A visão pan-africanista e não-alinhada de Amílcar Cabral e a atual situação da África e do mundo, à luz de alguns relevantes factos da atualidade *
1 A VISÃO PAN-AFRICANISTA DE AMÍLCAR CABRAL
1. Característico do pensamento político-ideológico de Amílcar Cabral é o seu assumido pan-africanismo, que também se expressa com a sua identificação com as causas emancipatórias dos negros e afro-descendentes de todo o mundo, devidamente inseridas na causa maior da libertação dos povos africanos da opressão colonial e da exploração neo-colonial e dos povos do chamado Terceiro Mundo de todas as formas de dominação imperialista, bem como na causa superior da emancipação de toda a Humanidade da exploração do homem pelo homem e da sujeição da pessoa humana a interesses egoístas e degradantes de indivíduos, grupos ou categorias e classes sociais.
Uma primeira expressão do fervor afro-crioulista, pan-africanista, pan-negrista, ecumênico e internacionalista de Amílcar Cabral encontra-se nalguns dos seus poemas mais icónicos e assume laivos de esfusiante entusiasmo quando, em 1949, toma conhecimento, através do seu amigo e camarada angolano Mário Pinto de Andrade, dos poemas negritunidistas de poetas francófonos reunidos e organizados por Leópold Sédar Senghor na Anthologie de la Nouvellhe Poésie Négre et Malgache, a qual contou com um marcante prefácio do filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre intitulado “Orphée Noir”.
Essa mesma opção pan-africanista concretiza-se depois em feitos práticos baseados numa elevada consciência nacionalista de matriz afro-crioulista e pan-africanista de Amílcar Cabral, ainda nos tempos das suas vivências e andanças lisboetas, i. primeiramente com a sua participação activa nas actividades da célebre CEI (Casa dos Estudantes do Império), de cuja Direcção foi Vice-Presidente e de cuja Secção para Cabo Verde, Guiné Portuguesa e São Tomé e Príncipe foi responsável (sendo curioso que foi essa mesma Secção originária na Casa dos Estudantes de Cabo Verde, co-fundadora, com a Casa dos Estudantes de Angola e a Casa de Goa, da CEI, que concedeu a bolsa de estudos superiores a Amílcar Cabral) e, ii. posteriormente, com a criação, com Agostinho Neto, Alda do Espírito Santo, Francisco José Tenreiro, Marcelino dos Santos, Mário Pinto de Andrade e Noémia de Sousa do Centro de Estudos Africanos, propugnador da chamada reafricanização dos espíritos, isto é, do regresso intelectual e espiritual por parte dos estudantes e quadros africanos assimilados pela cultura escolar europeia às fontes e às raízes da identidade africana mediante o seu aprofundado e alicerçado conhecimento.
A mesma opção pan-africanista assume novos contornos, consolidando-se, em 1957, com a fundação, em Paris, do Movimento Anti-Colonial (MAC), por Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos, Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz e Guilherme do Espírito Santo, o qual absorve e funde no seu seio duas organizações unitárias africanas anteriormente criadas, designadamente:
- a)O Movimento Democrático das Colónias Portuguesas (MDCP), criado
anteriormente em Lisboa, em 1954/1955, por vários intelectuais africanos antifascistas e anti-colonialistas, com destaque para Agostinho Neto, Lúcio Lara e Vasco Cabral, todos estreitamente ligados ao MUD (Movimento de Unidade Democrática)-Juvenil e ao PCP (Partido Comunista Português), mas sem a participação de Amílcar Cabral e Alda do Espírito Santo, entrementes regressados às respectivas terras natais, de Mário Pinto de Andrade, entretanto exilado em Paris, e de Francisco José Tenreiro, nessa altura cooptado como deputado da União Nacional colonial-fascista pelo regime salazarista.
Os na altura assumidos militantes comunistas Agostinho Neto, Lúcio Lara e Vasco Cabral terão presumivelmente contribuído para influenciar o PCP (Partido Comunista Português) no sentido de este adoptar no seu VIII Congresso de 1957 um posicionamento político mais consentâneo com os posicionamentos de Lenine sobre a questão nacional e a questão colonial e, por isso, mais irrepreensivelmente anti-colonialista e inequivocamente a favor do exercício pelos povos das colónias portuguesas do seu inalienável e imprescritível direito à autodeterminação e independência política e não mais condicionado à ocorrência prévia na Metrópole colonial portuguesa de mudanças democráticas e progressistas, como anteriormente defendido de forma reiterada e persistente pelo mesmo partido patriótico e antifascista português.
b)O Movimento de Libertação das Colónias Portuguesa, fundado por Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos, Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz e Guilherme do Espírito Santo.
Nessa sequência, o MAC fez-se representar, em 1960, em Tunis, na Conferência dos Povos Africanos por Amílcar Cabral, Lúcio Lara, Mário Pinto de Andrade e Viriato da Cruz. Ao MAC sucede, já em Tunis, a FRAIN (Frente Revolucionária Ampla para a Independência Nacional), a qual congrega pelo menos duas organizações políticas nacionais africanas, designadamente o PAIGC e o MPLA, prosseguindo essa mesma organização nacionalista unitária, afro-lusófona e pan-africanista, na sequência da sua participação na Conferência de Tunis, uma intensa campanha internacional de denúncia do colonial-fascismo português e do muro do silêncio que este logrou erguer à volta das suas colónias. Esse muro de silêncio consistia na veiculação pelas autoridades portuguesas e pelos seus representantes por todo o lado, incluindo entre alguns líderes africanos, da imagem colonial de uma pax lusitana na África dita Portuguesa marcada pela harmonia e pela fraternidade raciais, absorvedora e sustentada em tempos mais recentes pelas teorias luso-tropicalistas de Gilberto Freyre.
No seu temerário intento de denúncia do colonialismo português, Amílcar Cabral assumiu o pseudónimo de Abel Djassi para subscrever o texto conhecido por A Verdade sobre o Colonialismo Português (ou também Factos sobre o Colonialismo Português, na tradução mais literal do título do texto originalmente publicado em inglês), pseudónimo esse de teor mais genuinamente africano e que veio substituir o pseudónimo Abel Silva, com o qual assinara a correspondência trocada e mantida com os colegas e camaradas do MAC, repartidos entre Lisboa, Paris e Frankfurt, nos seus périplos pelas colónias portuguesas da Guiné dita Portuguesa e de Angola e por alguns países africanos, com destaque para o Gana, de Kwame Nkrumah. Essa fase seguira-se à conclusão com distinção por Amílcar Cabral dos seus estudos superiores de Agronomia em Lisboa e do respectivo estágio, no Alentejo, e do seu regresso, em 1952, ao seu país natal, onde a solicitação das autoridades coloniais portuguesas realizou o Recenseamento Agrícola da Guiné Portuguesa, o qual lhe propiciou um extenso e sólido conhecimento da Guiné profunda e das realidades económicas, sociais, culturais e políticas do país onde tinha vindo ao mundo, havia já quase trinta anos, a 12 de Setembro de 1924, na vila de Bafatá. Amílcar Cabral regressaria à terra natal somente em 1952 depois de a ter deixado por tempo duradouro, levado para Cabo Verde, em 1932, pelo pai Juvenal Cabral, seguindo o mesmo caminho de retorno caboverdiano a mãe Iva, com quem passou a viver durante toda a sua restante estadia em Cabo Verde nas cidades da Praia e do Mindelo, salvo durante o período de algumas férias grandes escolares que passava com o pai em Achada Falcão, no concelho de Santa Catarina, na ilha de Santiago, até que, perdidas as terras herdadas da madrinha Dona Simoa dos Reis Borges, o mesmo Juvenal Cabral mudou a sua residência para a cidade da Praia.
