliás, as correntes trotskista, maoista, estalinista, luxemburguista, marxista-leninista, nacionalista moderada e outras inominadas, também emergentes da luta política clandestina, semilegal e legal para a independência política conduzidas nos países acima referidos. Esquecendo ou ignorando completamente o plano constante do Memorando de 1960 e que, afinal, se aplicou em vários casos similares ao da ambiência democrática existente em Cabo Verde do período imediatamente posterior ao 25 de Abril de 1974 até aos inícios do mês de Dezembro de 1974. Perdeu Cabo Verde, sobretudo em ganhos históricos de exercitação política de experiências em democracia pluralista. Não por causa de Amílcar Cabral, mas apesar de Amílcar Cabral e do seu plano de transição plenamente democrática para a nossa independência política, de matriz indubitavelmente democrático-liberal, hoje tão justamente incensada e festejada!
                         II
Questões avulsas finais, quiçá um pouco surpreendentes 

Retomando o fio a outra meada:
O curioso nos diferentes Estatutos do PAIGC que acompanharam a elaboração, a discussão e a aprovação dos seus Programas Mínimos/Programas Maiores é o entendimento que o mesmo partido/movimento de libertação bi-nacional foi fazendo de si próprio e da sua natureza de classe, a par da sua recorrente recusa em se conotar como representante exclusiva ou predominante de uma única classe social, mormente e designadamente daquela que é tradicionalmente considerada pela teoria marxista como a classe de vanguarda porque detentora de uma mítica missão histórica específica, qual seja a superação do capitalismo, incluindo aquele de matriz neo-colonial, e a construção da futura sociedade socialista, intermediada por diferentes tipos de sociedades de transição, em regra e desejavelmente caracterizadas por economias mistas com coexistência, em diversificados níveis e graus, de diferentes tipos de propriedade, mas sempre em aliança com outras classes sociais dominadas e oprimidas, com destaque para o campesinato pobre, a intelectualidade assalariada e/ou pequeno-burguesa, as diferentes fracções das pequenas burguesias artesãs, industriais, comerciais e fundiárias e, até, franjas patrióticas da burguesia nacional, quando existente, como ocorre em regra no caso da situação neo-colonial. Se nos primeiros Estatutos, de 1960, o PAI/PAIGC se definia como um partido/movimento das classes trabalhadoras, nos Estatutos aprovados pelo Congresso de Julho de 1973, passou a definir-se como partido/movimento das amplas massas populares, sendo que todavia a Constituição Política da Giuiné-Bissau, de 24 de Setembro de 1973, considerava que o poder político era exercido no interesse da massas trabalhadoras, e a LOPE (Lei da Organização Política), da República de Cabo Verde, determinava que o poder político era exercido em benefício das massas populares. A vinculação estatutária do PAIGC às classes trabalhadoras viria a ser retomada nos Estatutos aprovados no período pós-colonial, no Congresso de Novembro de 1977, definindo trabalhador como aquele que vive exclusivamente do seu próprio trabalho, mas inserindo-se na sua mais lata e interclassista definição como um movimento de libertação bi-nacional no poder, por isso alegadamente fundado numa ampla aliança patriótica e na unidade nacional de todas as classes e categorias sociais nativas, se bem que visando a defesa prioritária dos interesses de longo prazo das classes trabalhadoras e orientada para a construção de uma sociedade isenta da exploração do homem pelo pelo homem e expurgada da sujeição da pessoa a interesses egoístas e degradantes de indivíduos, de grupos e/ou de categorias e classes sociais.
A dialéctica partido/movimento de matriz cabraliana/cabralista e que propugna uma ampla e massiva base social de apoio aliada a critérios cada vez mais rigorosos, dos pontos de vista ético-moral e político-ideológico, para a selecção dos militantes entre os “melhores filhos do povo” para a edificação de um partido meritocrático verdadeiramente de vanguarda, parece ter influenciado, ainda que de forma involuntária e inconsciente, a dinâmica da construção do MpD como um amplo e emergente movimento (curiosa  e consabidamente, póstumo à Abertura Política Democrática de 19 de Fevereiro de 1990) de estridente contestação do regime caboverdiano de partido único socializante, incensado por Carlos Veiga como o único movimento popular até hoje surgido em Cabo Verde, a par dos recorrentes apelos de alguns dos seus pretendentes a ideólogos situados mais à direita do espectro político caboverdiano, designadamente na área política liberal conservadora,  para que o mesmo MpD se transforme cada vez mais em partido (num irónico mimetismo das conhecidas e recorrentes palavras de Amílcar Cabral que alguns desses pretendentes tanto detestam, execram e vilipendiam), obviamente que colocado na direita liberal conservadora e/ou, caso não houver outro remédio,  alargando-o ao centro-direita, quiçá liberal e social-democratizante, do espectro político caboverdiano, desiderato que todavia parece ser inevitavelmente contrariado pela necessidade de todos os partidos do arco da governação terem de dispor de uma ampla base eleitoral para se alcandorarem ao poder político e à governação do país. 

Queluz/Lisboa, 14/15/16 de Setembro de 2024

por José Luís Hopffer Almada
A ler | 16 Setembro 2024 | Cabo Verde, Guiné Bissau, Independência