Declinações da saudade das mulheres das ilhas e diásporas (poema de Nzé de Sant'y Ago)

(EXCERTOS)

E tragam também 

a lata ousadia 

das mulheres dos tempos de outrora 

emboscadas entre os recessos do dia-a-dia 

e as altas penedias de Ribeirão Manuel e da Serra Malagueta

a sua temeridade e a sua sonante valentia 

percutindo contra as sombras insalubres do latifúndio 

assolando os cutelos os desfiladeiros e as achadas

perscrutados para além da translucidez

do pétreo e rochoso perfil do Monte Birianda 

e da brancura da Igreja Grande de Santa Catarina

sitiando as encostas e as ribeiras da ilha toda de Santiago

ondulando com os esguios corpos dos mamoeiros 

dos Engenhos do Cerrado de Sedeguma de Jaracunda

da Boa-Entrada do Tabugal de Chã de Tanque

os seus novembrinos prenúncios 

os seus imponderados prelúdios 

da festa e do júbilo futuros setembrinos 

compostos na vasta e esverdeada planura 

de Achada Falcão e Achada Além

e as anciãs marcas das suas purgueiras

expurgando o medo e o temor do mando

purgando o alto preço da coragem 

e das suas cantigas de esperança 

trauteadas com o sibilar das pedras 

repetidas com a prontidão dos machins 

afagados nas suladas 

marchando com os pés 

nus informes 

todavia conformes 

com a macieza da terra bufa 

e a dureza das pedras 

dos calcorreados caminhos 

amotinados 

contra as temerosas hostes policiais 

e os impiedosos cascos da cavalaria da repressão 

claudicados 

defronte de Koraji Mendi 

defronte de Nhanha Bombolon 

defronte de Bombolon de Melo 

defronte de outros lendários nomes 

de Ana da Veiga 

e da sua imaginária cavalaria de amazonas 

recolectoras de nozes silvestres 

e de outras aguerridas folhas 

da pertinácia e do destemor 

para as lavagens da dor e da penúria 

para a combustão das candeias incendiárias 

das noites insones 

para o expurgo das sombras amofinadas 

da espoliação e da covardia 

para a escrutação dos tempos vindouros nossos 

dos tempos novos antecipados virtuosos 

nomeando-se pelos nomes da terra 

tais Naia Nair Nena Nina Nhara Nhanha Manhanha 

Tanha Vavaia Munana Muntura Maninha Manduna 

Donana Mento Nhamina Manaia Mena Mana Júlia 

Fidjinha Maninha Diminga Noca Xandinha Canda 

Dada Tutuxa Tutuca Bonga Fuca Teteia Zita Bia 

Dina Guta Tuna Tina Tuja Mita Luna Tujinha 

Dóia Tóia Jova Veninha Sábu Fonga Fatiti 

Nha Cumá Nha Ana Procópi Nha Salibana 

Nha Guida Mendi Nha Bibinha Kabral 

Nha Násia Gómi Nha Mita Prera Nha Maria Barba 

Nha Maninha Bórji Nha Tututa Évora Nha Cesária Évora 

e Nha Titina e ainda Nha Celina Pereira ainda ontem 

majestosas e repletas de vida nos palcos do canto e do mundo 

e ainda Nha Balila de lá de Tira-Chapéu ainda viva e valente

sempre resiliente nos desafios da palavra e da longevidade 

(…)

E tragam também 

as outras estações e temporadas todas

transaccionadas pelas mulheres das ilhas 

na quotidiana demanda 

dos horizontes submersos 

na metade sonegada dos céus

todavia reiteradamente interpelada 

à beira dos chafarizes e dos fontenários 

na cata da lenha para o lume de todos os dias 

cozinhados com a têmpera da (ir)resignação 

e os tempos do desaire e da rebeldia 

entre as três pedras certas do antigo destino das ilhas 

da sobrevivência das suas gentes 

dos seus casebres de pedra solta 

das suas enxadas laboriosas 

dos irrequietos arcos de ferro 

das brincadeiras dos seus meninos 

na rocega da palha para as alimárias 

na apanha clandestina das areias 

das praias moribundas

na debulha do milho e do feijão 

no padecimento com a sede 

dos trabalhadores das faimo 

nas morosas esperas das embarcações 

perdidas ou demoradas nas fainas de pesca 

nas vigílias das suas precárias e clandestinas 

habitações espalhadas desoladoras 

sobre as encostas abandonadas das urbes 

das suas arguições disseminadas cinzentas 

nas ribeiras atafulhadas de lixo 

nas periódicas dores de parto 

da procriação do insondável 

na parição do que 

sendo e vencendo 

há-de vir a ser 

irreversível e irrefutável

(…)

