A (re) construção do cânone literário caboverdiano pelo olhar das antologias (parte 1)
I Os primórdios da escrita de autoria caboverdiana
A escrita de autoria caboverdiana tem já um longo historial. Ela remonta ao século XVI, ainda era Cabo Verde uma terra conhecida dos europeus e africanos há menos de dois séculos, e inicia-se pela lavra de André Álvares de Almada, um mestiço natural da cidade da Ribeira Grande de Santiago de Cabo Verde, feito filho da terra caboverdiana, ainda a crioulidade emitia os seus primeiros vagidos numa sociedade marcada pela estratificação social fundada na escravização dos negros africanos trazidos da Costa Africana vizinha e na omnipotência dos senhores brancos idos de Portugal e de outras terras europeias.
Impuro de sangue, porque também descendente de negros, mas perfilhado e adoptado pela família fidalga do pai branco, André Álvares de Almada empreendeu por sua iniciativa uma longa e aventurosa viagem à Costa de África vizinha, então chamada pelos Europeus Rios da Guiné do Cabo Verde e sobre a qual viria a escrever o Padre António Vieira como “correspondendo em Guiné ao Bispado de Santiago”.
Essa viagem, datada dos fins do século XVI, visava o estudo e o reconhecimento da flora, da fauna e da geografia dessas regiões, então pouco conhecidas ou totalmente desconhecidas dos portugueses e dos europeus em geral e para eles certamente inóspitas e hostis, mas também o contacto bem como o melhor conhecimento dos povos africanos que os habitavam. Os objectivos eram claros: a conquista, o comércio, a missionação, a colonização a partir de Santiago, mas sob a bandeira portuguesa, ou melhor, sob a bandeira dos Reis de Portugal e Espanha, enfim, o saque colonial sob o alto patrocínio da aliança entre a cruz e a espada. Dessas viagens resultou o livro Tratado Breve dos Rios da Guiné de Cabo Verde, desde o rio de Sanagá até os baixos de Santana; de todas as Nações de Negros que há na dita Costa e de seus costumes, trajes, juramento e guerra, que, segundo o historiador João Manuel Nobre de Oliveira, só viria a ser publicado no século XVIII, em 1733, isto é, quase dois séculos depois da sua escrita, mas que trouxe no imediato imensas regalias ao seu autor, armado Cavaleiro da Ordem de Cristo, não obstante as muitas resistências de alguns círculos do poder vigente em razão da sua alegada impureza de sangue.
Quase um século depois, André Dornelha, igualmente um mestiço natural da cidade da Ribeira Grande de Santiago, escreve um livro também resultante das suas viagens à vizinha Costa de África, ainda nos fins do século XVI e inícios do século XVII, a que deu o título Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné do Cabo Verde.
Nos tempos seguintes, designadamente no século XIX, outros autores aventuram-se em idênticos empreendimentos, mas desta feita porque obrigados à fuga e ao exílio em razão das desavenças com o poder político-económico instalado nas ilhas. Tais foram os casos de João José António Frederico, antigo Procurador Régio no processo criminal instaurado contra Gervásio, Narciso e Domingos, líderes dos escravos prestes a sublevar-se em Monte-Agarro, nos arredores da Vila da Praia, capital de Cabo Verde, tendo como objectivo a instauração na grande ilha de Santiago de um Haiti caboverdiano, isto é, de uma ilha libertada da escravocracia e de senhores brancos ou, até, expurgada de todos os brancos, antecipando por assim dizer a célebre profecia de Nho Naxo: “Ali ben tenpu, ali ben dia ki orina di branku nen pa remedi ka ta atxadu” (“Haverá um tempo, dias chegarão em que nem para remédio se achará a urina do branco”), todavia não concretizada na sua acepção puramente racialista, nem tão pouco efectivada quando se entende branco na sua acepção ressemantizada pelas vicissitudes da mestiçagem e da crioulização caboverdiana de categoria puramente racial para categoria eminentemente social sinónima de rico e antónimo e oposto e/ou complementar de pobre e remediado. A equiparação e a sinonimação das categorias raça e classe social viria a atingir o seu paroxismo e expressão máxima na ilha de Fogo, até aos meados do século XX, segundo o ensaísta, médico e ficcionista foguense Henrique Teixeira de Sousa, em razão da confusão semântica historicamente engendrada entre os termos de categorização racial (branco, mestiço/mulato e negro), e de categorização/estratificação social (rico, remediado e pobre) com a equiparação/sinonímia entre rico/branco, remediado/mulato e mestiço, pobre/negro e preto-negro e a sua metafórica localização espacial e sociológica respectivamente no sobrado, na loja e no funco.
Segundo ainda o saudoso historiador João Manuel Nobre de Oliveira, exilado nos Estados Unidos da América e na África Ocidental, João José António Frederico viria a escrever a obra Notícias e Informações sobre Alguns Países da América do Norte, sobre Gorée, Gâmbia, Serra Leoa, Rio-Nuno, visitados por J.J. A. Frederico, para além de Reflexões sobre Bissau e a Vida de João José António Frederico contada por ele mesmo.
O seu familiar muito próximo, Luís Barros Frederico (designado também por Luís Frederico Barros), intrépido representante da nascente imprensa caboverdiana, viria a seguir-lhe as pisadas tanto nos caminhos do exílio como na escrita de um livro de viagens tendo por cenário a Costa de África vizinha e intitulado Senegâmbia Portuguesa ou Notícia Descripitiva das Diferentes Tribos que Habitam a Senegâmbia meridional, Contendo um Quadro de Usos e Costumes dos Povos que a Ocupam, Topografia, Religião, Governo, Línguas, Comércio, Indústria, Vestuário, Alimentação, Solo, Clima e Produções, e seguida da Geografia Physica daquela Parte das Costas Occidentais da África (1878). Além disso, foi jornalista e director do jornal A Imprensa, além de colaborador assíduo do (Novo) Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, tal como alguns outros autores caboverdianos dele contemporâneos e das gerações seguintes, com destaque para João Augusto Martins com o livro Madeira, Cabo Verde e Guiné e o considerado primeiro historiador caboverdiano Cristiano José da Sena Barcelos com os quatro volumes dos seus Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné.
Deste modo, pode-se deduzir que a escrita de autoria caboverdiana nasceu e foi crescendo e amadurecendo sempre navegando e palmilhando os mundos então conhecidos e em processo de (re)conhecimento, isto é, como uma escrita com o mundo dentro.
