O período da transição política de Cabo Verde para a sua independência política e soberania nacional e internacional

PRIMEIRA PARTE

O período do pós-25 de Abril de 1974 e as dissensões políticas e culturais entre  os diversos protagonistas político-partidários em liça 

1. Um marco importante da transição política para independência política de Cabo Verde foi a preponderância da via pan-africanista para a sua obtenção e conquista. Essa via pan-africanista, desde há muito propugnada pelo PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde) e pelo seu líder carismático Amílcar Cabral,  ficou patente no período imediatamente posterior ao 25 de Abril de 1974,  quando, reunidos na Frente Ampla Anti-Colonial (FAAC), alguns militantes do PAIGC, alguns antigos presos políticos recentemente libertados e algumas personalidades desde há muito avessas ao regime colonial-fascista, a que depois se juntaram alguns estudantes universitários e de cursos médios regressados de várias cidades da Metrópole colonial portuguesa, como Lisboa, Porto, Coimbra e Santarém,  para a mobilização das populações em prol da independência de Cabo Verde, se declararam de forma clara e inequívoca favoráveis aos princípios e objectivos do PAIGC. Esclareça-se neste contexto que, segundo declarações de Jorge Querido, o  responsável máximo do PAIGC em Cabo Verde, constantes do livro Cabo Verde-Os Bastidores da Independência, de José Vicente Lopes),  a criação da FAAC se deveu à necessidade de se manter o PAIGC, partido/ movimento de libertação binacional a que a FAAC dava cobertura e rosto públicos,  temporariamente na (semi-) clandestinidade em face da natureza incerta e nebulosa da situação política resultante do golpe de Estado militar do 25 de Abril de 1974 e da colocação do General António Ribeiro de Spínola à frente da Junta de Salvação Nacional. Tais posicionamentos políticos da FAAC  contribuíram de forma decisiva para a larga disseminação dos postulados político-ideológicos e das palavras de ordem políticas do partido-movimento de libertação binacional fundado por Amílcar Cabral. 
Tanto mais que, como estrategicamente previsível, a luta político-armada conduzida pelo PAIGC no território da antiga Guiné dita Portuguesa/da actual Guiné-Bissau foi de valor determinante para o colapso do colonial-fascismo português e para a eclosão do 25 de Abril de 1974 e o vigoroso despoletar da Revolução dos Cravos em Portugal, a qual por sua vez inaugurou novas e inéditas perspectivas para o exercício do direito à autodeterminação e independência política ao povo caboverdiano e aos demais povos das colónias portuguesas e abriu novas oportunidades democráticas e desenvolvimentistas para o próprio povo português. 
Novas e inéditas perspectivas para os povos africanos que tiveram o seu primeiro selo inaugural logo nos primeiros dias de Maio de 1974, quando depois de se ter reunido, no dia 6 do memo mês,  na região libertada de Madina do Boé, o Comité Executivo da Luta (CEL) do PAIGC emitiu uma Declaração a saudar a nova situação política em Portugal engendrada pelo golpe de Estado militar do 25 de Abril de 1974, promovido pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), e avançou com as condições do PAIGC para a declaração de um cessar-fogo imediato no teatro da guerra da Guiné-Bissau, designadamente o reconhecimento imediato e incondicional da República da Guiné-Bissau, proclamada unilateralmente como Estado independente e soberano,  a 24 de Setembro de 1973, na zona libertada de Madina do  Boé, e o reconhecimento imediato do direito do povo de Cabo Verde e dos povos de todos os países africanos colonizados