E tragam também

a rústica simplicidade 

das roupas tradicionais 

das mulheres profetisas 

nos sons captados 

nas insondadas brumas dos tempos

nos tons herdados para os improvisos 

da finason e da curcutisan 

das mulheres afinadeiras 

das turbações e das atribulações da História 

e dos ecos azuis do mar derramados 

sobre as fissuras das montanhas 

ciosas e cientes 

das trágicas peripécias e do conturbado destino

da multissecular penitência das criaturas das ilhas 

ecoando na tchabeta e nas muitas e indecifráveis

reminiscências musicais do batuco

e das suas mulheres cantadeiras 

da sambuna do rabolo e do rafodjo 

e das suas mulheres dançadeiras 

do torno da mazurca da contradança do lundum

do colá sanjon do talaia-baxo da coladeira da morna 

do funaná repicado no harmónio e nos ferrinhos

e de outras não inventariadas e de outras não ensinadas 

e de outras não identificadas e de outras não pronunciadas 

e de outras não registadas e de outras não conferenciadas 

cantigas de angariação dos ânimos e dos alentos

da alma nua e desabrigada

dessas mulheres nossas das ilhas 

amiúde interpeladas 

com a prole toda e inteira 

pelas cartas de chamada

dos seus homens ausentes na Terra-Longe

impacientes na radicada dispersão da diáspora

carentes delas 

em estado de necessidade 

do feminino aconchego delas 

em estado de precisão 

da comprovada resiliência delas

das suas legítimas mulheres 

nas precárias barracas dos bairros degradados 

nos modestos compartimentos dos bairros periféricos 

e das novas urbanizações de realojamento de imigrantes 

nos prédios de apartamentos de há muito sonhados 

de há muito sopesados no seu perfil de cimento e de solidão 

nas moradias hipotecadas à usura e à ganância dos bancos 

nos lares desconsolados aguardando 

os imprevisíveis desfechos 

da burocracia e do reagrupamento familiar 

dos desfeitos e refeitos laços de afecto 

dos imigrantes 

e das suas mulheres 

amiúde desafiadas 

pelo chamamento dos baixos salários das fábricas 

dos parcos ganhos das feiras dos precários lugares de venda 

dos produtos alimentícios e dos géneros comestíveis 

feitos e confeccionados à moda da terra natal 

à porta das suas precárias casas

à saída das estações de comboio 

no bulício dos bairros periféricos de gentes de cor 

e dos seus periclitantes preçários foragidos 

dos fiscais das câmaras municipais 

dos polícias de segurança pública 

dos vigilantes dos caminhos de ferro 

e de outros agentes da lei e da ordem vigentes 

nunca indiferentes às denúncias 

dos comerciantes estabelecidos na praça 

nunca desatentos às delações 

dos vendedores ambulantes seus concorrentes 

e dos gestos e silêncios comprometidos 

dos tremores dos suores frios dos ardores 

do claro e escuro dessas mulheres 

sempre atarefadas com as necessidades de limpeza 

dos escritórios das escolas dos centros comerciais 

das clínicas dos complexos hospitalares 

dos centros de saúde das torres de apartamentos 

dos condomínios suburbanos dos lares de idosos 

das casas dos solteiros da classe média 

das quintas afidalgadas das vivendas burguesas 

das buliçosas alamedas das grandes urbes 

das diurnas ruas e vias das pacatas cidades-dormitórios 

(…)

Tragam tudo

e as antigas e derradeiras

lembranças e recordações

e as folhosas lágrimas das 

nossas mães e os severos 

vaticínios dos nossos pais

florindo nas suas sepulturas

até ao nosso definitivo regresso

com rosas e agriões em oferenda 

nos jubilosos berços nas abençoadas

e relembradas festas de guarda-cabeça

ao sétimo dia de vida sobreviva salva e sã

dos nossos filhos sobrinhos & afilhados

 

Tragam tudo

e as reminiscências

dos cabelos brancos

das nossas mães

incandescendendo 

nas nossas noites insones 

até ao nosso regresso

com sal & saudade

para a comoção da alegria

das nossas irmãs e sobrinhas

das nossas tias primas e madrinhas

quedadas na terra-mãe e 

dos últimos dos nossos irmãos 

e sobrinhos sobreviventes dos malefícios 

das doenças precoces e fulminantes 

e da morte súbita e prematura

 

Tragam tudo

e a anciã ternura

das nossas mães

permanecendo

saudosa e incólume

até ao nosso regresso

com as mãos prenhes de flores

em oração nos túmulos

dos nossos pais avós & bisavós

em demanda e oferecimento

de pêsames aos olhares enlutados

dos nossos vizinhos & amigos

 

Tragam tudo

e os antigos e chorosos 

cuidados e os antigos

e reiterados conselhos 

das nossas mães

reverberando 

nos nossos corações

e nas nossas mentes 

até ao nosso regresso

com mostarda e música

para a louvação e a sagração

das janelas e dos portais novos

das casas e das mansões dos 

nossos outros parentes próximos

em aleluia e comunhão

com o chão sagrado

de ti, ó Mãe-Terra, de novo 

abençoada beijada e abraçada

com os pés novamente rachados

em derradeira inumação

da placenta e do umbigo

desde há muito enterrados

à sombra da mangueira

da nossa infância

 

Tragam tudo

e o corpo castanho da terra

e a sua alma salpicada de verde

para estes dias nossos

de pesar & desvario

nas gares da Europa

nos seus portos & aeroportos…

por José Luís Hopffer Almada
A ler | 9 Agosto 2024 | Cabo Verde, mulheres, poemas, sobrevivência