TXONBON (Chão Bom)
Aos caídos e aos demais prisioneiros políticos
do campo de concentração do Chão Bom do Tarrafal
Lembras-te, Davidinho
do dia ungindo-se erecto
todas as tardes na lonjura
dos caminhos de Pombal
na candura das horas
da sombra dos pessegueiros
quando a alma madrugava enxuta
e toda a fortuna se vislumbrava
no esplendor do grão do milho
(ouro que se olvida e recende
sob os passos insones
das manhãs bronzeadas
retinindo com a saudade sendo)
eram Julho e Júlia
enamorados resplendores
da voz rouca possante
do rosto exacto do corpo largo
das mãos árduas generosas de António?
Todos nós éramos
varões arrebatados
aos olhares petrificados das esquinas
rapazes espantalhos resguardados
do circundante silêncio
mocinhos irrequietos resgatados
à cãibra dos céus desnudos
mancebos traquinas evadidos
do suplício do cieiro e do quotidiano
como esses filhos de Assomada
por seis anos vezes dois
retirados da aragem da poeira
da bruma de Bolanha
como esse celebrizado violinista
marceneiro arribado prosternado
sobre a melancolia da madeira do violão
da ausência da mãe e da memória
da meninência e do Monte Verde
na desolação sitiada da morna
por seis anos vezes dois
condenado ao degredo da saudade
entre a circunscrição dos muros
da colónia penal de Chão Bom
como esse relojoeiro lendário hermafrodita
temido incendiário das casas da pobreza
da cobardia e da rotina do quotidiano
por seis anos vezes dois
escorraçado do convívio da decência
dos homens honrados e da intimidade
da folhagem do poilão da Boa-Entrada
como aqueles filhos de Jesuíno Dâmaso Didi
Jova Alice Elisa Maria Filipa Djudju Mimi
e tantas outras mulheres grandes
e tantos outros homens grandes
humildes anónimos insubmissos
de almas clandestinas
rebeldes de Santa Catarina
revoltados de Cabo Verde
como outros nacionalistas africanos
tais os muito seviciados os muito aliciados
cem presidiários políticos guineenses
como outros emboscados como outros
rebuscados como outros mortificados
patriotas negros mulatos e brancos
dilacerados em diferendos vários
tais os cento e seis prisioneiros
e condenados políticos angolanos
irmãos na dor
cúmplices no infortúnio
camaradas no destemor
companheiros na coragem
íntimos nas longas nas extenuantes
nas frias refregas da frigideira
confidentes na cativa e sufocante
na sedenta solidão da holandinha
amigos na absurda e humilhante
lavoura dos dias carcerários
por seis anos vezes dois
desterrados da liberdade e da imprecação
contra os severos e vigilantes pastores
da mãe-pátria rubra-e-verde distante
como outros patriotas caboverdianos
estigmatizados como contra-a-nação
ostracizados e condenados
à lenta devastação dos nervos
à cabisbaixa devoração dos ossos
à muda saturação das cordas vocais
entre as ossadas de Francisco José Ferreira
Bento António Gonçalves Mário Castelhano
Fernando Alcobia Joaquim Faustino Campos
António Guerra e dos demais vinte e seis caídos
no famigerado campo da morte lenta de Chão Bom sentenciados e silenciados entre as memórias
das almas garbosas audaciosas incomensuráveis
e as recordações dos corpos manietados altivos adolescentes jovens adultos mirrados resistentes
de outros comunistas de outros anarco-sindicalistas
de outros socialistas de outros republicanos de outros antifascistas de outros patriotas portugueses
devorados por pulgas percevejos piolhos mosquitos
ratos febres bilioses tifóides malárias desinterias tuberculoses humores inclementes homicidas
hemorróidas maus-tratos e outras irremediadas maleitas
como outros insurgentes das ilhas
estigmatizados como turras rebaixados
e desqualificados como terroristas
pronunciados como criminosos políticos
destinados ao temido deperecimento da alma
ao ponderado apodrecimento dos olhos
ao olvidado emudecimento dos corpos
com os despojos psíquicos
de Sérgio dos Reis Furtado
entre as apodrecidas reminiscências
de Pedro Benge e Chipóia Magita
entre os restos mortais de Cutumo Cassamá
entre os rostos prisioneiros inesgotáveis
inexpugnáveis de outros temidos
difusores das parábolas da liberdade
confinados à reclusa voracidade
da miragem da pátria do meio do mar
e das noites longas das ilhas
sob o aprisionado mar do Tarrafal
de Santiago de Cabo Verde
todavia alentados
por guardas prisionais
clandestinos anfitriões
da chama da liberdade
crepitando nos regaços
restolhando da nação
que germinou e saiu
pela culatra do colonialismo
cúmplices adivinhos da terra
nascitura da pátria vindoura
contrabandistas da esperança
e das notícias de guerra
autoritários no trato público
corteses nas palavras sussurradas
contra a desmedida malvadez
dos carrascos e algozes
contra a fria e calculista
desfaçatez dos torcionários
todavia imaculados e irrefragáveis
vitoriosos na sua imprescritível paixão
pela mãe-pátria africana
e pelas cores ouro-rubro-verdes
e pelos estandartes negro-escarlates
da sua incondicional emancipação política