por Portugal à autodeterminação e independência política. É na sequência dessa Declaração que houve um primeiro encontro na cidade de Dacar, capital da República do Senegal, entre Aristides Pereira, Secretário-Geral do PAIGC, e Mário Soares, Ministro dos Negócios Estrangeiros do recém-empossado Primeiro Governo Provisório português, liderado pelo advogado anti-fascista de simpatias spinolistas Adelino da Palma Carlos. Nesse encontro foi acordada a continuação dos contactos políticos entre o PAIGC e o Governo Provisório português, tendo-se iniciado as negociações entre as Delegações das duas partes na cidade de Londres nesse mesmo mês de Maio. Relembre-se que anteriormente tinham sido já encetadas negociações secretas entre uma Delegação do PAIGC, chefiada por Silvino da Luz, e uma Delegação do Governo colonial-fascista de Marcelo Caetano, nessa mesma cidade de Londres, em Março desse mesmo ano de 1974 (isto é, nas vésperas da eclosão vitoriosa do golpe de Estado militar do 25 de Abril de 1974), tendo as duas partes de então decidido prosseguir as negociações secretas em Maio desse mesmo ano na mesma cidade de Londres. 
Tendo esbarrado em vários impasses, relativos designadamente à conexão entre a questão do reconhecimento de jure do Estado independente e soberano da Guiné-Bissau e a questão do direito à autodeterminação e independência política do povo de Cabo Verde, decidiu-se, neste segundo encontro de Londres entre as Delegações do PAIGC e do Governo Provisório Português, então chefiadas respectivamente pelo Comandante Pedro Pires, membro do Comité Executivo da Luta (CEL) do PAIGC, e pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros do Primeiro Governo Provisório português, Mário Soares, prosseguir as negociações, desta feita  na cidade de Argel, capital da Argélia, delas finalmente resultando a celebração do Acordo de Argel, de 26 de Agosto de 1974. Este mesmo Acordo procedeu ao reconhecimento de jure da República da Guiné-Bissau, estipulando a data de 10 de setembro de 1974 para a realização em Lisboa da cerimónia solene desse mesmo reconhecimento de jure, bem como ao reconhecimento do direito à autodeterminação e independência política do povo de Cabo Verde por parte de Portugal, “conforme as pertinentes Resoluções da ONU (Organização das Nações Unidas) e da OUA (Organização da Unidade Africana)”.  
Entretanto, estudantes universitários e do ensino médio regressados da Metrópole colonial portuguesa e estudantes liceais e activistas dos centros urbanos identificados com o PAIGC ensinavam jovens e adolescentes politicamente ávidos de curiosidade, rebeldes e sedentos de acção combativa a fazer ressoar nas ruas palavras de ordem e slogans políticos enaltecedores da independência total e imediata, da unidade  e  luta, da unidade Guiné-Cabo Verde, da unidade e da revolução africanas, da vitória ou morte, da luta continua, de enaltecimento e da louvação da memória de Amílcar como mártir maior da independência e Herói do Povo e contra a reacção, invariavelmente botada abaixo. Reacção essa que se ia descredibilizando quer pela sua aliança com aquele que era considerado e invectivado como o mentor intelectual do traiçoeiro e bárbaro assassinato de Amílcar Cabral (o General António Ribeiro de Spínola) e com as suas teses de reciclagem do execrado e moribundo adjacentismo político-cultural de Cabo Verde a Portugal no recém-inventado federalismo no seio de uma denominada Comunidade Lusíada ou Luso-Africana, quer com os círculos mais retrógrados da Igreja Católica e das classes e categorias sociais oligárquicas, possidentes e privilegiadas dos meios urbanos e rurais. 