É também nessa sua segunda passagem pela Guiné Portuguesa e correlativa estadia na cidade de Bissau que Amílcar Cabral intenta criar o Clube Desportivo e Recreativo, todavia não legalizado/não autorizado pelas autoridades coloniais portuguesas, por alegadamente integrar no seu seio somente pessoas naturais dessa colónia/província ultramarina portuguesa e ademais sujeitas ao minorizante e discriminatório estatuto do indigenato, e, ademais, pretendeu fundar e activar na mais profunda clandestinidade o MING (Movimento para a Independência Nacional da Guiné), em 1955, sendo por isso expulso do país natal nesse mesmo ano, para onde foi todavia autorizado a regressar uma vez por ano para visitar a mãe e os irmãos maternos. Segundo o seu próprio testemunho, constante do texto “A Evolução e as Perspectivas da nossa Luta”, foi durante a sua primeira visita aos familiares próximos quedados em Bissau que Amílcar Cabral viria a fundar, no ano de 1956, em Bissau, com um pequeno grupo de amigos e camaradas, o Partido Africano para a Independência (PAI)-União dos Povos da Guiné e de Cabo Verde. Ademais, Amílcar Cabral participou nesse mesmo ano de 1956 na fundação do PLUAA (Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola), cujo documento fundador, o Manifesto para um amplo Movimento Popular de Libertação de Angola, viria a dar origem ao partido-movimento de libertação nacional homónimo que o adopta como manifesto fundacional e viria a agregar no seu seio os nacionalistas angolanos radicados no estrangeiro, com destaque para Conacri, capital da República da Guiné, de Sékou Touré, e outros nacionalistas angolanos activistas de vários movimentos políticos independentistas no interior do país.
1..2. A África encontrava-se nesse período numa época decisiva da sua longa e dolorosa História, qual seja a da sua libertação do jugo colonial e da dominação imperialista directa convencionalmente denominada de colonialismo clássico. Adaptando-se à mudança dos ventos da História ocorrida na sequência e como resultado da Segunda Guerra Mundial e visível nos resultados do Congresso Pan-Africanista de Manchester, realizado em 1945 e liderado por Kwame Nkrumah, e da Conferência de Bandung de 1955, somente tornada possível graças à independência política de vários países afro-asiáticos, tais, por exemplo, a Índia, a Indonésia, a Birmânia, o Egipto, o Sudão, as potências coloniais britânica e francesa optaram pela concessão das independências às suas colónias africanas, culminando o processo no que se convencionou chamar o Ano da África, isto é, na declaração da independência nominal de várias antigas colónias francesas e britânicas, o processo independentista durante todo o ano de 1960, concluindo-se grosso modo o mesmo processo independentista nos anos setenta, oitenta e noventa do século XX.
A África que, nos anos sessenta do século XX, resultou das independências políticas das colónias britânicas e francesas bem como de uma única colónia espanhola, a Guiné-Equatorial, era uma África traumatizada por séculos de tráfico negreiro e comércio triangular, por mais de um século de ocupação e administração coloniais directas e efectivas no quadro do chamado colonialismo clássico e que proporcionaram a emergência e a sedimentação do inferno do subdesenvolvimento caracterizados por economias duais e dependentes do centro imperialista e marcado pelo medo, pela ignorância, pelo obscurantismo, pela miséria, pela pobreza extrema e por quotidianas humilhações.
Essa África era ademais uma África eufórica em razão das independências políticas recentemente adquiridas e conquistadas, mas manchada pelo traiçoeiro assassinato de Patrice Lumumba e dividida entre, por um lado, países somente nominalmente independentes e que continuavam gravitando sob a tutela política e as dependências económica, cultural, militar e político-diplomática das antigas potências coloniais e se congregaram no chamado Grupo de Monróvia e, por outro lado, países que se estribavam de forma resoluta, séria e firme, em alcançar a sua independência económica e consolidar a sua independência política e a sua emancipação cultural, libertando-se total e definitivamente da tutela colonial. São esses dois grupos de países que, depois de muitas controvérsias, dissensões e rivalidades, lograram reunir-se sob uma plataforma política mínima e compromissória a 25 de Maio de 1963, em Adis Abeba, capital da mítica Etiópia, para criar a Organização da Unidade Africana (OUA) e, encorajada pela Resolução 1514 (XV), de 14 de Dezembro de 1960, da Assembleia-Geral da ONU, sobre a outorga da independência aos povos coloniais, adoptar a sua Carta constitutiva, cuja agenda fundamental e prioritária era a libertação total da África da dominação colonial (em especial de Portugal e de Espanha, mas também da França, que nessa ocasião continuava a manter algumas colónias, no Corno de África e no Oceano Índico, mantendo até à actualidade colónias no Oceano Índico, nas Caraíbas e na Oceânia com o estatuto de DOM/TOM) e da dominação racista e segregacionista das minorias brancas na África Austral, por Amílcar Cabral denominada racismo colonialista.
Estes últimos objectivos da OUA somente seriam totalmente conseguidos nos anos noventa do século XX, se nos abstrairmos dos casos do Sahara Ocidental, anexada pelo Marrocos e, temporariamente, pela Mauritânia depois da retirada espanhola, e declarada independente e soberana pela Frente Polisário que logrou fazê-la admitir na OUA e actualmente aguarda a realização de um referendo de auto-determinação sob o patrocínio da ONU, da ilha da Reunião, desde há muito tornada um DOT (Département d’Outre-Mer-Departamento Ultramarino, da França), bem como da ilha do Mayote, anexada pela França como um seu Departamento, depois de a maioria da sua população se ter pronunciado em referendo contra a independência política, contrariamente ao sentido de voto independentista e soberanista das restantes ilhas comorianas.
1.3. É no contexto da luta de libertação binacional dos povos da Guiné dita Portuguesa e de Cabo Verde conduzida pelo PAIGC que Amílcar Cabral formula e aprofunda duas vertentes fundamentais da sua doutrina político-ideológica e do seu pensamento teórico, quais sejam a unidade africana e o não alinhamento.
No que diz respeito à unidade africana, Amílcar Cabral diz-se a favor da unidade africana no todo do continente africano e/ou das suas diferentes regiões, defendendo que essa unidade deveria ser feita por etapas e gradualmente e com respeito estrito das identidades políticas dos diferentes Estados africanos emergentes das lutas anti-coloniais e no quadro das fronteiras legadas pelo colonialismo clássico que, aliás, foram assumidas enquanto principios da intangibilidade das fronteiras coloniais e da integridade territorial contra agressões externas pela OUA na sua Carta Constitutiva.
O princípio da unidade entre a Guiné e Cabo Verde é considerada por Amílcar Cabral como um valioso contributo do PAIGC para a prática realização da unidade africana. Relembre-se que, aquando da formulação desse princípio essencial e impreterível da identidade política do PAIGC, o princípio da unidade africana fazia furor entre os nacionalistas africanos das diferentes colónias, tendo-se constituído várias organizações políticas supra-nacionais, como por exemplo, a RDA (Rassemblement Démocratique Africain) e o PDA (Parti Démocratique Africain), actuantes nas colónias da chamada África Ocidental Francesa e África Equatorial Francesa) e várias uniões económicas aduaneiras entre as antigas colónias francesas e precursoras da futura Françafrique do famigerado e neo-colonial Franco CFA, e algumas uniões políticas de natureza confederativa, federativa ou assimiláveis a uma união real, como, por exemplo, a Federação do Mali entre o Senegal e o antigo Sudão francês, a União entre o Gana e a República da Guiné, a Senegâmbia entre o Senegal e a Gâmbia, todas de duração efémera, e a Tanzânia, entre a Tanganica e o Zanzibar, a qual perdura até aos dias de hoje.
Casos particulares constituíram os países que, tendo sido colónias de potências europeias perdedoras da Primeira Guerra Mundial, como a Alemanha, ou da Segunda Guerra Mundial, como a Itália, viram algumas das suas antigas colónias africanas serem divididas e cedidas pela Sociedade das Nações e, depois, pela ONU a países vencedores das duas Guerras Mundiais acima referidas, como a Grã-Bretanha e a França, em regime de tutela. São os casos dos Camarões (re)unificando depois das respectivas independências e, por vezes, precedidas de referendos, a antiga colónia francesa dos Camarões e a antiga colónia britânica dos Camarões, e da Somália que (re)unificou a antiga Somália italiana e a antiga Somália britânica, tendo-se actualmente, e em tempos sequentes à queda do ditador nacionalista revolucionário Siad Barre, retrocedido às antigas fronteiras coloniais.