II Os escritores nativistas e a sua bifacial visão do mundo do seu tempo
Esse mundo tanto podia ser o mundo distante das terras do comércio e do exílio, como o mundo próximo das ilhas vizinhas, como a ilha da Madeira, como o similar mundo de ilhas próximas da grande ilha de Santiago feitas lugares de labor profissional e de desterro, como no caso paradigmático do Doutor Francisco Frederico Hopffer (licenciado em Medicina pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e Doutorado em Medicina pela Universidade de Louvaina), que, conduzido sob prisão para a ilha do Maio e aí desterrado, em razão da sua oposição a um dos governadores de Cabo Verde, escreveu uma obra sobre diferentes aspectos da mesma ilha, daí tendo resultado o primeiro livro escrito por um caboverdiano de temática caboverdiana, impresso em Cabo Verde e intitulado Apontamentos para a Topographia Médica da Ilha do Maio- Coligidos no Anno de 1869 pelo Doutor Francisco Frederico Hopffer (Praia, Imprensa Nacional, 1871).
O mesmo conceituado e prestigiado médico (aliás, tal como também o Doutor Júlio José Dias, doutorado pela Universidade de Paris, e cuja dissertação científica para a obtenção desse elevadíssimo grau académico foi póstuma e recentemente publicada) publicou, nas imprensas caboverdiana e portuguesa do seu tempo, inúmeros artigos na área da sua especialidade científica e na área do seu labor profissional e outros textos sobre outros relevantes aspectos da realidade física e humana de Cabo Verde e respeitantes ao seu comprometimento na luta contra as epidemias e as endemias. Ademais, são também inúmeros os seus escritos sobre os locais onde exerceu a sua actividade profissional, como a ilha de Santiago (onde nasceu, em 1829, na então vila da Praia) e as ilhas do Maio, de Santo Antão e de São Vicente bem como sobre a flora e a fauna caboverdianas, tendo sido pioneiro na inventariação e na classificação de algumas aves endémicas dos nossos ilhéus.
Por essa altura, a imprensa tinha-se já firmemente ancorado em Cabo Verde com o surgimento de vários jornais independentes/privados, desde a introdução do prelo em 1842, inicialmente na ilha da Boavista, transferido logo depois para a cidade da Praia (capital de Cabo Verde no tempo seco), sendo que o primeiro jornal privado denominado O Independente foi fundado na cidade da Praia, em 1877; Escolas régias de instrução primária iam disseminando-se pelas ilhas, tendo a primeira sido fundada na então Vila da Praia, em 1812; instituições de formação secundária iam aparecendo e desaparecendo, absorvidas por outras de mais feliz sorte, como foram os casos da Escola Principal da Instrução Primária, fundada na ilha Brava, em 1846, e transferida para a cidade da Praia, em 1850, bem como do Lyceo Nacional de Cabo Verde, criado na cidade da Praia, em 1860, e extinto, em 1862, alegadamente por falta de verbas para pagar o vencimento dos seus professores, vindo ambos os estabelecimentos de ensino a ser absorvidos depois pelo Seminário-Liceu de São Nicolau, fundado em 1866 e oficialmente extinto em 1917, transformando-se num mero colégio e dando lugar ao Liceu Infante Dom Henrique, temporariamente extinto em 1937 para supostamente ceder lugar a uma escola de formação em artes e ofícios, mas logo depois reaberto e renomeado com a denominação de Liceu Gil Eanes, por mor das fortes indignação e pressão populares e das elites caboverdianas e das suas ramificações na Metrópole colonial.
E, assim, iam-se sedimentando e firmando as condições sociológicas e técnicas para o surgimento de uma escrita que se não contentasse somente com a descrição da fauna, da flora, dos costumes e das tradições das regiões vizinhas e das nossas ilhas sujeitas à curiosidade do olhar desse observador do mundo ilhéu e circunvizinho que era o coetâneo letrado caboverdiano.
Um letrado, sublinhe-se, em formação e em busca da definição de si próprio e do mundo-matéria da sua observação e da sua indagação.
Um mundo, o mundo colonial-escravocrata, por essa altura em ruínas, em demanda de um outro mundo banhado das luzes da instrução e, nesses tempos assaz conturbados, da plena cidadania para todos os ilhéus caboverdianos, para todos os chamados filhos da terra e de efectiva igualdade com os reinóis radicados entre eles.
Um mundo vasto e díspare que extravasava as ilhas para se estender por todo o império colonial português, na altura em processo de reconstrução, em especial para a Costa vizinha continental africana, bem como para as terras norte-americanas já conhecidas dos primeiros emigrantes livres oriundos das nossas ilhas meso-atlânticas e peri-africanas.
Um mundo feito de culturas justapostas, sobrepostas e interpostas e de cissiparidades pátridas propícias à eclosão de tipos vários de homens-de-dois-mundos (segundo a terminologia usada por Manuel Ferreira) marcados pela hibridez identitária e em que a afirmação do torrão natal crioulo implicava quase necessariamente a passagem pela prova dos nove do vasto domínio da cultura escolar e da língua reinol e imperial na qual era veiculada.
E, deste modo, germina a cultura literária de autoria islenha caboverdiana na sua bifacialidade marcada pela vontade de imitar os mestres situados num lugar outro, reinol, considerado ideal e superior, e de igualar e, até, superar os seus émulos de outras paragens e cultores da mesma língua erudita pátria, mas também pela vontade de exteriorizar a sensibilidade característica da crioulidade em processo de acelerada consolidação e confirmação/consagração literária e os aspectos mais peculiares da realidade geográfica e telúrica e da ambiência socio-económica das quais emerge e nas quais se molda a mesma sensibilidade.
Nem por isso (ou talvez melhor dito, exactamente por isso) deixaram esses letrados de ser autênticos no seu labor literário e cívico. Cientes da especificidade geográfico-política das suas ilhas, já então denominadas ou tidas por arquipélago da fome e votadas ao abandono pelas autoridades coloniais (como comprovam à saciedade as muitas e percucientes denúncias do insigne historiador, cronista e oficial da Armada Portuguesa Christiano da Senna Barcellos e do advogado, periodista e polemista Luís Loff de Vasconcelos), bem como da singularidade cultural e da especificidade identitária do seu povo; fenecidas as expectativas de um alinhamento político outro, como a Confederação Brasílica, pensada para unir contra o domínio colonial português, um Brasil recentemente independente, as ilhas de Cabo Verde (e de que a Guiné dita portuguesa constituía um mero distrito militar) e uma Angola ainda fornecedora de mão-de-obra escrava ao Brasil e às Américas; matadas no ovo ou matizadas nos seus efeitos as várias revoltas protagonizadas por escravos, como a revolta de Monte-Agarro de 1835, e por camponeses, como a revolta dos Engenhos de 1822/1823, e da Achada Falcão, de 1842; soçobradas as esperanças de uma independência política à semelhança de outros povos resultantes da colonial-escravocracia e nela secularmente forjados, como, por exemplo, Cuba, só restava a esses letrados, segundo a sua mais profunda e sincera convicção, manter-se cultural e identitariamente caboverdianos ao mesmo tempo que levavam ao seu máximo limite as suas demandas de cidadania plena, nos termos virulentamente expressos por Eugénio Tavares: “Portugueses irmãos, sim!Portugueses escravos nunca!”. Eugénio Tavares, esse vate e jornalista (periodista) de grande envergadura que, sob a produtiva palavra de ordem A África aos Africanos!, põe em letra de forma as suas reivindicações de autonomia política no jornal Alvorada, por ele fundado e dinamizado nos Estados Unidos da América para onde tinha sido obrigado a exilar-se por mor da inventona de um “fabuloso alcance” pelas autoridades coloniais da altura.
