Cidade da Ribeira Grande de Santiago (poema de Nzé de SAnt’Y Ago)
Aos amigos Tonecas, Náti, Bzot, Romeu e Necas, do grupo Rock´s Blue, com quem tive a oportunidade de visitar pela primeira vez a Cidade Velha
Lembras-te, Tonecas
das mamães-velhas
sentadas nos portões
e nos prelúdios do mundo
das velhas yá-yás
exumando à boca da noite
as estórias da ilha ressuscitada
das mil desgraças das mil atribulações
dos seus donos e senhores
pelo nome e pela fama
de Moradores de Santiago
chamados e enobrecidos
em constante peleja
contra os reinóis os piratas os corsários
contra os negros fujões os libertos
os escravos escassos resilientes
em conluio e sacrossanta aliança
com os capitães-donatários os capitães-mores
os morgados os missionários e outros
ambiciosos vigários de Deus na Terra
em larvar contenda
contra os governadores os bispos
os ouvidores os cabidos os almoxarifes
os feitores das companhias majestáticas
contra as taxas os tributos a cobiça
d’El-Rei de Portugal e dos Algarves
contra o império da má-fé e da espoliação
em permanente pugna
contra as epidemias as secas as crises cíclicas
com a paixão pelo ouro pela mesa
pela cama pelo saque pelo rapto
pelas mulheres negras e mulatas
com a consciência ardendo
nos purgatórios dos infernos
com o amor ao próximo
conspurcado pelo chicote
pela gula pela lascívia
pela ganância?
Todos nós éramos
todos nós fomos
excursionistas ocasionais
esporádicos caminhantes
das ruas sobreviventes
da mítica Cidade Velha
das suas pedras rumorosas
das suas memórias aterradas
emudecidas pela esmagadora solenidade
da História pátria imperial da Metrópole
veiculada nos colóquios nos discursos oficiais
nas missas solenes nas crónicas oficiosas
nos livros escolares nas suas mordaças
inúmeras impacientes omniscientes
nas suas máscaras ocultando
as praias as enseadas as gamboas
as baías os amplos areais da ínsula
nossa matricial baptismal primacial
onde
se persignaram
os descobridores da primeira ilha
encontraram guarida e pousio
para os incógnitos ardores futuros
no seu ventre ainda inóspito e virgem
os primeiros donatários e missionários
agraciados com as novas capitanias insulares
encarregados da construção das primeiras
capelas para a cura e para a salvação
das almas dos seus futuros habitantes
onde
desembarcaram
os primeiros colonos brancos
habitantes pioneiros do ainda
inóspito e inexplorado arquipélago
vindos da Madeira dos Algarves
de Génova de Florença de Sevilha
e de outras terras da Cristandade
e outros posteriores colonos perplexos
em busca das cobiçadas rotas da fortuna
defraudados com a pobreza e a ansiosa
secura da amarelecida Terra Prometida
onde
foram desembarcados
as mulheres e os homens negros
cativos primeiros acorrentados
das naus negreiras inaugurais
involuntários descobridores
da ilha oblonga e sinuosa
doada a título perpétuo
aos senhores brancos reinóis
e aos futuros brancos da terra
hóspedes forçados coagidos
moradores da terra sem regresso
do lacrimoso degredo escravocrata
prisioneiros do resignado exílio
dos rostos pretos e pardos
da sua subjugada descendência
disseminada pelas ribeiras
e pelas montanhas pelos
vales e pelas serras da ilha
onde
aportaram os descendentes
e os émulos dos implacáveis
conquistadores portugueses
de Ceuta e de outras praças
muçulmanas do Norte de África
e sob o pavilhão e em serviço
do Rei de Portugal e dos Algarves
fizeram aguada os visionários
navegadores e descobridores
dos caminhos marítimos para o Brasil
e para outras Américas meridionais
para ambas as Costas de África
para as Terras do Prestes João
para as Arábias do Sul para a Índia
para a Insulíndia para o Extremo Oriente
para a circum-navegação da Terra
e para outros mundos crismados
de bárbaros ainda desconhecidos
da cobiça dos olhos europeus
ainda indemnes à usura
do verbo sagrado adulterado
ainda ilesos à branca erosão
da conquista do saque do imenso
e vário sangue sugado e delapidado
nos massacres e nos genocídios
perpetrados pelas criaturas
pálidas carrancudas e barbudas