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A VISÃO NÃO-ALINHADA DE AMÍLCAR CABRAL
2.1. É no quadro da Guerra Fria e da existência de dois grandes blocos político-militares no mundo, um, o do campo socialista liderado pela União Soviética, tendo a Coreia do Norte, o Vietnam e Cuba como aliados próximos, senão protegidos, mas deixando de fora da sua órbita a República Popular da China, a Albânia e a Jugoslávia, e outro, o do campo ocidental ou dos países capitalistas desenvolvidos liderado pelos Estados Unidos da América, mas deixando de fora países neutros como a Suécia, a Finlândia e a Áustria, que Cabral formulou a sua teoria do não alinhamento activo e que, extravasado para a política externa do PAIGC, assenta no princípio da independência de pensamento e acção e no axioma pensar pelas nossas próprias cabeças e andar com os nossos próprios pés. No quadro e no contexto geopolíticos mundiais prevalecentes na altura, Amílcar Cabral considerava, à semelhança, aliás, da grande maioria dos teóricos marxistas e revolucionários, que o campo socialista, o movimento operário internacional e o movimento de libertação nacional da África, da Ásia e da América Latina constituíam aliados naturais na luta contra o imperialismo e a dominação imperialista. Tal axioma político ficou comprovado no facto de o grosso do apoio político-militar, logístico e diplomático à luta político-armada do PAIGC ter tido como proveniência a União Soviética e e outros países socialistas, incluindo da China Popular, de Mao Tsé Tung e Chu en Lai, e da Jugoslávia, de Josip Broz Tito, mas também os países escandinavos, em especial a Suécia, de Olof Palme, neste último caso sobretudo no que respeitava à ajuda humanitária e ao apoio logístico com bens de primeira necessidade destinados às populações das chamadas zonas libertadas da Guiné-Bissau. Do lado oposto, o colonialismo português contou sempre com o apoio militar, político, logístico e diplomático das potências da NATO, de que Portugal era também membro, na sua alegada luta para a contenção do avanço do comunismo no mundo, em especial daquele representado pela União Soviética e pelos seus alegados satélites e instrumentos, não se coibindo as potências ocidentais, no intuito do alegado cumprimento desse desiderato geo-estratégico primariamente anti-comunista, de apoiar os mais retrógrados, desumanos, cruéis e carniceiros regimes políticos do mundo da altura, como a África do Sul do Apartheid, a Indonésia de Suharto ou o Chile do ditador fascista Augusto Pinochet, e de apoiar e financiar golpes de Estado militares contra regimes progressistas, alguns democraticamente eleitos, como o Irão de Mossadegh ou o Chile de Salvador Allende.
2.1.1. Para Amílcar Cabral, a existência de um vasto país socialista multinacional e que era a URSS, constituída em 1922 entre a República Socialista Federativa Soviética da Rússia, a República Socialista Soviética da Bielorússia, a República Socialista Soviética da Ucrânia e a República Socialista Federativa Soviética da Transcaucásia, depois da vitória da Grande Revolução Socialista de Outubro, de 1917, na Rússia, e da sangrenta e mortífera Guerra Civil e contra a intervenção estrangeira de potências ocidentais que se lhe seguiu, bem como de um campo socialista emergente depois da Segunda Guerra Mundial, sedimentado e alargado à Europa Central, do Leste e do Sudoeste, ao país mais populoso do mundo situado na Ásia e que era a China Popular, a uma ilha rebelde da América Latina, localizada no Mar das Caraíbas e integrante das Grandes Antilhas a poucos quilómetros da maior potência económica e imperialista mundial, e que era Cuba, eram uma garantia segura para os países que se decidissem a enveredar pela chamada via socialista de desenvolvimento, perspectiva que considerava impossível de realizar sem a existência e o apoio do campo socialista acima referido.
Neste contexto, Amílcar Cabral alargou o seu conceito de não alinhamento às cisões e dissensões político-ideológicas verificadas no vasto campo socialista como resultado do conflito sino-soviético, recusando-se, apesar de muito assediado, a fazer alinhar o PAIGC com qualquer das partes em acérrimo conflito político-ideológico e a assumir as respectivas perspectivas teóricas, ideológicas e doutrinárias e protagonizadas designadamente por Mao Tsé Tung e pelos seus apoiantes da extrema-esquerda revolucionária mundial, por um lado, e, do lado oposto, por Nikita Krutshov e pelos partidos comunistas tradicionais, considerados pelos respectivos adversários radicais de esquerda como revisionistas, reformistas e capitulacionistas por propugnarem a coexistência pacífica, o desarmamento nuclear e o degelo e a intensificação das relações comerciais e económicas entre os dois principais sistemas, blocos e modelos económico-sociais e societais mundiais, chegando até a admitir a transição por via pacífica e eleitoral para o socialismo nos países capitalistas industralizados e altamente desenvolvidos. Essa mesma perspectiva política e ideológica não-alinhada de Amílcar Cabral alargava-se ademais ao chamado socialismo auto-gestionário jugoslavo teorizado pelo Generalíssimo Josep Broz Tito Tito.
Em razão da sua morte prematura, a 20 de Janeiro de 1973, Amílcar Cabral não pôde assistir à reviravolta na geopolítica mundial ocorrida com a aproximação entre a República Popular da China e os Estados Unidos da América e a eleição pelo Partido Comunista da China e pela República Popular da China da União Soviética e dos países, partidos políticos e movimentos de libertação nacional seus aliados como os seus principais adversários políticos e inimigos estratégicos, assim superando a luta equidistante que até então diziam manter tanto contra o imperialismo americano e os seus aliados ocidentais como também contra o denominado social-imperialismo soviético e os seus países e regimes políticos satélites, qualificando as duas superpotências mundiais como sendo alegadamente líderes hegemónicos respectivamente do primeiro mundo constituído pelos países capitalistas desenvolvidos e do segundo mundo integrado pelos países socialistas industrializados. É, aliás, essa reviravolta geo-política que levaria o Partido do Trabalho da Albânia no poder no país balcânico e o seu dirigente máximo e ideólogo-mor Enver Hoxha e os respectivos apaniguados no movimento comunista mundial a considerarem Mao Tsé Tung e Chou-en-Lai, o seu Partido Comunista Chinês e a sua República Popular da China como os novos revisionistas modernos, doravante eleitos como alvos a abater e a serem por isso veemente e impiedosamente vituperados, combatidos e politicamente condenados, afastando-se, distanciando-se e demarcando-se por conseguinte os defensores da chamada linha albanesa ou enver-hoxhista da nova linha política e estratégica dos dirigentes comunistas chineses.
A perspectiva não alinhada de Amílcar Cabral era assim marcada por um forte pragmatismo que punha os interesses da luta pelas independências da Guiné e de Cabo Verde bem como os interesses fututos dos respectivos povos à paz, ao progresso e à felicidade acima de quaisquer outros interesses, mormente os de proveniência e/ou de feição estrangeiras. Assim pôde o movimento de libertação binacional liderado por Amílcar Cabral tecer um amplo leque de alianças que abrangia a quase totalidade dos países africanos, independentemente da via capitalista neo-colonial ou da via socialista ou socializante escolhida pelas suas elites políticas dirigentes; os países socialistas de ambos os campos do conflito político-ideológico sino-soviético; alguns países ocidentais, como os países escandinavos, e numerosos grupos de apoio, intelectuais e personalidades nos países aliados de Portugal na NATO e da América Latina, incluindo senadores americanos, jornalistas, fotógrafos, escritores, cineastas e outros importantes fazedores e influenciadores das opiniões públicas ocidentais e peri-ocidentais.