Situando-se assim num mundo muito mais vasto do que o seu pequeno arquipélago, sempre ancorados na sua língua crioula que perfazia e sintetizava a singularidade identitária do seu povo, e nos quais também sustentaram a sua praxis cívico-política, eles, os nativistas, procuraram situar-se e situaram-se efectivamente no seu tempo e no mundo ocidental e peri-ocidental de então que era também o seu mundo.
Por isso, e à semelhança das suas demandas cívicas e políticas, a sua escrita tinha que carregar sobre os seus ombros e no sangue/tinta da sua pena o mundo da literatura e a literatura-mundo que então contava, não podendo eximir-se à contaminação das suas muitas exigências e dos seus maiores valores canónicos.
E eram euro-ocidentais esses valores, os quais lhes foram veiculados por duas vias e formas fundamentais:
i. Por um lado, pela cultura escolar, embebida de cultura erudita portuguesa de teor colonial-assimilacionista e das suas matrizes greco-latinas e judaico-cristãs e que lhes foi injectada pelos aparelhos ideológicos do sistema dominante e deles fez os prestigiados letrados que eram;
ii. Por outro lado, pela cultura popular com a qual conviviam e na qual bebiam a sua inspiração, em razão das co-matrizes europeias inoculadas na identidade crioula que era própria e congénita ao povo a que pertenciam e que sustentava essa mesma cultura popular.
Ainda assim, permaneceram os nativistas autênticos na sua inventividade e inventivos na sua autenticidade de letrados crioulos marcados a um tempo pelas instigações do meio-ambiente e da cultura popular islenha envolventes e pelas quase insuperáveis pressões das políticas assimilacionistas veiculadas pelos poderes coloniais dominantes.
Neste contexto e bebendo na antiguidade greco-latina, José Lopes e Pedro Cardoso lograram criar, em poemas grandiloquentes construídos ao modo camoniano, uma pátria original como alternativa complementar à super-pátria colonial (na pertinente expressão de Manuel Ferreira) ou pátria monumental portuguesa (na feliz expressão de Gabriel Fernandes), e figurada como localizadas num suposto jardim das hespérides ou nas afortunadas ilhas hesperitanas, também chamadas ilhas arsinárias, situadas num tempo greco-latino concebido, pensado e imaginado como sendo anterior à chegada dos portugueses às ilhas caboverdianas, no século XV.
Pedro Cardoso, o Afro dos poemas “Ao Egipto” e “Ode a África” enveredou igualmente pela identificação com as glórias passadas de uma África mediterrânica, esfíngica e faraónica, a um tempo berço e antagonista da civilização europeia ocidental, para legitimar o embate final contra o jugo estrangeiro, depois de passada a cheia colonial e a adubação do terreno para a germinação de uma épica nossa lavrada por novos varões, também nossos, africanos.
Com os estros de António da Paula Brito (autor da primeira gramática bilingue do crioulo e do primeiro alfabeto de base fonético-fonológica para a escrita da mesma língua, publicado em 1887, no Boletim da Sociedade de Geografia, de Lisboa), do Cónego Manuel da Costa Teixeira (fundador de revista Esperança, a primeira publicação periódica literária caboverdiana, editor/redactor/director dos dois volumes (de 1894 e 1899) do Almanaque Luso-Africano e autor da primeira cartilha do idioma crioulo caboverdiano), de Eugénio Tavares, de Pedro Cardoso, José Bernardo Alfama, João José Nunes, entre outros, os nativistas dignificaram ao máximo a língua caboverdiana, nobilitando-a mediante a defesa da sua filiação novilatina e elevando-a a altos patamares literários, como ficou ilustrado, e de forma insofismável, nas célebres mornas de Eugénio Tavares; rebelaram-se na sua contundente prosa lusógrafa e de alto gabarito literário contra todas as mazelas da terra deles e do povo caboverdiano sujeita ao domínio colonial; cantaram com fervor o velho Portugal para melhor enfatizarem as suas opções republicanas e as esperanças todas (depois frustradas) de cidadania plena e de autonomia política nelas depositadas e para melhor exprimirem o seu desencanto com os indícios e a efectiva emergência no real tempo histórico da Ditadura Militar e do subsequente Estado Novo colonial-fascista e a sua funesta política repressiva das liberdades democráticas de expressão do pensamento, de imprensa, de associação e de constituição de partidos políticos, todavia não tendo podido alguns deles (com destaque para José Lopes da Silva, o letrado islenho que pela primeira vez sonhou com um Cabo Verde independente, tal como as pequenas Andorra, San Marino e Lichtenstein o eram, explicitando tal desiderato no jornal mindelense Revista de Cabo Verde, e Juvenal da Costa Cabral, um incondicional defensor de Portugal como nação colonizadora, mas também um convicto apóstolo da disseminação do saber escolar entre as crianças das ilhas e de todas as colónias/províncias ultramarinas portuguesas) de deixar sucumbir-se ao fogo fátuo das promessas e dos apelos armadilhados da pátria imperial portuguesa, mesmo se mantendo alguns traços colaboracionistas rebeldes (na mais uma vez feliz expressão de Gabriel Fernandes) da sua antiga postura crítica contra as crónicas mazelas da sua terra caboverdiana e das suas gentes abandonadas à sua sorte de vítimas das secas cíclicas e das mortandades pela fome. Intentando continuar a conjugar de forma hábil, mas cada vez mais precária e intermitente, as componentes todas da sua cissiparidade pátrida, fizeram-se, enfim, cabouqueiros e os primeiros inventores da literatura caboverdiana de todos os géneros, ao mesmo tempo que pairavam sobre tudo o que depois veio tocar as suas aparentes intocabilidade e intangibilidade, permanecendo no espírito dos caboverdianos como digníssimos antepassados, antecessores e precursores de tudo o que se lhes seguiu, mesmo quando temporariamente ocultados, estigmatizados e ostracizados, e momentaneamente esquecidos.
A cissiparidade pátrida vivenciada e praticada pelos nativistas, tanto na sua pugna cívico-política como na sua escrita jornalística e literária, foi assim um marco da sua época colonial caboverdiana e uma marca da sua profícua e poderosa passagem por essa mesma época e do seu específico legado para as gerações vindouras e para as novas gerações das diásporas, todos os dias actualizado num tempo de cada vez maiores exigências e demandas de plena cidadania nas pátrias e terras natais de acolhimento de muitos caboverdiano-descendentes, esses verdadeiros e identitariamente híbridos homens-de-dois-mundos e homens-de-entre-dois-mundos, também, e por isso, nossos patrícios e compatriotas. Um tempo que é, também por isso mas não só, igualmente um tempo de múltiplas pertenças identitárias e de almejada crioulização do mundo, como tão bem sustentado na conceptualização da cultura da relação, da literatura do Tout-Monde e do rizoma pelo antilhano crioulófono e francófono Édouard Glissant.