chegadas das longínquas e frias
terras do império da Cristandade
emersas dos obscuros horizontes
dos oceanos estrondosos
onde
se ouviram os primeiros vagidos
do idioma crioulo dos naturais
do cativeiro arquipelágico
onde
acostaram Cripto-Judeus
Cristãos Novos e outros
deportados reinóis punidos
por crimes de lesa-Majestade
condenados por heresia e blasfémia
contra a Santa Madre Igreja
Católica Apostólica Romana
contra os seus ensinamentos
preceitos ritos e dogmas da fé
onde
se construíram robustas
quase inexpugnáveis fortalezas
guarnecidas de muralhas canhões
regimentos de milícias dos filhos da terra
e de soldados islenhos e reinóis comandados
por Coronéis das ilhas peri-africanas
e Capitães-Generais vindos do Reino
abençoados por sua Santidade o Papa
e por Sua Majestade Sereníssima
El-Rei de Portugal e dos Algarves
de Aquém e de Além-Mar dos Senhorios
da Guiné das Conquistas da África
e dos Domínios das Índias
onde
se inauguraram igrejas capelas
e seminários diocesanos
se edificou a reluzente catedral
da primeira Diocese católica
de toda a África Ocidental
se benzeram e consagraram
os seus castiçais de prata
os seus cálices de ouro
os seus riquíssimos altares
as suas místicas ressonâncias
as suas pedras tumulares
as suas naves monumentais
por cujas paredes desfeitas
ainda ecoam a erudição
e os memoráveis sermões
do Padre António Vieira
sapientíssimo perpetuador
da humilde e perene sabedoria
de Santo António de Lisboa e Pádua
criador do sacro desígnio do Quinto Império
como vocação futura permanente de Portugal
para a posteridade relembrado e eternizado
como Imperador da Língua Portuguesa
onde
ainda uivam impenitentes
as pragas e as infernais imprecações
dos bispos negreiros e polígamos
onde
ainda se ouvem nítidas
as homilias crísticas e anti-esclavagistas
de Dom Frei Vitoriano Portuense e de outros bispos
e de outros padres frades e missionários humanistas
onde
se assombraram
as almas corsárias penadas
de Francis Drake e Jacques Cassard
e de outros piratas e de outros
sanguinários aventureiros
e de outros saqueadores
das renitentes riquezas
dos senhores das ilhas
e de outros devastadores
dos sustentáculos económicos
do arquipélago da penúria e da fome
dos periclitantes sustentos das suas
gentes pobres e remediadas
e de outros perpetradores
dos mais hediondos crimes
contra as populações insulares
abandonadas indefesas
onde
ainda choram
as preces mudas ajoelhadas
dos escravos domésticos
suplicando pela salvação
das suas almas ladinizadas
e das almas futuras dos irmãos
que se definhavam nos latifúndios
de Alcatrazes de São Martinho
da Trindade de São João Baptista
e das almas perdidas defuntas
dos irmãos que se calejavam
nas hortas e nas plantações
dos Mosquitos do Pico Vermelho
do Laranjo de São Salvador do Mundo
dos Flamengos do Cerrado dos Engenhos
de Jaracunda de Telhal de Tabugal de Pombal
e em outros vales regadios e lugares
de cultivo da fortuna e do padecimento
e das almas rebeladas
dos irmãos fugitivos
da clausura escravocrata
refugiados nos quilombos
de Julangue e Monte Negro
acossados nas colinas e nos vales
de São Domingos do Palmarejo
nas montanhas e nos desfiladeiros
de Santa Cruz da Boa Entrada
de Palha Carga de Chã de Tanque
andarilhos na busca e na demanda
de quinhões de terra e de liberdade
nas ilhas ainda desertas
nas parcelas arrendadas
nas courelas tomadas de parceria
nos latifúndios das ilhas agro-pastoris
de Santiago do Fogo e de Santo Antão
nos minifúndios das ilhas periféricas
do Sotavento e do Barlavento nossos
e das almas apaziguadas dos irmãos
que se desassossegavam na Cidade
da Ribeira Grande de Santiago, na Vila
de San Filipe do Fogo e na Vila da Praia
de Santa Maria da Vitória e da Esperança
e em outros burgos e em outros povoados
onde
rumorejaram ribeiras
caudalosas de água doce
arremessaram-se contra
os chuvosos céus das ilhas
plantas e árvores de grande porte
vicejaram arbustos e ervas
endémicas da solicitude
e da silenciosa e escarpada
solidão do arquipélago
germinaram sementes