 

2. A via nacionalista estritamente islenha corporizada e representada pela UPICV (União do Povo das Ilhas de Cabo Verde), liderada por José André Leitão da Graça enquanto corrente política ferreamente uni-nacionalista caboverdiana, se bem que também nominalmente identificada com o pan-africanismo político propugnado pelo antigo dirigente político e Presidente ganês Kwame Nkrumah, e ideologicamente situada na extrema-esquerda maoísta/enver-hoxhista, seria, por sua vez, vítima do regresso tardio às ilhas desse político do seu exílio euro-africano (Gana, Senegal e Suécia) e do amalgamento político que se pôde fazer da argumentação crioulista de feição neo-claridosa e teor aparentemente nova-largadista, de todo modo estritamente avessa à pugna cabraliana/cabralista pela reafricanização dos espíritos e ao correlativo projecto paigcista da unidade Guiné-Cabo Verde,  com as correntes políticas consideradas aberta e assumidamente reacionárias, luso-tropicalistas no seu formato islenho luso-crioulista, colonial-saudosistas, adjacentistas/federalistas e spinolistas. Tal amalgamento político tornou-se possível e foi facilitado em grande medida devido ao facto de, depois da queda em desgraça e da renúncia do Presidente da República Portuguesa, o General António Ribeiro de Spínola,  a 28 de Setembro de 1974, na decorrência dos acontecimentos que na Metrópole colonial portuguesa levaram ao fracasso da manifestação/intentona de uma alegada maioria silenciosa liderada na sombra pelo mesmo General António Ribeiro de Spínola, muitos dos militantes da UDC (União Democrática de Cabo Verde), de João Baptista Monteiro, se terem mudado com armas e bagagens e passado a militar activamente na UPICV (União do Povo das Ilhas de Cabo Verde), de José André Leitão da Graça, dando assim o caso de um partido formal e ideologicamente identificado com a extrema-esquerda uninacionalista ter maioritariamente como militantes pessoas ideologicamente situadas na direita e na extrema-direita e aberta e assumidamente identificadas com o federalismo spinolista.

Aproveitando as ambiguidades políticas dos seus adversários políticos imediatos nas questões relativas à controversa questão do referendo de auto-determinação política do povo caboverdiano bem como  ao seu comum posicionamento contra a unidade Guiné-Cabo Verde, os responsáveis políticos do PAIGC em Cabo Verde puderam fazer com pleno sucesso o acima referido amalgamento político entre a UPICV e a UDC, não obstante as nítidas diferenças e as gritantes, senão antagónicas, discrepâncias político-ideológicas entre os dois partidos políticos caboverdianos adversários do PAIGC. Como se disse, as discrepâncias político-ideológicas  entre os adversários políticos do PAIGC consubstanciavan-se na assumida ideologia pan-africanista, no radicalismo de esquerda de feição maoísta/enver-hoxhista e no independentismo soberanista e crioulista integral, porque adverso à unidade Guiné-Cabo Verde, professados pelo antigo exilado político e veterano resistente anti-colonial José André Leitão Graça e pelos seus escassos seguidores politicamente mais esclarecidos da UPICV, em contraponto ao federalismo tardo-adjacentista e luso-crioulista defendidos pelos responsáveis políticos e pelos militantes da UDC. Curiosamente, terá sido a exacerbação de um uni-nacionalismo caboverdiano, alicerçado nas especificidades geográfico-insulanas e culturais mestiças crioulas da caboverdianidade que foram adversas e, finalmente, fatais para a conjuntura política de José André Leitão da Graça e da sua UPICV. Sem os pergaminhos míticos de que o PAIGC e os seus dirigentes, combatentes, presos políticos e militantes da clandestinidade eram portadores, o nacionalismo estritamente caboverdiano de José André Leitão da Graça e da sua UPICV foi primacialmente dirigido contra os muito vituperados princípio de unidade Guiné-Cabo Verde e projecto de união orgânica/de associação política pós-colonial entre os dois territórios africanos e recorrentemente apodada de união forçada de Cabo Verde com a Guiné, sobretudo numa primeira fase em que o mesmo solitário líder uni-nacionalista e a organização política por ele chefiada exigiam em combativos comunicados (consultar a propósito o livro Golpe de Estado em Portugal…Traída a Descolonização em Cabo Verde!, de compilação por José André Leitão da Graça dos documentos, comunicados e memorandos da UPICV) que a questão da unidade Guiné-Cabo Verde fosse objecto preferencial de referendo, em lugar da questão da independência política, como exigiam os adjacentistas/federalistas da UDC ou alguns autonomistas e tardo-independentistas, como o médico e escritor neo-claridoso Henrique Teixeira de Sousa. Por isso mesmo, o uni-nacionalismo de José André Leitão da Graça e da sua UPICV foi facilmente confundido com a ideologia crioulo-lusitana (ou luso-crioulista) dos claridosos e neo-claridosos, na altura em rápido refluxo e acelerado descrédito, do ponto de vista do seu ideário culturalista de activa promoção da diluição da África na cultura caboverdiana.