Os letrados nativistas lavraram em alto grau a literatura-mundo de raiz e matriz ocidental, não precisando sequer de qualquer esforço anormal e extraordinário para o seu acolhimento, pois que a carregavam consigo, na mais íntima autenticidade da sua cissiparidade pátrida, alavancada na sua erecção bifacial a partir da génese identitária de um povo crioulo meso-atlântico sujeito em modos resignativos, conformados, fatalistas e aparentemente perenes ao assimilacionismo luso-colonial, cientes da eurocentralidade das matrizes greco-latinas e judaico-cristãs da sua cultura escolar e erudita, mas também cônscios da afro-ocidentalidade (no duplo sentido geográfico e antropológico, de peri-africanidade meso-atlântica, por um lado, e de peri-ocidentalidade, por outro lado) da cultura popular islenha e arquipelágica, e, depois, da identidade nacional caboverdiana, de feições crioulas e teor afro-latino que os sustentava no seu dia-a-dia e na demanda de melhores dias para o seu sofrido povo na sua terra amada, mas madrasta e mártir.
O modernismo literário caboverdiano e a transfiguração de cabo verde como matéria exclusiva da escrita literária concomitantemente com a afirmação do cânone claridoso como o cânone literário modernista dominante e/ou exclusivo e sinónimo de uma suposta caboverdianidade cultural autêntica e/ou de uma literatura genuína e verdadeiramente caboverdiana
A acima referida cissiparidade pátrida no plano literário só viria a ser superado e ultrapassado com a eclosão do modernismo literário e plástico que em Cabo Verde teve uma feição eminentemente telúrica.
E a ultrapassagem/superação far-se-ia de forma radical e a vários níveis. No plano temático, Cabo Verde e o seu povo tornam-se matéria (quase) exclusiva da escrita literária, quer a vazada em verso quer a lavrada em prosa.
A nível estético, a opção é, na poesia, por um modernismo versilibrista (com algumas excepções em Manuel Lopes, ainda muito cultor da rima e, menos, da regularidade métrica em número assinalável dos seus poemas, e, mais tarde, em Arnaldo França, o poeta modernista caboverdiano que manteve o soneto - incluindo o soneto inglês - como a sua forma versificatória predilecta), versilibrismo esse predominantemente incidente sobre o caboverdiano humilde, anónimo, meu irmão (nos muito pertinentes, felizes e fraternitários termos cunhados pelo poeta Jorge Barbosa), encurralado pelas crises das estiagens e por outras crises (como a do Porto Grande da ilha de São Vicente) e vegetando nos pequenos dramas da nossa terra (ainda segundo Jorge Barbosa), e acossado pelo terra- longismo e pelo dilema bipartido consignado no célebre binómio dilemático Querer partir e ter de ficar e Querer ficar e ter de partir. Binómio bipartido dilemático esse que foi formulado pela primeira vez por Pedro Corsino Azevedo no poema “Terra-Longe” e retomado de forma consequente no evasionismo psicológico e no terra-longismo de Jorge Barbosa, por isso considerado ultra-evasionista e abjurado como o sumo-pontífice do evasionismo no célebre livro-manifesto Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana. Relembre-se neste contexto que esse mesmo livro foi editado pela Casa dos Estudantes e assinado por Onésimo Silveira, desde há algum tempo assumido e reconhecido como mero, vivo e personificado (se bem que politicamente rebelde e sócio-culturalmente inconformista) pseudónimo de Manuel de Jesus Monteiro Duarte, o seu verdadeiro autor que envergou as prudentes e anónimas vestes de ghost-writer, em razão da semi-clandestinidade política a que eram todos coagidos pelas garras persecutórias da censura e da polícia política nessa altura sombria da história colonial-fascista e que, aliás, obrigou o mesmo Onésimo Silveira ao exílio e a prodigiosas aventuras pelo mundo fora, todas narradas e recontadas no livro de entrevistas Onésimo Silveira - Um Mar de Histórias, de José Vicente Lopes, lançado no nobre espaço da nossa confluência intelectual e cidadã intermediada pelo idioma comum da nossa atribulada história que é a sede da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).
Na prosa de ficção, a necessidade de encontrar os meios estéticos mais adequados para a expressão da total comunhão entre o homem caboverdiano e a sua terra agreste, mas muito estimada, propicia a criação do chamado português literário caboverdiano, talvez a maior invenção literária claridosa.
No plano da convivialidade e do relacionamento intergeracional, a questão é por demais ambígua. Se no plano pessoal, as relações são isentas de qualquer animosidade intelectual e geracional, e, até, assaz amistosas e marcadas pelo respeito mútuo e por alguma “admiração recíproca”, como testemunham Baltasar Lopes da Silva e Gabriel Mariano em entrevistas a Michel Laban insertas na obra, em dois volumes, intitulada Cabo Verde- Encontro com Escritores, até por força das relações familiares e da necessidade de co-existência pacífica e cordial numa pequena sociedade de forte interconhecimento, no plano estético-ideológico a ruptura parece total. É assim que tanto a estética como a memória dos letrados pré- claridosos é quase completamente rasurada da obra e da palavra escrita dos claridosos, salvo esparsas referências a Eugénio Tavares, enquanto cultor do crioulo literário e da morna, e as repetidas chamadas de atenção de António Aurélio Gonçalves para a necessidade da devida valorização do contributo das gerações pré-modernistas caboverdianas para a ancoragem da literatura e da cultura erudita na nossa sociedade crioula.