2.2.2. A perspectiva não alinhada do pensamento político de Amílcar Cabral viria a marcar de forma indelével e duradoura a política externa do Estado caboverdiano no período pós-colonial, caracterizada pela sua abertura ao mundo e pelo seu notável pragmatismo, certamente também muito em razão e por causa da persistência das vulnerabilidades estruturais da sociedade caboverdiana e da sua colossal dependência em relação à Ajuda Pública ao Desenvolvimento concediada pelos seus parceiros bilaterais e multilaterais, situados nos dois lados adversários da Cortina de Ferro. Sem nunca ceder a solicitações, tanto do campo ocidental, como do campo soviético, de instalação de bases militares estrangeiras no nosso país, a política de não-alinhamento activo delineada por Amílcar Cabral para a praxis consequente do movimento de libertação binacional PAIGC e praticada de forma coerente pelo Estado caboverdiano pós-colonial propiciou a Cabo Verde o estabelecimento de um leque amplo e diversificado de relações com países das mais variadas estirpes político-ideológicas, priorizando-se na sua abordagem pragmática os países de acolhimento de comunidades emigradas caboverdianas e os países parceiros do desenvolvimento e fornecedores de ajudas de diversos tipos, com realce para a ajuda alimentar. As indispensáveis relações económicas mantidas com regimes sumamente execrados pelos países africanos e, sobretudo, pelos povos africanos e pelas comunidades diaspóricas afro-descendentes, pelos países socialistas e pelos demais países progressistas aliados dos respectivos movimentos anti-racistas e anti-segregacionistas de libertação nacional e de emamcipação cívica e social e pela generalidade da opinião pública internacional, com destaque para o abjecto e execrável regime do Apartheid da África do Sul, detentor, desde o período colonial, de direitos de escala, de trânsito e de paragem no Aeroporto Internacional da ilha do Sal (no período pós-colonial rebaptizado com o nome de Amílcar Cabral) contra o pagamento das respectivas taxas às entidades públicas caboverdianas, muito necessárias para o equilíbrio do magro e periclitante orçamento do arquipélago saheliano, foram em tempo devido, adequado e oportuno utilizadas para vincar a utilidade político-diplomática de Cabo Verde e transformar o nosso país num dos palcos privilegiados das negociações entre Angola, Cuba, a África do Sul e a União Soviética que levaram à retirada de todas as tropas estrangeiras do solo angolano, conduziram à retirada da África do Sul da Namíbia, à independência política deste país da África Austral e, depois, à libertação de Nelson Mandela e ao fim definitivo do odioso regime do apartheid na África do Sul.
É esse não-alinhamento activo da política externa caboverdiana que levou a que o Governo de Cabo Verde tivesse apoiado sempre com firmeza a luta do povo saharui pela sua independência política e pela sua soberania nacional e internacional e a admissão na OUA do Estado proclamado pela Frente Polisário com o nome de República Árabe Saharui Democrática (RASD), bem como a luta do povo palestiniano para poder ter e constituir o seu próprio Estado independente e soberano ao lado do Estado de Israel, em fronteiras seguras e internacionalmente reconhecidas, segundo as pertinentes resoluções dos órgãos competentes da ONU, em especial do seu Conselho de Segurança e da sua Assembleia-Geral.
Anote-se neste concreto e preciso contexto que, na sua compreensão da questão israelo-palestiniana, Amílcar Cabral era portador de uma visão em tudo idêntica àquela comungada e partilhada pela grande maioria das forças progressistas mundiais, bem como pela OUA (Organização da Unidade Africana), adoptada por esta em especial depois da Guerra Israelo-Árabe de 1967 e da ocupação de parte do território (o Sinai) de um país africano por parte de Israel, qual seja que: a) O povo judeu foi vítima ao longo da História, em especial depois destruição do Templo e de ter sido obrigado a abandonar a Terra Santa pelas autoridades imperiais romanas, de intoleráveis discriminações, perseguições e progroms em vários países, sobretudo europeus, em razão da sua raça e da sua religião, sendo o holocausto perpetrado pelo nazi-fascismo hitleriano como “solução final da questão judaica” o culminar criminoso da sua marginalização (guettização) e das múltiplas tentativas do seu genocídio, enquanto povo. b) O sionismo foi concebido como uma resposta a essas perseguições, marginalização (guettização) e tentativas de genocídio, vindo todavia a assumir feições de uma ideologia colonial e racista ao serviço do imperialismo ocidental porque visando primacialmente espoliar as populações árabes da Palestina das suas terras e conter as forças progressistas e revolucionárias no Médio Oriente. c) Nada pode justificar essa mesma ideologia, pois que havia já quase dois milénios que o território da actual Palestina vinha sendo ocupado por outros povos, que não o judeu, tendo-se os árabes muçulmanos tornado a população preponderande da Palestina a partir da sua conquista pelos seguidores do Islão e do Profeta Maomé.
Neste contexto, considerava Amílcar Cabral que era total e absolutamente legítima “a reconquista do seu país pelo povo palestinano” (expressão utilizada pelo próprio Amílcar Cabral), visando a construção de um novo país onde, enquanto cidadãos, árabes e judeus poderiam gozar dos mesmos direitos e estariam sujeitos aos mesmos deveres, independentemente da sua raça, da sua religião e das suas convicções políticas e filosóficas.
Como é sabido, desde a morte de Amílcar Cabral, ocorreram vários factos e diversas circunstâncias que mudaram em grande medida a percepção da forma de resolução do conflito israelo-árabe sufragada pelo grande líder africano da luta de liberrtação binacional dos povos de Cabo Verde e da Guiné-Bossau, com destaque para os seguintes:
- a)A derrota do Egipto e dos demais países árabes seus aliados na Guerra de 1973 (a Guerra do Yom Kipur) travada contra Israel, a qual veio somar-se à anterior derrota dos mesmos países na Guerra de 1967 (a Guerra dos Seis Dias) e que levou à ocupação pelo Estado de Israel de Jerusalém Oriental, da Cisjordânia, da Faixa de Gaza, todos localizados na Palestina, dos Montes Golão, situados na Síria, e do Sinai, localizado no Egipto.
- b)A celebração de um acordo de paz entre o Egipto, de Anwar El Sadate, e o Governo de Israel, chefiado por Menahem Bhegin, e que permitiu a devolução da Península do Sinai ao Egipto e foi a causa imediata do assassinato de Sadate pelos Irmãos Muçulmanos.
- c)A expulsão da OLP (Organização de Libertação da Palestina) de Beirute e do Líbano, depois de anos de guerra civil libanesa com participação de várias facções político-armadas palestinianas e intervenção militar síria.
- d)A implosão da União Soviética, do campo socialista europeu e a consequente dissolução do Pacto de Varsóvia, disso tudo emergindo a correlativa mudança da visão da OLP para a resolução da questão israelo-palestiniana com o reconhecimento do direito à existência do Estado de Israel e a proposta de constituição de um Estado palestiniano nas fronteiras legadas pela guerra sraelo-árabe de 1967 e com capital em Jerusalém Oriental, mesmo se num território muitissimo menor em extensão que aquele previsto no Plano de Partilha da Palestina do Mandato Brtitânico entre os futuros Estados judeu e árabe na Palestina, sendo que, mesmo se na altura dispondo de um contigente populacional sensivelmente menor que a população árabe da Palestina do Mandato Britânico, coube ao futuro Estado de Israel uma área territorial ligeiramente maior que aquele destinado ao futuro Estado árabe da Palestina. Como é sabido, o Plano de Partilha da Palestina (Resolução 181, de 29 de novembro de 1947 da Assembleia Geral das Nações Unidas) mereceu o voto favorável dos países ocidentais e dos seus aliados, bem como, também e curiosamente, da União Soviética e de alguns dos respectivos aliados socialistas, mas mereceu a firme rejeição dos países árabes. Imediatamente depois da aprovação do Plano de Partilha da Palestina da autoria da ONU, alguns países árabes, designadamente o Egipto, a Transjordânia, a Síria, o Líbano e o Iraque encetaram a invasão do recém-proclamado Estado de Israel que logrou resistir, preservar-se e expandir as suas fronteiras para além do previsto no acima referido Plano de Partilha da ONU, tendo conquistado mais de metade do território destinado ao Estado árabe na Palestina. Em resultado dessa Primeira Guerra israelo-árabe alguns territórios destinados ao Estado árabe na Palestina foram ocupados pelo Egiptpo, designadamente a Faixa de Gaza, e pela Transjordânia, designadamente a Cisjordânia, passando o Reino hachemita a designar-se doravante por Jordânia.