até então desconhecidas
das ilhas virgens e inexploradas
multiplicaram- se plantas exóticas trazidas
de longínquas e inóspitas terras ultramarinas
apascentaram-se imensas manadas de alimárias
onde
fluíram sangues cativos da terra e da mancebia
edificaram -se sobrados palácios e solares
arderam casebres funcos choças e palhotas
onde
desfilaram procissões multicoloridas
consagradas a Deuses negros clandestinos
devotadas ao Deus branco único e bifacial
e aos seus deslavados acólitos divinos
igualmenter brancos tristes e severos
a santos católicos compadres e camaradas
a santas brancas belas no esplendor dos andores
onde
se estenderam as esteiras do luto
e se ornamentaram os terreiros da reza
onde
se acenderam as fogueiras da dança e do ritmo
se altearam as vozes da finason e do batuco
onde
se desvendaram os reais e cúpidos desígnios
da sacrossanta aliança entre a cruz e a espada
se edificaram os pelourinhos do martírio
se armaram os altares da flagelação
da dignidade humana dos corpos escuros
de almas infernizadas excomungadas
alegadamente gentílicas e pagãs
onde
se fizeram visíveis e se sagraram
os galantes gestos da decência
os veementes púlpitos da exigência
os cerimoniosos rituais da discórdia
nas palavras cúmplices e colaboracionistas
dos Peticionários negros de 1546
nos manifestos nas sucessivas rogações
nas precavidas rezas dos moradores das ilhas
contra os desmandos contra as prepotências
contra os muitos abusos dos mandatários do Rei
contra os muitos escândalos contra os muitos
pecados e desatinos dos representantes do Papa
onde
se incandesceram anónimas gestas
da renitência da compaixão e da liberdade
no verbo tempestuoso dos letrados e dos prelados
na improvável predicação de profetas e rebeldes
dos mercados nas feiras nos pelourinhos
nas praças da diversão e da confraternização
em torno dos coretos dos quiosques e dos jardins
nas esplanadas nos largos da reunião
das hostes dispersas do povo e em outros
lugares de convulsão das vozes esclarecidas
das criaturas humanas almejando-se seres
humanos integrais e cidadãos íntegros
no gozo pleno dos seus direitos e liberdades
cansadas de ser súbditas dos humores do destino
e das ciclotímicas comoções da meteorologia
Todos nós éramos
todos nós fomos
todos nós viríamos a ser
ribeiras sem fim panos de algodão
sementes de purgueira raízes de urzela
cabeças de alcatrão epidermes de carvão
almas em Cristo Deuses em expiação
Ribeira Grande Ribeira Principal
ribeiras do princípio do mundo
coração de catedrais e fortalezas
para onde
navegaram contra ventos e marés
galeões naus galeras caravelas
mercadores armadores negreiros
padres poetas piratas corsários cientistas
para onde
se recolheram em purga e oração
em comunhão com as pedras e as cabras
os cativos e outros sobreviventes das razias
do vómito da tristiose e da aflição dos porões
por onde
circulara o destino
da outrora opulenta Cidade
da Ribeira Grande de Santiago
da depois esvaída e francamente
decadente Cidade Velha
onde
se engendraram
as muitas vicissitudes
da cidade primeira antiquíssima
da primeira cidade europeia dos trópicos
da primeira cidade da primeira ilha da primeira
diocese da primeira colónia portuguesa de toda
a África subsaariana e de todo o mundo tropical
do primeiro domínio colonial luso
em todo o mundo então conhecido
achado descoberto saqueado
delapidado e/ou conquistado
da primeira cidade negra do Atlântico
da primeira cidade do Atlântico negro
da urbe crioula primogénita
da ilha primeva primordial
retintamente caboverdiana
do burgo edificado
como o verde da primeira rocha
onde
segundo as lapidares palavras
do Padre António Vieira
germinaram e se instruíram
cónegos negros como azeviche
mas tão doutos tão autorizados
tão discretos tão morigerados
tão bons músicos
que faziam inveja aos das catedrais
do Reino de Portugal e dos Algarves
Apresentação do livro SOMBRAS, de José Luís Hopffer C. Almada no Grémio Literário (Lisboa) – 4 de Outubro de 2023
Recital poético pelo grupo TAPOÉ.