Mais do que isso, considera-se que a escrita literária anterior à claridosidade padecia de falta de autenticidade, não podendo ser considerada como literatura verdadeiramente caboverdiana. Parece ter ocorrido neste caso o que ocorrera em outros países nos quais a construção dos sistemas literários nacionais se fez em oposição e em negação da literatura colonial primacialmente cultivada por colonos, isto é, por estrangeiros, quase que exclusivamente brancos europeus, radicados no território colonizado e privilegiados enquanto classe colonial com o exercício exclusivo e quase monopolista de todas as dimensões do poder e do saber erudito, como parece ter ocorrido na generalidade das colónias terceiro-mundistas das potências europeias (ou, pelo menos, com a representação soberana e simbólico-política, repartida desigualmente em algumas das suas instâncias com as elites letradas e burocrático-administrativas locais, das dimensões estratégicas do poder efectivo e do saber oficial exercidos a partir de um centro exterior situado na metrópole colonial, como parece ter sido em Cabo Verde.). É sabido que a sociedade caboverdiana, forjada por mais de cinco séculos de dominação colonial, caracterizou-se na sua fase final por um colonialismo clássico quase sem colonos e na qual a literatura erudita pré-modernista foi introduzida e cultivada por uma elite islenha autóctone e castiçamente caboverdiana ou, pelo menos, muito marcada do ponto de vista cultural e identitário pela caboverdianidade, se bem que também enredada nas malhas armadilhadas da cissiparidade pátrida. É neste contexto que considera o estudioso Rui Guilherme da Silva que a literatura criada e cultivada pelos nativistas caboverdianos foi equiparada à literatura colonial dos outros países africanos colonizados e, por esta via, indelevelmente marcada com o selo de uma alegada inautenticidade literária, não só porque do ponto de vista da sua temática teriam arredado Cabo Verde da sua literatura, como, porque do ponto de vista estético, se teriam limitado a imitar (e mal, invectiva-se!) os modelos portugueses dominantes na metrópole colonial e nas colónias/províncias ultramarinas (e os únicos disponíveis, ou pelo menos, os mais facilmente acessíveis).
Gozando de uma aura quase mítica/mística na sociedade caboverdiana, aquando da eclosão do modernismo literário, os Antigos não se deixaram intimidar. Respondendo a um escrito dos inícios dos anos trinta em defesa do modernismo literário, de Quirino Spencer Salomão, contemporâneo dos claridosos, Pedro Cardoso contesta-o numa “Profissão de Fé”, publicado no jornal praiense Eco de Cabo Verde, acusando os modernistas literários de bolchevismo literário e reiterando a sua defesa das regras clássicas de metrificação e de construção do poema, argumentando que o verso construído segundo essas rígidas regras continuava a ser “a vestimenta mais adequada à poesia”.
Facto é que a démarche claridosa fez escola e perdurou por um longo período. Tendo tido acolhimento no Amílcar Cabral do ensaio intitulado “Apontamentos sobre a Poesia Cabo-Verdiana”, publicado, em 1952, no Boletim Cabo Verde, a óptica e a postura teórica de considerar que a literatura cabo-verdiana só teve verdadeiramente início com os escritores e ensaístas claridosos seria acesa e acerrimamente defendida por vários intelectuais das gerações claridosas e das várias vagas neo-claridosas seguintes, com destaque para Jaime de Figueiredo, Henrique Teixeira de Sousa, Manuel Ferreira e Gabriel Mariano. Por tal forma, que o cânone literário claridoso, quer na poesia, quer na prosa de ficção, quer ainda no ensaio, tornou-se sinónimo de literatura caboverdiana e de literatura verdadeiramente caboverdiana.
É isso mesmo que ficou plasmado nas duas primeira grandes antologias da literatura caboverdiana: a Antologia de Ficção Cabo-Verdiana Contemporânea, organizada por Baltasar Lopes da Silva, prefaciada por António Aurélio Gonçalves e introduzida por Manuel Ferreira, e a antologia Modernos Poetas Cabo-Verdianos, organizada e prefaciada (apresentada) por Jaime de Figueiredo.
Editadas por ocasião das celebrações oficiais do Meio Milénio do Achamento de Cabo Verde, essas mesmas que mereceram uma crítica abordagem de Jorge Barbosa no poema “Meio Milénio” e os seguintes versos de Ovídio Martins: “Sol ou chuva/para vós as glórias do achamento/para nós os sonhos em ampulhetas”, as duas antologias serviram aos seus organizadores para provar e ilustrar de forma firme e insofismável a existência de uma literatura caboverdiana, consistente, qualitativamente pujante, ainda que escassa do ponto de vista quantitativo, e sobretudo auto-suficiente e autónoma da literatura portuguesa ou de qualquer outra literatura conhecida, mesmo se beneficiando da sua influência, como efectivamente ocorreu com a literatura caboverdiana nas suas relações com a literatura brasileira nordestina e com as literaturas portuguesa, francesa, norte-americana e russa.
E nisso residiu a sua inteligência: aproveitar as brechas e as oportunidades consentidas pelo sistema colonial-fascista vigente para a sua própria afirmação como escritores de uma literatura específica, a moderna literatura caboverdiana, nessa altura em processo de afirmação e consolidação.
Tendo conhecido três fases (a primeira, de 1936/1937, a segunda, de 1947/1948/1949 e a terceira, de 1958/1960) e apesar de ferozmente contestada pela geração nacionalista de cinquenta, a claridosidade pôde afirmar-se e consolidar-se não só como uma corrente literária modernista, mas sobretudo como uma ética e uma estética de comunhão com a terra e o o povo caboverdianos servidas pelo português literário caboverdiano e sustentadas numa compreensão sociológica e antropológica da sociedade caboverdiana como sociedade crioula com predominante teor cultural europeu e na qual a pobreza de recursos naturais teria optimizado uma ampla mestiçagem biológica e uma cabal miscigenação cultural, tendo, por isso, supostamente esbatido os conflitos raciais e acelerado a diluição de África na cultura caboverdiana, pelo menos do ponto de vista identitário e no plano antropológico- cultural.
Relembre-se neste contexto que, segundo os termos propostos no esquema introduzido e fundamentado pelo sociólogo brasileiro Artur Ramos no seu livro O Negro Brasileiro e entusiasticamente adoptado pelos claridosos-fundadores e pelos seus seguidores, o devir histórico e a evolução das comunidades postas em contacto cultural repressivo e assimétrico com outras comunidades por via da dominação colonial-escravocrata (sendo, por isso, a cultura da comunidade dominante considerada sempre como a superior), processar-se-iam de forma paulatina, mas irreversivelmente, da fase da reacção (isto é, de confronto entre as duas culturas e de resistência da cultura da comunidade dominada em relação à cultura da comunidade dominante) passando pela fase de adaptação (isto é, de cedências mútuas e reelaboração das culturas originalmente em confronto, disso resultando o surgimento de uma cultura-síntese) culminando na fase de aceitação da cultura da comunidade dominante por parte da comunidade dominada . Na óptica dos claridosos, com destaque para o Baltasar Lopes da Silva dos ensaios “A Linguagem das Ilhas” (publicado na primeira fase -1936/1937- da revista Claridade) e “Uma Experiência Românica nos Trópicos” (publicado na segunda fase -1947-1949- da revista Claridade) bem assim de “Cabo Verde Visto por Gilberto Freyre” (publicado, em 1956, em formato de livro pela Imprensa Nacional de Cabo Verde), de João Lopes dos dois ensaios publicados na primeira fase da revista Claridade e de Pedro de Sousa Lobo, do ensaio publicado no nono e derradeiro número da mesma revista, todas as ilhas caboverdianas estariam, dos pontos de vista cultural e antropológico, na fase da aceitação da cultura europeia/portuguesa dominante, com alegada excepção da ilha de Santiago, considerada a mais africana e a mais atrasada das ilhas caboverdianas dos pontos de vista cultural e antropológico, porque, na opinião desses mesmos letrados de várias vagas claridosas, ultrapassada a fase da reacção, considerada a primeira fase no processo de aculturação de uma comunidade dominada, e acima referido, a mesma ilha - ou, pelo menos, o seu hinterland (interior rural) - se encontraria atolada ainda na fase de adaptação, não tendo atingido ainda, como as demais ilhas irmãs caboverdianas, a fase da aceitação.