Atente-se que desde o surgimento no século XIX, na Europa, da ideologia sionista
e que propugnava o regresso dos judeus de todo o mundo e dos seus descendentes eventualmente assimilados para o território histórico de Israel, para a edificação de um Lar Nacional Judeu nesse mesmo Israel histórico/nessa mesma Palestina histórica, e da Declaração Balfour, de 1917, mediante a qual as autoridades coloniais britânicas reconheciam esse mesmo direito a um Lar Nacional Judeu e, baseado nessa conexão, o direito de emigração dos judeus de todo o mundo para a Palestina do Mandato Brritânico, o Império Otomano e o Império Britânico incentivaram a aquisição de terras árabes por imigrantes judeus, favorecedndo, assim, o aumento exponencial da população judaica da Palestina, todavia permanecendo essa mesma população judaica em menor número que a população árabe, ao tempo da proclamação do Estado de Israel, em Maio de 1948. Por outro lado, os árabes da Palestina opuseram-se, por vezes de forma violenta, à crescente emigração judaica para a Palestina, dando-se o caso de o Mufti de Jerusalém se ter aliado ao nazismo hitleriano em razão do congénito e virulento anti-semitismo do Fuerer alemão e da sua cobiçosa oposição ao Império Britânico, ao mesmo tempo que os judeus recorriam à guerra de guerrilha urbana e a atentados terroristas para impor a sua vontade aos árabes da Palestina e às autoridades coloniais britânicas.
- e)A celebração dos Acordos de Oslo entre o Governo de Israel, dirigido por Yitzhak Rabin, e a OLP, liderada por Yasser Arafat, e mediada pelo Presidente Bill Clinton, dos Estados Unidos da América, levando à criação da Autoridade Palestinana que passou a administrar de forma semi-autónoma e sob forte tutela israelita os territórios da Cisjordânia, parcialmente ocupada por colonatos israelitas, e da Faixa de Gaza. Para efeitos de aplicação dos Acordos de Oslo, o território palestiniano foi dividido em três Áreas com diferentes estatutos político-militares, designadamente: Área A, com controle total pela Autoridade palestiniana; Área B, com controle civil pela Autoridade palestina e controle militar pelo Exército de Israel; Área C com controle total pelo Governo de Israel. A celebração dos Acordos de Oslo valeu o assassinato de Yitzhak Rabin por um extremista judeu.
- f)A morte em circunstâncias assaz obscuras do líder palestiniano Yasser Arafat, havendo fortes e fundadas suspeitas do seu envenenamento por mão israelita ou cúmplice de Israel.
- g)O estado comatoso da questão israelo-paletiniana, não logrando as partes em conflito obter qualquer avanço assinalável em relação aos Acordos de Oslo, sobretudo no que respeita ao estabelecimento de fronteiras seguras e internacionalmente reconhecidas entre os Estados independentes e soberanos da Palestina e de Israel; ao reconhecimento ddo direito de regresso dos palestinianos e dos seus descendentes aos lares dos quais foram expulsos e localizados no território do actual Estado de Israewl durante a Naqba (a Catástrofe , para os palestinianos)/a Guerra da Independência, para os israelistas, em resultado da primeira Guerra Israelo-Árabe, de 1948; ao estatuto dos colonatos judaicos na Cisjiordânia.
- h)A retirada unilateral da Faixa de Gaza por parte das autoridades e forças militares israelitas, a vitória do Hamas sobre a Fatah nesse território, vencendo por sua vez a Fatah na Cisjordânia, nas eleições legislativas realizadas em todos os territóris palestinianos (aliás, as únicas até hoje realizadas), a sequente guerra civil entre as duas facções palestiniannas e a expulsão da Fatah da Faixa de Gaza por parte do Hamas, que passou a actuar politicamente sozinha nesse território.
- i) Os atentados terroristas perpetrados pelo Hamas no interior do Estado de Israel, no território contíguo à sua fronteira norte com a Faixa de Gaza, resultando dos mesmos atentados terroristas mais de mil mortos civis israelitas e a tomada de centenas de reféns israelitas pelo Hamas. Em retaliação por esses atentados terroristas do Hamas, considerados inaceitáveis e condenados pela generallidade da opinião pública internacional e pelos órgãos competentes da ONU, as Forças Armadas israelistas consumaram uma operação militar de grande envergadura de reocupação da Faixa de Gaza, visando primacialmente a liquidação do Hamas. Dessa gigantesca operação militar resultaram, até agora, mais de quarenta mil mortos palestinianos, incluindo crianças e bebés, a par da decapitação da direcção político-militar do Hamas e do Hezbollah libanês, o qual se solidarizara in actu com o Hamas, a destruição e a total devastação de importantes infra-estruturas e de cidades e localidades palestinianas localizadas na Faixa de Gaza e outras indescritíveis perdas humanas e materiais palestinianas, as quais levaram à geral condenação das acções israelistas pela opinião pública internacional e pela Assembleia Geral da ONU (mas não pelo seu Conselho de Segurança, em razão do veto pró-israelista dos países ocidentais) e a iniciação pelo Procurador-Geral Tribunal Penal Internacional de um processo por comissão de crimes de guerra e crimes contra a humanidade contra o Primeiro-Ministro e outros dirigentes governamentais israelitas e contra os dirigentes político-militares do Hamas.
2.2.3. É igualmente o pragmatismo da política do não-alinhamento do Estado caboverdiano que o levou a celebrar acordos de cooperação militar com alguns países com alguns países da NATO, designadamente a Espanha, Portugal e os Estados Unidos da América. Destaquem-se neste contexto a realização, em 2006, da operação Stead Fast (Salto do Jaguar) da NATO e a celebração de acordos de ajuda militar cooperativa com Portugal e a Espanha, por forma a potenciar melhores e mais eficazes apoios à vigilância e à protecção das águas marítimas sob jurisdição de Cabo Verde, ao mesmo tempo que se mantêm estreitas relações de cooperação miltar com potências tidas por rivais e/ou adversárias das potências ocidentais em vários palcos do mundo, como a República Popular da China.
Mais recentemente, mas de forma assaz controversa, o Governo de Cabo Verde celebrou o Acordo SOFA com os Estados Unidos da América, tendo o mesmo sido todavia sujeito a severas críticas por parte da oposição parlamentar bem como de observadores, comentadores e analistas políticos caboverdianos por alegadamente pretender criar e ter efectivamente criado um estatuto de extra-territorialidade e de correlativa imunidade às leis penais caboverdianas a militares americanos e a seus serventuários civis quando estacionados em Cabo Verde.
Sujeito à fiscalização da constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional de Cabo Verde, a mesma alta instância jurisdicional não vislumbrou nenhuma inconstitucionalidade no mesmo Acordo, mas também fez questão de asseverar que nenhuma das suas cláusulas pode ser interpretada como podendo autorizar a instalação de bases militares dos Estados Unidos da América em território caboverdiano.
2.2.4. Quiçá crentes no fim da História e no chamado Último Homem Demo-Liberal, antecipado e profetizado por Francis Fukuyama na atmosfera por demais optimista do fim da Guerra Fria, da aparente universalização do modelo político democrático-liberal para a construção de novas formas de legitimação resultantes das mudanças políticas democráticas dos fins dos anos oitenta e inícios dos anos noventa do século XX, da universalização do modelo da economia de mercado (mesmo nos países que mantiveram o seu regime de partido único ou de partido hegemónico socialista/comunista, bem como da emergência e a temporária consolidação, logo depois do fim da Guerra Fria, de uma única hiperpotência mundial, a par da desagregação de várias organizações e/ou do definhamento de diversas reivindicações dos países do Terceiro Mundo, como o Movimento dos Não-Alinhados, o Grupo dos 77 e a reivindicação de uma Nova Ordem Económica Mundial e de uma Nova Ordem Mundial da Informação, tempestivamente substituídas por novas e inovadoras agendas mundiais da ONU, como as dos Desafios do Desenvolvimento do Milénio e os subsequentes Desafios do Desenvolvimento Sustentável, os autores da Constituição Política caboverdiana de 1992 decidiram, ao contrário do nado-morto projecto de nova Constituição Política da República de Cabo Verde, apresentada pelo PAICV à opinião pública caboverdiana, não incluir no projecto de novo texto constitucional do MpD e do qual viria a resultar a nova Constituição Política da República de Cabo Verde, de 1992, acima referida, e actualmente vigente de forma amplamente consensualizada, depois de algumas Revisões Constitucionais, designadamente as de 1999 e de 2010, a pugna por uma Nova Ordem Económica Internacional (na nossa opinião acertadamente por esta reivindicação terceiro-mundista ter perdido grande parte da sua relevância política) e o não-alinhamento como marca e directiva relevantes da política externa do Estado Caboverdiano.