3. É essa mesma juventude independentista e pan-africanista que começava a preparar-se para, aberta ou semi-clandestinamente, se digladiar entre as correntes trotskista (presumivelmente liderada por Amaro da Luz, José Luís Fernandes e Manuel Faustino) e maoísta (tendo supostamente Silvino da Luz como líder e principal mentor ideológico), com alguns dos integrantes do chamado Grupo dos Vindos de Conacri e das duas Guinés (mais tarde também impropriamente denominado Grupo de Cuba) liderados por Pedro Pires, na sua disputa pelo respectivo maior protagonismo no processo independentista então em curso e, depois, pela liderança política do processo revolucionário pós-colonial Essas dissensões intra-partidárias decorreriam sem quaisquer notoriedade e espalhafato públicos durante toda a vasta, massiva, aguerrida e festiva campanha político-cultural em prol da independência política de Cabo Verde. Relembre-se que essa mesma campanha político-cultural foi toda ela desenvolvida na legalidade possibilitada pelo 25 de Abril de Abril de 1974, tendo sido liderada por Silvino da Luz e Osvaldo Lopes da Silva, desde o seu regresso definitivo a Cabo Verde, em fins de Agosto de 1974, e, depois, por Pedro Pires, recebido entusiasticamente, no mês de Outubro de 1974, no aeroporto da Praia, pelas “grandes massas populares” da ilha de Santiago mobilizadas pelo PAIGC contra as posturas diferenciadas das forças políticas suas adversárias, designadamente  a UDC e a UPICV. A disputa interna no seio do PAIGC teria um primeiro desfecho numa reunião, realizada em 1976, da Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC, a qual fora entretanto alargada, na sua primeira reunião em solo caboverdiano, realizada em Março de 1975, a alguns ex-presos políticos dos Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, e do Campo de Concentração de São Nicolau, na Foz do Cunene, em Angola, designadamente Lineu Miranda, Luís Fonseca e Alexandre (Alexa) de Pina, e a alguns antigos estudantes universitários do Comité de Coordenação de Lisboa, conotados com a corrente trotskista, com destaque para  Manuel Faustino (Tilela), Sérgio Centeio e José Tomás Veiga, tendo sido visível,  por outro lado, a não inclusão (pelos directamente interessados entendida como flagrante exclusão) de destacados ex-presos políticos e militantes da clandestinidade e no imediato pós-25 de Abril de 1974, tanto em Portugal como em Cabo Verde, com destaque para Oswaldo Osório (nominho e pseudónimo literário de Osvaldo Alcântara Medina Custódio), Manuel (Lela) Rodrigues, Fernando dos Reis Tavares (Toco), Gil Querido Varela (Quide), Felisberto Vieira Lopes (Kaoberdiano Dambará), Arlindo Vicente Silva, David Hopffer Almada e Pedro Martins. Relembre-se neste preciso contexto que Jorge Ferreira Querido, o antigo responsável do Comité de coordenação do PAIGC clandestino em Portugal, depois substituído nessas funções por  Amaro da Luz aquando do seu regresso a Cabo Verde em 1968, onde assumiu as funções de responsável do Comité de Coordenação de Cabo Verde do PAIGC na clandestinidade, tinha sido suspenso dessas funções numa reunião do PAIGC realizada na Holanda, logo depois do 25 de Abril,  em Maio de 1974, com a presença de Abílio Duarte, Olívio Pires, Carlos Reis e José Luís Fernandes (Djidjê), todos membros da Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC. Relembre-se ainda que a criação da Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC tinha sido anunciada por Amílcar Cabral na sua Mensagem de Ano Novo de 1973, considerada o seu Testamento Político, tendo sido efectivamente criada pelo II Congresso do PAIGC, de Julho de 1973, e na qual, para além de Pedro Pires, como seu Presidente, Abílio Duarte, Silvino da Luz, Olívio Pires, Osvaldo Lopes da Silva, Carlos Reis, André Corsino Tolentino, João José Lopes da Silva, Álvaro Dantas Tavares, Agnelo Dantas, Armindo Ferreira, entre outros integrantes das fileiras da retaguarda logística e da luta diplomática ou político-militar do PAIGC, foram integrados  Jorge Querido, responsável máximo do PAIGC em Cabo Verde, bem como Amaro da Luz e José Luís Fernandes, do Comité de Coordenação do PAIGC em Portugal.  