Ponto de vista diferente viriam a defender o claridoso de segunda vaga Henrique Teixeira de Sousa, designadamente no ensaio Cabo Verde e as Suas Gentes, publicado em 1954, como separata do Boletim Cabo Verde, e o nova-largadista Gabriel Mariano, do ensaio “A Mestiçagem: O Seu Papel na Formação da Sociedade Cabo-Verdiana”, publicado no número único do Suplemento Cultural, e do ensaio “Do Funco ao Sobrado ou o Mundo que o Mulato Criou”, apresentado em forma de comunicação aos Colóquios Cabo-Verdianos, realizado em Lisboa, em 1958, e publicados no livro homónimo pela Junta de Investigação do Ultramar, constando os dois supra-referidos ensaios de Cultura Caboverdeana, de Gabriel Mariano, colectânea que reúne todos os seus ensaios. Com efeito, Henrique Teixeira de Sousa defende de forma expressa que o processo de aculturação ocorrido em Cabo Verde teria culminado na fase de adaptação correspondente à mútua assimilação entre as duas comunidades em contacto no processo de aculturação e à diluição das duas culturas inicialmente presentes e em confronto numa nova cultura emergente, a cultura crioula caboverdiana, na qual todavia a componente cultural de matriz europeia tenderia a prevalecer, com maiores fulgor, pujança e vigor, em detrimento da componente cultural de matriz africana, aliás, considerada em irreversível processo de diluição, tal como apregoado por Baltasar Lopes da Silva e pelos seus seguidores neo-claridosos.
Por seu lado, afirmando que Cabo Verde é uma nação que nasceu na culatra do colonialismo, Gabriel Mariano caracteriza a cultura caboverdiana como, a um e simultâneo tempo, um continente cultural uno na sua unidade e e homogeneidade, e um arquipélago cultural, plural e multifacetado na sua diversidade cultural emergente da diversidade das suas ilhas, das histórias dos respectivos povoamentos, das suas populações e das suas expressões e manifestações linguísticas (incluindo o seu crioulo), preferindo situar na ampla diversidade arquipelágica caboverdiana as especificidades culturais da ilha de Santiago (cuja cultura, aliás, vivenciou e conheceu muito bem, por lá ter vivido parte importante da infância e da adolescência, e em cuja variante-matriz escreveu todos os seus poemas em crioulo).
Assumindo-se como um movimento modernista marcado pelo telurismo, a revista Claridade pôde absorver as gerações de escritores (modernistas na sua esmagadora maioria) que se seguiram aos claridosos-fundadores e a uma claridosidade em processo de consolidação e consagração como uma estética quase confundível com a própria caboverdianidade literária. É isso mesmo que fica confirmado e consagrado nas duas antologias acima referidas.
Apesar do seu importante e significativo legado na poesia, na prosa de ficção e na escrita jornalística, de continuarem a gozar de enorme prestígio junto das elites e do povo caboverdianos e das autoridades coloniais portuguesas, de um deles (José Lopes da Silva - 1870-1960), permanecer vivo e literariamente activo durante todo o magistério e ao longo da intermitente existência da revista Claridade (1936-1960), se bem que assaz acomodado e/ou largamente recuperado pelo poder colonial-fascista vigente, e de outros dois deles terem assistido à eclosão e à primeira fase da mesma revista modernista (Pedro Cardoso, falecido em 1941) e à segunda fase claridosa (Juvenal Cabral, falecido em 1952), os escritores nativistas, histórico-cronologicamente anteriores aos claridosos são simplesmente ignorados e totalmente esquecidos e rasurados nas publicações periódicas e unitárias, em suma, nas obras editadas ou patrocinadas pelos claridosos e pelos seus seguidores das várias vagas neo-claridosas bem como pelos seus adversários modernistas das várias gerações, sendo ademais, e até, estético-ideologicamente desprezados, vituperados e/ou vilipendiados por alguns deles, o que todavia não impede a sua coexistência pacífica, por vezes pontuada por alguma polémica, nas páginas ecléticas e muito conviviais do oficioso e culturalmente muito aberto Boletim Cabo Verde.
Assim, a afirmação do cânone claridoso, dos seus pontífices, epígonos e discípulos caminha a par e passo com a denegação/renegação do cânone anterior de muitos teores e faces e múltiplas dimensões ((ultra)romântica, neo-classicizante, arcádica e simbolista), e a redução da validade da sua escrita àquela vazada em crioulo e/ou em defesa do crioulo, vertente linguística, aliás, comum a todas as gerações literárias caboverdianas. Anote-se, neste concreto contexto, que a cissiparidade pátrida dos claridosos-fundadores, relevante sobretudo na vertente ensaística e cívico-política do seu labor, representa a cissiparidade pátrida claridosa, relevante sobretudo na vertente ensaística e cívico-política do seu labor, uma pálida imagem da exemplar e indomável combatividade cívico-política dos seus antepassados nativistas, quiçá em razão dos tempos empestados do vigente e omnipresente silêncio imposto pela polícia política e pela censura prévia à imprensa do Estado Novo colonial-fascista saído da Ditadura Militar instaurada pelo golpe militar de 28 de Maio de 1926, alegadamente desferido contra os excessos, desordens e instabilidades governamentais da Primeira República portuguesa (por isso, também glorificado pelos seus promotores e defensores como Revolução Nacional), tempos esses outrossim temporalmente coincidentes com a abertura do campo de concentração de Chão Bom do Tarrafal (também denominado campo de morte lenta), na ilha de Santiago de Cabo Verde, exactamente no ano (1936) da fundação da revista Claridade.
Apesar da sua concretizada pretensão de absorção no seu seio modernista teluricista de todas as gerações literárias que se lhe seguiram e de (quase) todos os seus protagonistas, a própria claridosidade não se viu isenta de críticas, por vezes demolidoras.