Tendo absorvido alguns princípios constantes da Constituição Política de 1980/1981 para regular as relações de Cabo Verde com outros Estados e a sua inserção na Comunidade Internacional, como o respeito pelo Direito Internacional, pela independência política, pela igualdade soberana entre todos os Estados e pela não ingerência nos assuntos internos de cada Estado, a resolução pacífica dos diferendos, a cooperação internacional, a reciprocidade de vantagens mútuas e a coexistência pacífica entre os Estados, bem como o apoio à lutas dos povos contra o colonialismo e todas as formas de agressão estrangeira e de opressão política e militar, bem como a unidade africana, no plano continental africano e subregional oeste-africano (isto é, a integração africana regional e continental), os mesmos autores preferiram (e muito bem, na minha opinião), agregar a esses mesmos princípios herdados da Constituição Política revogada in totto como processo preliminar à aprovação da Constituição Política de 1992 e comprovados como muito pertinentes e úteis na condução da política externa do Estado caboverdiano, a proibição expresssa da instalação de bases militares estrangeiras em solo caboverdiano, a pugna por uma ordem internacional mais justa e pacífica, a luta internacional contra o terrorismo e a criminalidade organizada transnacional e dando preferência nas suas relações externas aos países com os quais Cabo Verde afirma comungar os mesmos valores democráticos e os mesmos ideais de promoção dos direitos humanos e das liberdades democráticas fundamentais, bem como, na senda do pragmatismo da tradicional política externa caboverdiana, mas agora consagrado expressamente no texto constitucional, aos países de acolhimento das comunidades caboverdianas emigradas e aos países de língua oficial portuguesa.
2.2.4. Acontece que, depois da surpreendente implosão da União Soviética e do correlativo desaparecimento do chamado império soviético, ocorreram vários eventos de relevante significado geo-político e geo-estratégico, quais sejam: os atentados de 11 de Setembro de 2001 promovidos pelo grupo terrorista islâmico Al Qaeda, de Bin Laden, contra as Torres Gémeas de Nova York e a sede do Pentágono na Pensilvania, e, nessa sequência, a declaração do Presidente norte-americano, George W. Bush, de guerra ao terrorismo islâmico internacional e que se concretizou na invasão americana do Afeganistão e no derrube do governo extremista talibã, apoiante confesso da Al Qaeda; a pretensão norte-americana da imposição de um Grande Médio Oriente Democrático, de que foram todavia excluídas as ditaduras islamo-fascistas das petro-monarquias árabes, e, sob o falso pretexto de continuar a possuir armas de destruição maciça, a consequente invasão do Iraque e a queda do regime bathista do ditador nacionalista revolucionário árabe Sadam Hussein, anteriormente sujeito a duras sanções internacionais impostas pelo Conselho de Segurança da ONU, depois de ter sido obrigado pelos Estados Unidos da América e pelo Presidente George Herbert Bush (Pai) a retirar-se do Koweit que pretendia anexar; o ressurgimento de uma Rússia oligárquica e imperial e formalmente democrática liderada por Vladimir Putin, depois do caótico período de restauração de um capitalismo de feições selvagens e saqueadora do património público promovida por Boris Ieltsin e pelos novos hirerarcas e oligarcas apoiados pelo FMI e subservientes ante os interesses económicos, políticos e geo-estratégicos das potências ocidentais, e, no Médio Oriente, como aliado militar da Síria de Bashir Al Assad, confrontado com uma guerra civil em que os seus contendores foram abertamente apoiados pelos Estados Unidos da América e pelos seu aliados ocidentais; a queda do ditador nacionalista revolucionário líbio Muamar Kadhafi em resultado de uma insurreição popular apoiada pelos Estados Unidos da América, pela França, pela Alemanha e por outros países ocidentais e, nessa sequência, a desagregação da Líbia enquanto Estado soberano unido na sua integridade territorial e a correlativa proliferação de grupos terroristas islâmicos pertencentes à constelação terrorista do Daes (Estado Islâmico) no Norte do Mali e na zona sahariano-saheliana de vários países oeste-africanos, situação que perdura até aos dias de hoje e que ditou num primeiro tempo a crescente presença militar da França para apoiar alguns Estados africanos na luta contra os grupos rebeldes e jihadistas, vindo todavia, nos tempos mais recentes, a ser abertamente contestada e a ser substituída pela presença militar russa.
Na Europa assistiu-se à entrada maciça dos antigos países socialistas da Europa Central, do Leste, do Nordeste e do Sudeste na União Europeia e na NATO, aproximando-se a maior organização político-militar ocidental cada vez mais das fronteiras da Rússia, confrontada com várias revoluções coloridas em países integrantes da antiga União Soviética, como a Geórgia (confrontada com a secessão da Abcázia e da Ossétia do Sul), a Moldávia (confrontada com a secessão da Transnístria) e a Ucrânia (confrontada com a secessão armada das populações russófonas do leste do país).
Por outro lado, novos actores emergiram e consolidaram a sua posição no cenário internacional, às vezes considerando-se esses mesmos actores sucessores directos e legítimos dos antigos contendores da Guerra Fria, evidenciando-se como poderosos concorrentes directos das potências ocidentais e promotores de novos blocos políticos e de novas alianças militares, assim contribuindo para a (re)criação de um mundo multipolar. Com efeito, sentindo-se humilhada pelo desfecho da Guerra Fria em nítido desfavor do antigo bloco soviético, consabidamente marcado, como já referido, pelo desaparecimento da União Soviética, considerado por Vladimir Putin como a maior catástrofe geo-estratégica do século XX, e ameaçado pela aproximação ao seu território e ao que considera o seu espaço de vizinhança e que designa como o seu estrangeiro próximo, a Rússia (Federação Russa) tem sido o rosto mais visível dessa rivalidade geo-política e geo-estratégica.
Assim e reagindo à acima referida aproximação da NATO à sua vizinhança próxima, circunstância percepcionada como um sério risco geopolítico e geo-estratégico para a sua segurança nacional, a Rússia de Vladimir Putin vem fomentando e/ou apoiando movimentos separatistas nesses países da sua imediata vizinhança e em parte habitados por importantes minorias russófonas, protagonizando até a invasão, a ocupação e a anexação dos territórios russofónos desses países vizinhos, antecedidas e/ou seguidas da realização de referendos de auto-determinação deses mesmos povos russófionos, mas internacionalmente muito contestados e não reconhecidos. É o que ocorreu em 2014 com a invasão e a ocupação da Crimeia (relembre-se que anteriormente retirada à Rússia e cedida à Ucrânia por Kruschov, ele próprio um ucraniano, alegadamente para premiar a segunda maior República soviética pelos seus muitos feitos político-militares na Segunda Guerra Mundial), tendo na invasão, notoriamente ilegal, do restante território da Ucrânia e quase unanimente condenada na Assembleia-Geral da ONU, a manifestação mais atroz e temerária nova mentalidade imperial e grã-russa das novas autoridades do Kremlin. À invasão da Ucrânia seguiu-se em tempos mais recentes a anexação da parte leste desse país anteriormente integrante da antiga União Soviética e actualmente pré-candidato à entrada na NATO e na União Europeia. Como é sabido, a invasão da Ucrânia pela Rússia teve, entre outros efeitos imediatos, uma sua grande e inesperada derrota geo-estratégica consubstanciada na entrada na NATO da Suécia e da Finlândia, países europeus tradicionalmente neutros, mas na actualidade igualmente receosos de uma invasão russsa.
Por outro lado, a República Popular da China conseguiu afirmar-se como a segunda potência económica mundial, assim superando tanto o Japão como a Alemanha, o mais poderoso país da União Europeia, perdendo todavia para a Índia o estatuto de país mais populoso do mundo.
