Terra Longe / Diásporas - excerto (poema de Nzé de Sant'y Ago)
Ai noites de Assomada
das preces em Entre-Picos
desenterrando a saudade
absoluta definitiva e grave
dos que se foram para nunca mais
dos que nunca mais regressarão
Ai noites de Assomada
das rezas em Pedra-Barro
ecoando no levantamento das esteiras
na invocação dos náufragos
dos mortos de morte morrida
de perplexa dorida resignação
dos perecidos de colectiva inanição
de doença maligna de morte matada
de queda em fundos precipícios
de severino infortúnio
amortalhados
em imperturbáveis precários esquifes
sete dias depois do seu passamento
esquecidos
em periódicas famigeradas valas comuns
chorados
à beira triste das águas dos fundeadouros
meses depois do seu desaparecimento
envoltos nas efígies e nas escuras cores do luto
confundidos com os madeirames do silêncio
afundados com as viagens do destino
de Matilde e de outros veleiros das ilhas
indagando o mar alto nosso do arquipélago
e os salvíficos caminhos do sonho americano
Ai noites de Assomada
das ladainhas em Cova-Furtado
convocando as notícias perdidas
dos corpos soterrados
nos escombros dos prédios
das almas implodidas
na azáfama das obras
das ilusões demolidas
na promiscuidade das camaratas
nos destroços dos choros
em súbitos ignotos paradeiros
Ai noites de Assomada
das mantenhas alastrando-se
sobre as lentas vagarosas nuvens
em demanda
dos rostos escuros
na erma agrura
das decrépitas barracas
dos bairros degradados
das almas devolutas
no pânico dissoluto
das prisões sobrelotadas
dos silentes cercos da xenofobia
do vociferante assédio do racismo
das frequentes rusgas da polícia
Ai noites de Assomada
dos abraços vogando
sobre as nádegas
chorosas do mar
em demanda
das empenas da saudade
edificadas na crã fragilidade
dos escombros do pasmo
nos esconderijos do pavor
Ai noites de Assomada
das genuflexões apavorando-se
na alegre desfaçatez nas íntimas refregas
das ruas negras desterradas recentes
da Pedreira dos Húngaros da Cova da Moura
de Santa Filomena da Azinhaga dos Besouros
das Fontaínhas de Estrela de África da Bela Vista
da Quinta da Laje da Quinta do Mocho do Vale da Amoreira
do Alto de Santa Catarina do Bairro Primeiro de Maio
dos bairros do fim do mundo dos arrabaldes de Lisboa
das margens da cidadania das sombras arruaceiras da revolta
Ai noites de Assomada
das mãos benzendo-se
nos oratórios improvisados
nos andaimes das obras em construção da Cuf
nos guindastes e nas gruas de Alcântara
nas fábricas de Setúbal e Sines
nos estaleiros derruídos da Lisnave
nas casernas da Jota Pimenta
nas minas da Panasqueira
e em outras ladeiras
e em outras noites
alongando-se
caminho longe gente gentio
de gestos brancos
feições temperadas
e olhar impenitente
e em outras terras
e em outros dias
alongando-se
caminho longe gente gentil
de gestos brandos fraternos
de corpos calorosos generosos
de palavras fartas
férteis do santo e da senha
de vozes nuas cifradas
cicatrizadas
na sacrificial provação
na subtil experimentação
da pátria solerte solene solidária
Ai noites de Assomada
das orações clamando
pelas bem-aventuranças
das mãos laboriosas madrugadoras
sagrando as escolas as pontes as auto-estradas
os prédios os centros comerciais os estádios
recém-inaugurados
Ai noites de Assomada
das promessas a Nossa Senhora
pela vida pela prosperidade
pela saúde pela felicidade
das mãos escuras atarefadas
removendo incansáveis
os entulhos o lixo a raiva
o sono o choro das crianças
Ai noites de Assomada
dos corações lacrimejando
em abraços ternos
em dédalos da saudade
em passos sonâmbulos
da música plangendo
pelas tabernas vociferantes
da Rua do Poço dos Negros
da Rua dos Poiais de São Bento
das suas vielas das suas ruelas
das suas ruas problemáticas
dos seus becos das suas sombras hostis
saturadas de rostos estranhos
Ai noites de Assomada
da solidão das almas espúrias
dos corpos tesos tropicais enregelados
sublimando-se tensos
pelas ancas alvas escusas
de há muito longamente sonhadas
pelas coxas escuras luxuriantes
finalmente reencontradas
das moças exibindo-se seminuas
na Avenida Almirante Reis
das prostitutas do Intendente
das mulheres perdidas no Cais de Sodré
e por outros trilhos da luxúria do tráfico do sexo
do streep tease do prazer no imaginário luar
das lâmpadas fluorescentes da sensualidade
perlada da memória da Preta Fernanda
e de outras mulheres e de outras senhoras
das noites lisboetas aconchegadas
nas poltronas escarlates lascivas
dos seus bordéis
dos seus prostíbulos
das suas casas de alterne
das suas casas de passe
dos seus salões elegantes
Ai noites de Assomada
dos prantos em Fundura
suplicando pelas almas redivivas
pelas vozes exuberantes nos jardins
da Praça Estrela na Praça Camões
na Praça do Rossio na Praça Figueira
no Largo Martim Moniz no bairro da Mouraria
no bairro da Alfama nas colinas da Graça
no Canecão no Conde Barão no Lontra
no Coquenote no Cave Adão
no Monte-Cara lá na Dedês
na Casa de Cabo Verde…