Beneficiando embora do alargamento da sua área de jurisdição literária mediante o contributo de poetas e prosadores oriundos das ilhas de São Vicente (com os mais velhos António Aurélio Gonçalves e Sérgio Frusoni e os mais novos Manuel Serra, Nuno de Miranda, Aguinaldo Fonseca, Ovídio Martins, Corsino Fortes, Yolanda Morazzo e Onésimo Silveira), de Santiago (com Maria Helena Spencer, António Nunes, Arnaldo França, Euclides Meneses, Pedro Duarte e Virgílio Pires), do Fogo (com Mário Macedo Barbosa e Henrique Teixeira de Sousa), de São Nicolau (com Gabriel Mariano), de Santo Antão (com Manuel Serra, Guilherme Rocheteau, Tomás Martins, Teobaldo Virgínio e Luís Romano) e do Sal (com Jorge Pedro Barbosa), podendo-se-lhes agregar ainda os nomes de Amílcar Cabral, Daniel Filipe e Manuel Ferreira, e do enriquecimento dos pressupostos estético-ideológicos da sua literatura e dos fundamentos antropológicos e sociológicos da sua explicação da sociedade caboverdiana, sobretudo através dos ensaios de Félix Monteiro, Henrique Teixeira de Sousa, Gabriel Mariano, Pedro de Sousa Lobo, António Carreira e Manuel Ferreira, a claridosidade e os claridosos-fundadores em particular viriam a ser severamente contestados pelos escritores modernistas e nacionalistas dos anos cinquenta/sessenta do século XX.
II A nova largada da literatura caboverdiana
Saudados por Amilcar Cabral nos seus “Apontamentos sobre a Poesia Cabo-Verdiana”, ensaio publicado, em 1952, no Boletim Cabo Verde, numa óptica neo-realista e nacionalista no que tinham genuinamente de comunhão da sua escrita literária com os problemas mais candentes do povo caboverdiano, aquele intelectual caboverdiano também chamara a atenção para a necessidade de “transcender” a mensagem claridosa, sobretudo no que ela tinha de resignativo, vendo no “Poema de Amanhã”, de António Nunes, e no “Poema”, de Aguinaldo Fonseca, exemplos plausíveis e pertinentes dessa conseguida superação e a ser impreterivelmente seguida pelas novas gerações, na medida em que o primeiro poema citado se referia a “estas leiras de terra que se estendem,/ quer sejam Mato Engenho, Dàcabalaio ou Santana”, que “um dia serão nossas”, inundando-se o poema, depois de descrito o quadro marcado pela aridez das paisagens físicas e pelo desalento das criaturas humanas das ilhas, de um optimismo esfusiante sustentado no sonho e na esperança de novos e melhores dias para os filhos das ilhas, doravante alimentados por “novas seivas brotando da terra dura e seca”. Mais esparso e parcimonioso em palavras consubstanciadoras de eventuais delírios oníricos de utópica e salvífica redenção dos homens e da sua mãe-terra caboverdiana, o segundo poema, do afro-crioulista e nova-largadista Aguinaldo Fonseca, conclama o povo das ilhas (na feliz expressão inventada pelo também afro-crioulista e novo-largadista Manuel Duarte) a “construir outra terra dentro da nossa terra”.
Do ponto de vista da compreensão identitária e antecipando o opúsculo “Cabo Verde Visto por Gilberto Freyre”, de Baltasar Lopes da Silva, que propugna e racionaliza a diluição de África em Cabo Verde, Manuel Duarte analisa e interpreta o caso político-cultural de Cabo Verde no seu ensaio “Cabo-Verdianidade e Africanidade”, publicado em 1951, na revista coimbrã Vértice, situando-o no tempo histórico das emancipações políticas africanas e compreendendo-o como tendo matrizes europeias e africanas mas pugnando por um seu entendimento como um caso de regionalismo político-cultural mais africano do que europeu por razões atinentes à geografia, à origem étnica da grande maioria da sua população e ao seu destino político imediato, marcado pela libertação dos povos africanos do jugo colonial europeu.
Nessa sequência, surge o opúsculo Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana, um verdadeiro opus magnum da tomada de consciência político-cultural da Geração da Nova Largada, aquela “que não vai para Pasárgada” e um seu verdadeiro manifesto, como a mais contundente crítica da claridosidade, acusada de ser inautêntica, elitista, evasionista, resignativa, barlaventista, seminarista e ocultadora da presença negra e negro-africana em Cabo Verde e, ademais, premeditadamente indutora da diluição em Cabo Verde dessa mesma presença cultural negro-africana.
Tendo tido importantes consequências no processo de reafricanização dos espíritos entendido enquanto processo de catarse cultural de resgate da dimensão africana da cultura caboverdiana, o “livrinho maldito” (no expressivo dizer do nova-largadista e neo-claridoso Gabriel Mariano) não afectaria todavia grandemente o estatuto literário canónico dos claridosos e da estética por eles fundada e seguida em várias vagas seguintes de neo-claridosos, dos pontos de vista estético e estético-ideológico.
É o que atesta o primeiro volume da antologia No Reino de Caliban, Antologia Temática da Poesia Africana de Expressão Portuguesa, de Manuel Ferreira, e dedicado a Cabo Verde e à Guiné-Bissau (estando este último país representado por um único poeta, designadamente Baticã Ferreira), publicado em 1975 e consagrando-se de imediato como a mais importante antologia até hoje organizada sobre a poesia caboverdiana, não só pela abrangência dos poetas e dos poemas compilados e seleccionados, como também pelas argumentações constantes das suas notas introdutórias para a fundamentação das escolhas feitas e para a explicação do caso antropológico especial de Cabo Verde como sociedade crioula supostamente superadora e doravante livre de conflitos raciais.
Algumas questões relevantes ressaltam desde logo na poesia e nos poetas antologizados para esse primeiro volume de No Reino de Caliban, dedicado a Cabo Verde e à Guiné-Bissau:
i. A inclusão dos poetas anteriores aos claridosos somente na sua dimensão de cultores de poesia em crioulo, como nos casos de Eugénio Tavares e Pedro Cardoso, ficando excluída a sua poesia lusógrafa, tal como ficaram excluídos os poetas caboverdianos lusógrafos Guilherme da Cunha Dantas, Januário Leite ou José Lopes, bem como as muito activas poetisas desse importante período histórico-cultural, Gertrudes Ferreira Lima, chamada A Humilde Camponesa ou também A Obscura Paulense, e Maria Luiza Senna Barcelos, chamada A Africana, e somando-se aos dois grandes poetas nativistas bilingues anteriormente referenciados os poetas Luís Romano, Jorge Pedro Barbosa, Corsino Fortes, Arménio Vieira, Artur Vieira e Virgílio Pires, todos também bilingues, mas igualmente antologizados nas suas facetas lusógrafas, tidas por mais relevantes na sua obra.
ii. A inclusão de António Pedro Costa, todavia não como inventor do modernismo poético cabo-verdiano e precursor do modernismo teluricista claridoso, que efectivamente foi com o livro Diário, publicado na cidade da Praia, em 1929, mas como mero antecessor dos claridosos.