Em razão de todos esses desenvolvimentos, é de se indagar se não é de se trazer de novo à ordem do dia o princípio do não-alinhamento como directriz fundamental da política externa caboverdiana. Na verdade não é somente a comunhão de valores e princípios, neste caso democrático-liberais, devidamente inseridos na prática de um Estado de Direito Democrático e Social, que determinam o alinhamento quase total da política externa de um país, ademais pequeno, com a política externa de uma grande potência e com a política externa do bloco dos seus aliados, como parece ser o caso actual de Cabo Verde em relação aos Estados Unidos da América e à NATO mas também em relação a Israel e ao Marrocos.
Outras razões de Estado, aliás constitucionalmente consagradas, como o direito dos povos à autodeterminação e independência política, sistematicamente negados pelo Estado de Israel e pelo Reino do Marrocos respectivamente ao povo palestiniano e ao povo saharui, devem, na nossa opinião, ser cogitados e desempenhar igualmente o seu devido e necessário papel, sobretudo quando a negação do direito à autodeterrminação e independência política ultrapassa largamente um qualquer direito de legítima defesa individual e colectiva, consignado nas Carta das Nações Unidas, para se transformar em genocídio e sistemáticos crimes de guerra e contra a humanidade, como parece ser o caso de Israel nas suas práticas de terrorismo de Estado em relação às populações civis indefesas de Gaza na sua reacção militar, por demais desproporcionada, aos injustificáveis ataques terroristas do Hamas contra alvos civis no norte de Israel, mesmo se justificados pelos seus protagonistas extremistas islâmicos como forma derradeira e desesperada de chamar a atenção da opinião pública mundial para a comatosa questão palestiniana, a qual teria sido votada ao esquecimento pela Comunidade Internacional em face do perigo de alargamento a novos países árabes dos resultados tangíveis dos Acordos de Abrão, celebrados por Israel, primeiramente, com o Reino do Marrocos e, posteriormente, em processo de negociação com várias petro-monarquias árabes com vista à total normalização das relações entre esses países e o Estado sionista, mesmo sem que, de alguma forma, se vislumbre a resolução da candente questão palestiniana.
3
O NEO-COLONIALISMO COMO A MAIOR AMEAÇA CONTRA A INDEPENDÊNCIA AFRICANA
3.1. Segundo Amílcar Cabral, a maior ameaça com que a África independente do seu tempo se confrontava era o perigo do neo-colonialismo, o qual engendrava a perpetuação da dominação imperialista em África e propiciava o bloqueio da libertação dos processos históricos dos países africanos, e, assim e necessária e correlativamente, entravava o desenvolvimento das suas forças produtivas e das respectivas culturas. Distinguindo entre as formas colonial e neo-colonial da dominação imperialista, advogava Amílcar Cabral que era mais difícil e complexa a luta contra o neo-colonialismo em razão da ostentação pelas elites dirigentes dos países neo-coloniais, somente nominalmente independentes, de sinais exteriores de independência política, como um Governo e outras instituições políticas e soberanas autóctones próprias, uma bandeira, um hino e outros símbolos de soberania nacional e internacional, a par de outros de sinal contrário e indiciadores de inequívoca dominação ou tutela neo-colonial, tais a continuação da presença física de representantes da antiga Metrópole colonial, como a existência de bases militares e conselheiros militares estrangeiros a nível governamental, cooperantes e outros expatriados, detentores de um estatuto social privilegiado, a dominação ostensiva do panorama educativo e cultural pela antiga língua colonial, a detenção das alavancas fundamentais da economia por indivíduos, empresas ou multinacionais originários das antigas metrópoles coloniais e de países a elas associados, etc., etc.
Tal como no caso colonial, mas de forma mais restritiva, em razão de maiores, mais acentuadas, mais visíveis e mais complexas clivagens sociais e uma melhor definição dos interesses das diferentes classes sociais em presença, o caso neo-colonial exige também, segundo Amílcar Cbral, a constituição de vastas e amplas frentes de luta contra a dominação imperialista, as quais devem necessariamente incluir o operariado, o campesinato, as diferentes fracções da pequena-burguesia e a burguesia nacional autóctone, todas unidas em face das classes burocráticas e compradoras neo-coloniais enfeudadas aos interesses alienígenas do grande capital estrangeiro e multinacional ou transnacional. Para o caso neo-colonial, a união de amplas forças sociais interessadas na eliminação ou na contenção da dominação imperialista não terá de se processar necessária ou predominantemente no quando da união orgânica de um movimento de libertação nacional e social, mas preferencialmente de uma frente unida de partidos políticos patrióticos dotados da necessária autonomia política, ideológica, programática e organizativa, isto é, num quadro multipartidário, gizado na clandestinidade ou consagrado juridico-legalmente.
3.2. Incapaz de praticar o neo-colonialismo em razão dos seus conhecidos atraso económico e cultural e subdesenvolvimento crónicos, a que se aditavam os fortes interesses das comunidades de colonos portugueses e dos seus descendentes radicados ou representados especialmente em Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe, as autoridades coloniais portuguesas agarraram-se com unhas e dentes à posse colonial dos países africanos, e não só, sujeitos ao seu jugo, recusando todas as propostas dos movimentos africanos nacionalistas e de algumas potências imperialistas ocidentais, com destaque para os Estados Unidos da América, para encetar uma transição pacífica e regrada para as independências políticas das suas colónias. Em lugar disso, as autoridades coloniais portuguesas preferiram optar por reformas de fachada, como a substituição apressada dos por demais obsoletos termos Império Colonial Português e colónias portuguesas pelas denominações Ultramar Português e províncias ultramarinas portuguesas, pela extinção do regime do indigenato nas colónias onde até então existira, pela proibição dos trabalhos forçados e pela absorção da teoria do luso-tropicalismo para sustentar, legitimar, escamotear e ocultar a sua dominação colonial, bem como pela condução de guerras de manutenção do status quo colonial contra os crescentes actos insurrecionais e de rebelião das populações nativas e dos seus movimentos de libertação nacionais, como comprovados nos massacres de Batepá, em S. Tomé e Príncipe, de Pidjiguiti, na Guiné dita Portuguesa, de Mueda, em Moçambique, e da Baixa do Cassange, em Angola, protelando as independências políticas das suas colónias até ao ano de 1973, de proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau, e que redundaria na eclosão vitoriosa da Revolução dos Cravos do 25 de Abril de 1974 que, por sua vez, provocaria uma inédita aceleração da História conducente às negociações entre a potência colonial e os movimentos de libertação nacional. Essas mesmas negociações resultariam no ano de 1975 nas proclamações das independências políticas e das soberanias nacionais e internacionais de Moçambique, a 25 de Junho, de Cabo Verde, a 5 de Julho, de São Tomé e Príncipe, a 12 de Julho, e de Angola, a 11 de Novembro em meio da invasão estrangeira e da guerra civil. O caso timorense assumiu feições muito particulares pois que a proclamação da independência política dessa antiga colónia/província ultramarina portuguesa foi desfeita pelas sanguinárias invasão e ocupação indonésias, vindo a mesma independência política a ser restaurada somente depois da condução de uma longa guerra de resistência que culminarou na realização de um referendo de auto-determinação política vencido pelos independentistas, mas mal aceite pelos perdedores e pelos seus patronos indonésios.
3.3. A fase final da libertação da África da dominação colonial e do regime do apartheid na África Austral coincidiu com a eclosão nos fins dos anos oitenta e nos inícios dos anos noventa do século XX das mudanças democráticas a nível global do mundo e o fim pacífico da Guerra Fria.
Em resultado disso, houve lugar a um reposicionamento geo-político e geo-estratégico das grandes potências ocidentais vencedoras da Guerra Fria, em especial da única hiperpotência emergente ganhadora dessa pugna mundial e que são os Estados Unidos da América, e das novas potências económicas e políticas emergentes como novos actores no cenário geopolítico e geo-estratégico internacional, depois congregadas no seio dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, actualmente alargada à Indonésia e a outros grandes países do chamado Sul Global).
Marginalizada e condenada a ocupar um lugar subalterno e quase-invisível no processo de globalização que vinha tendo lugar de forma acelerada a partir dos anos oitenta do século XX, a África procurou adaptar-se à nova conjuntura política, económica e geo-estratégica emergente da falência dos regimes políticos de partido único e do fim da Guerra Fria entre dois modelos societários, político-ideológicos e socio-económicos antagónicos e então obrigados a viver em co-existência pacífica face ao perigo do mútuo extermínio por um holocausto nuclear.
A irrupção da China como grande potência económica em busca desesperada de matérias primas e de novas fontes de energia, de que a África é consabidamente pródiga, propiciou a aproximação entre as duas entidades geopolíticas mundiais contribuindo assim para retirar o nosso continente da marginalidade e do isolamento duradouros.
Ao mesmo tempo, os Estados africanos empreenderam em conjunto reformas fundamentais a nível continental e (sub)regional para dotar os seus organismos de cooperação e integração política e económica dos instrumentos jurídicos e políticos necessários e adequados à nova conjuntura internacional.
É assim que, cumprida a sua missão de contribuir para libertar totalmente o continente africano do jugo colonial e dos regimes racistas e segregacionistas do apartheid, a OUA (Organização da Unidade Africana) transformou-se em União Africana (UA), a qual foi dotada de uma nova Carta Constitutiva onde primam os objectivos da gradual integração económica e política do continente, e de que o objectivo do Mercado Único Africano é a ilustração mais recente, ao mesmo tempo que se declarou as absolutas ilicitude e inadmissibilidade do acesso ao poder político nos diferentes Estados- Membros que não seja por via democrática, isto é, mediante a realização de eleições periódicas, livres, competitivas, transparentes e justas por sufrágio universal, igual, directo e secreto. Deste modo, o Estado de Direito Democrático tornou-se imperativo e ideal político a realizar no presente político dos povos por todos os Estados Africanos, tendo sido por isso consignado em vários tratados, convenções, acordos e protocolos adicionais celebrados não só no quadro da União Africana, mas também das diferentes organizações regionais africanas de cooperação e de integração políticas e económicas.
Deste modo, foram liminarmente condenados os golpes de Estado considerados como modos anti-democráticos e sempre ilegítimos de acesso ao poder político, sendo os poderes de facto instalados por essa via obrigados a submeter-se a apertados calendários de realização de eleições livres, democráticas, competitivas e transparentes para o exercício da soberania popular e a devolução do poder aos representantes do povo legitimamente eleitos.
Ao mesmo tempo, foram legitimadas as intervenções humanitárias decretadas pelos órgãos competentes da UA, com destaque para o seu Conselho de Paz e Segurança, para proteger os direitos humanos dos cidadãos ameaçados pelas guerras civis e por outros conflitos armados susceptíveis de levar à comissão de crimes de guerra, crimes de genocídio e outros crimes contra a humanidade.
Por outro lado, foram reforçados alguns mecanismos de protecção dos direitos humanos já existentes anteriormente, ao tempo da existência da OUA, como, por exemplo, a Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos que foi transformada em Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos.
A nível das organizações regionais africanas, como a CEDEAO, foram criadas jurisdições competentes para proteger os direitos humanos dos indivíduos e das minorias nos diferentes Estados-Membros.
Assim, tem-se verificado indubitavelmente a universalização do paradigma democrático-liberal e do Estado de Direito Democrático e Social na configuração do novo rosto político e jurídico-constitucional da África no seu conjunto e dos países africanos em particular.
Não obstante os grandes avanços conseguidos, deparamo-nos com alguns exemplos, nada animadores para um desenvolvimento democrático e económica, social, cultural e ambientalmente sustentável da África.
Com efeito, alguns países africanos furtam-se ainda a deixar-se contagiar pelo vírus democrático, tal como a Eritreia, atanazada por uma feroz ditadura emergente da sua justa luta de libertação nacional; alguns países africanos degradaram-se ao estatuto de Estados falhados, como a Somália pós-Siad Barre e a Líbia pós-Kadhafi; outros países africanos foram sujeitos a golpes constitucionais e institucionais, como a Guiné-Bissau, tendo estado e continuando o mesmo país a manter-se sempre na iminência de queda no abismo dos Estados falhados; outros países africanos enredaram-se em guerras civis depois de recentemente ascendidos à independência política, como o Sudão do Sul, ou envolveram-se em guerras de secessão, como no caso dos Camarões que se defrontam com tentativas de separatismo da sua parte anglófona, agregada à parte maioritária francófona do Estado unitário camaronês; finalmente, alguns países africanos, foram ainda sujeitos a golpes de Estado militares contra as suas instituições na aparência democraticamente eleitas, como nos casos do Mali, do Burkina Faso, do Níger, da Guiné-Conacri e do Gabão, tendo esses mesmos golpes de Estado militares sido condenados, como era de se esperar, pelas organizações internacionais, incluindo pelas organizações de integração continental e regional africanas, mas tendo simultaneamente sido muito aplaudidos e festejados pelas respectivas populações, notoriamente cansadas de promessas eleitorais nunca cumpridas, de artificiosas revisões constitucionais para alterar o número de mandatos presidenciais com o confesso fito de perpetuar os Presidentes da República em exercício no poder ou para prolongar a sua vida política nas respectivas chefias de Estado e/ou de Governo, da ostensiva cleptocracia das classes dirigentes nativas, da contínua degradação das suas condições de vida e da sujeição dos respectivos países a interesses económicos e geo-estratégicos estrangeiros, como se verifica no caso paradigmático e agora abertamente contestado e aparentemente falido da Françafrique, recentemente sujeito a mais um golpe demolidor com a surpreendente eleição do novo Presidente da República do Senegal, depois de alguma maquinações e tergiversações do Presidente da República cessante Macki Sall.
Deste modo, tornou-se de novo actual o ensinamento de Amílcar Cabral segundo o qual o neo-colonialismo constitui a maior ameaça para o desenvolvimento pós-colonial, autónomo e auto-sustentado dos países africanos. Em face da inelutável falência dos modelos socialistas de matriz burocrático-administrativa e de cariz totalitário e/ou autoritário e comummente e por vezes impropriamente denominados de socialismo real de matriz soviética, parece-nos ser a edificação de um Estado de Direito Democrático e Social a alternativa mais viável e factível ao Estado neo-colonial e o seu cortejo de fraudes eleitorais, compras de votos e consciências e outras formas de desvirtuamento da vontade popular e de falseamento da soberania popular, a par da perpetuação do atraso económico e do subdesenvolvimento crónico e das suas inevitáveis mazelas configuradas no medo, na miséria, no obscurantismo e na ignorância como, aliás, sempre apontou Amílcar Cabral na sua ingente e permanente pugna pela dignificação das criaturas humanas do nosso país, da Guiné-Bissau, do nosso continente e de todo o mundo, e pelo seu inviolável, inalienável e imprescrindível direito à busca da felicidade e a uma vida em liberdade e em paz usufruindo de bem-estar material e espiritual, de prosperidade e de progresso social com acesso deles e dos seus filhos a todas as conquistas civilizacionais nos domínios científico e técnico que a Humanidade produziu ao longo da sua rica e, por vezes, dolorosa História.
Para enfim, e no caso dos caboverdianos, construir “uma outra terra dentro da nossa terra”, como desejou Amílcar Cabral com palavras do poeta Aguinaldo Fonseca, certamente sonhando com a vivificação da vida, isto é, com a utopia de uma vida cada vez melhor nos termos expressos no “Poema de Amanhã”, do poeta António Nunes, e firmemente ancorada numa sociedade livre, justa, solidária e fraterna, tal como plasmada no Programa Maior do seu PAIGC, na Constituição da República de 1980/de 1981 e na Constituição da República de 1992, que ele, o destemido e criativo combatente pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais universalmente consagrados, certamente subscreveria no essencial da sua substância consagradora de um Estado de Direito Democrático e Social, ancorado na dignidade da pessoa humana e ecologicamente sustentável.
*Nota do Autor: Excertos do livro a publicar e intitulado AMÍLCAR CABRAL-O MAIOR MORTO IMORTAL DOS POVOS DE CABO VERDE E DA GUINÉ-BISSAU, DO PONTO DE VISTA HISTÓRICO-POLÍTICO