iii. A inclusão da poesia de João Vário constante do livro Horas sem Carne, publicado em 1958 e por ele próprio renegado e retirado do mercado por alegada falta de qualidade e supostamente oriunda do estro de “um poeta neófito”, e de excertos de alguns livros integrantes de Exemplos, designadamente o Livro Primeiro, Exemplo Geral, e o Livro Segundo, Exemplo Relativo, já então dados à estampa, apesar da sua classificação também por Manuel Ferreira como poesia inautêntica e desfasada de realidades estritamente caboverdianas.
iv. A inclusão (tal, como, aliás, João Vário), na secção final reservada a “Poetas Cabo-Verdianos das Sete Partidas do Mundo, da poesia de temática caboverdiana do poeta luso-caboverdiano Daniel Filipe, autor de livros versando temas caboverdianos, como, por exemplo, A Ilha e a Solidão, mas também de livros de temática portuguesa, como, por exemplo, Pátria-Lugar de Exílio, ou de temática universal, como A Invenção do Amor. Essa inclusão é tanto mais relevante porque Daniel Filipe, apesar de ter nascido na ilha da Boavista de Cabo Verde e de uma parte da sua obra versar temáticas caboverdianas, não foi incluído na antologia Modernos Poetas Cabo-Verdianos, de Jaime de Figueiredo.
v. A exclusão de poemas e de poetas assumidamente negritudinistas, pan-africanistas e/ou anti-claridosos, como o Kaoberdiano Dambará (pseudónimo de Felisberto Vieira Lopes) do livro de poemas anti-coloniais Noti, de 1964, redigidos maioritariamente em crioulo fundo (basilectal) do interior rural da ilha de Santiago, João Henrique de Oliveira Barros (este último por vontade própria por não concordar com os critérios adoptados pelo antologizador, alegada e necessariamente muito condicionado pela ferozmente vigente censura colonial-fascista), Kwame Konde pseudónimo do médico-guerrilheiro Francisco Fragoso, autor do livro de poemas bilingue Korda Kauberdi, publicado em 1974, em Paris) e Timóteo Tio Tiofe, que, entretanto tinha já publicado excertos do seu futuro O Primeiro Livro de Notcha na revista-folha Nôs Vida, de Roterdão, ou, por exemplo, o poema “Eis-me aqui, África”, de Mário Fonseca.
A publicação do primeiro volume de No Reino de Caliban viria a ter repercussões, não só na duradoura afirmação do cânone claridoso, esteticamente seguido no seu modernismo teluricista pelas novas gerações nova-largadistas e nacionalistas, mesmo se estético-ideologicamente contestado nos seus pressupostos estético-ideológicos alegadamente resignativos e evasionistas e na fundamentação luso-tropicalista da sua compreensão do Cabo Verde colonial.
Abrangendo a poesia modernista lusógrafa e alguma poesia em crioulo publicada (ou mantida inédita pelos seus autores) até à eclosão da Revolução dos Cravos do 25 de Abril de 1974 e/ou à conquista da independência nacional de Cabo Verde, a 5 de Julho de 1975, ela seria amplamente utilizada no ensino secundário caboverdiano e nas universidades de todo o mundo. Deste modo, manteve-se por longo tempo o status quo criado com o surgimento do modernismo teluricista inventado pelos claridosos e aprofundado e alargado pelos poetas, contistas e ensaístas das várias vagas neo-claridosas e nova-largadistas, mantendo-se no esquecimento a, bastas vezes grande, poesia lusógrafa cultivada pelos poetas e poetisas nativistas, republicanos e clássico-românticos anteriores aos claridosos e seus predecessores, antecessores e antepassados.
A mesma situação se manterá com a publicação, em 1977 e 1978, das duas antologias de “poesia africana de língua portuguesa”, Na Noite Grávida de Punhais e Canto Armado, de Mário Pinto de Andrade, as quais incluem os mais importantes poetas modernistas e teluricistas caboverdianos, à semelhança de outras organizadas, desde 1958, pelo mesmo autor, em contraste com o caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, organizada por ele e por Francisco José Tenreiro, que excluiu poetas caboverdianos, alegadamente por se tratar de um caso à parte em razão da sua mestiçagem cultural e biológica, em clara adesão às teses de diluição de África em Cabo Verde propugnadas por Baltasar Lopes da Silva e à revelia da realidade textual de poemas, por exemplo de António Nunes, de Aguinaldo Fonseca, de Amílcar Cabral ou, mesmo, de Jorge Barbosa.
Embora ostentando um teor político-ideológico mais inequivocamente contestatário da ordem colonial e das crassas injustiças sociais dela advenientes, a antologia Na Noite Grávida de Punhais, organizada por Mário Pinto de Andrade, é assaz abrangente, se bem que em menor grau que a antologia No Reino de Caliban, de Manuel Ferreira, em razão dos poemas escolhidos em função de temáticas previamente estabelecidas e relativas à infância”, à mãe-terra, ao contrato para as roças de S. Tomé e Príncipe, à emigração livre para vários países da África, da Europa e das Américas, à Mãe-África, etc., etc..
Por seu lado, a antologia/colectânea Canto Armado, do mesmo Mário Pinto de Andrade e integrado primacialmente por poemas de luta e protesto, bastas vezes de teor panfletário, alarga o seu âmbito a letristas de canções de luta, grande parte das vezes escritas em crioulo nos casos de serem oriundos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau os seus autores, mas tem o grande mérito de trazer ao conhecimento do grande público alguns poetas de referência (bem como outros menos importantes não selecionados para a antologia No Reino de Caliban) na língua caboverdiana, como Kaoberdiano Dambará, Kwame Kondé, Henrique de Oliveira Barros ou o Emanuel Braga Tavares dos icónicos poemas “Kabral ka More” e “Bingansa’l Kadabra”.
É o que também ocorre com a antologia bilingue Contra-Vento (isto é, de poemas originalmente escritos em crioulo e traduzidos para o português em grande parte pelo próprio antologizador, o romancista e também poeta bilingue Luís Romano, que, para além dos poetas acima referidos, publica poemas em crioulo de poetas lusógrafos amplamente reconhecidos como, por exemplo, Arménio Vieira, Corsino Fortes e Artur Vieira, e outros, como o próprio Luís Romano, Emanuel Braga Tavares, Viriato Gonçalves, João Henrique de Oliveira Barros e David Hopffer Almada.
As antologias a que acima se fez referência são as mais importantes no que respeita à poesia caboverdiana modernista e teluricista produzida no período colonial.
A sua grande divulgação pública e a sua ampla utilização no ensino, tanto secundário como superior, muito contribuiu para que a claridosidade enquanto estirpe literária cultivada por várias gerações de escritores realistas e teluricistas se construísse como o cânone literário da caboverdianidade, erguendo-se como uma espécie de monocultura literária e identitária (para utilizar parcialmente uma expressão muito cara a José Luís Tavares), em defesa de cuja exclusividade eram rechaçadas quaisquer veleidades, antepassadas, contemporâneas ou posteriores, de desvio ou de diferenciação.