O curioso é que o destacado comandante militar Manuel (Manecas) Santos não foi integrado na mesma Comissão Nacional, segundo o testemunho do próprio em livro recentemente publicado pela editora Rosa de Porcelana (Manecas Santos - Uma Biografia da Luta, de Rosário da Luz), por se ter pronunciado contra a criacão dessa estrutura partidária exclusivamente para Cabo Verde, sem que se criase estrurura política similar também para a Guiné(-Bissau), , quiçá, ignorando-se e/ou esquecendo-se que, tendo embora sido uma ideia obsessiva de Abílio Duarte, para colmatar o alegado atraso na luta na frente de Cabo Verde, a criação da mesma Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC foi considerada por Amílcar Cabral, no seu Testamento Político, com uma das tarefas prioritárias do PAIGC para fazer avançar a luta em Cabo Verde. 


4. Por sua vez, logo após o 25 de Abril de 1974, medidas de grande impacto político foram tomadas ou influenciadas pelas diferentes correntes político-ideológicas conotadas com o PAIGC. Foram os casos da libertação dos presos políticos do Tarrafal, a 1 de Maio de 1974; dos confrontos de jovens praienses com os militares portugueses no dia 19 de Maio de 1974; da fundação do jornal independentista Alerta para substituir o oficioso e (arqui-) colonial-fascista semanário O Arquipélago, em resultado da respectiva extinção; da recusa dos mancebos caboverdianos aquartelados no Centro de Instrução Militar do Morro Branco, na ilha de São Vicente, em prestar juramento à bandeira portuguesa; do impedimento pela Polícia Militar portuguesa de uma manifestação da UPICV aprazada para o dia 1 de Novembro de 1974 na cidade da Praia mediante a proibição de entrada na cidade de camiões vindos do interior da ilha de Santiago com militantes e simpatizantes do mesmo partido político; da greve geral da função pública; da ocupação da Rádio Barlavento e da mudança da sua linha editorial pró-portuguesa e pró-federalista para um cariz inequivocamente paigcista e da alteração da sua denominação de Rádio Barlavento para Rádio Voz de São Vicente;  dos inumeráveis comícios, sessões de esclarecimento, saraus culturais e outras acções de mobilização política. Esses actos políticos e culturais eram precedidos sempre e invariavelmente de “um minuto de silêncio em memória do Camarada Amílcar Cabral, Militante Número Um do nosso Partido e Herói do nosso Povo na Guiné e em Cabo Verde”, bem como de outros mártires (bissau) guineenses e caboverdianos tombados na luta político-armada na Guiné, tais como Domingos Ramos, Jaime Mota, Justino Lopes ou Titina Silá. As mesmas sessões políticas e culturais eram preenchidas com slogans, palavras de ordem e excursos político-heróicos às tragédias e histórias do multissecular sofrimento dos caboverdianos. Nesses excursos histórico-políticos eram sempre destacados alguns indeléveis marcos das vivências e atribulações coloniais dos caboverdianos e dos seus antepassados africanos como a escravatura, as fomes, a emigração forçada e o trabalho servil e semi-escravo nas roças de São Tomé e Príncipe e Angola, os inumeráveis vexames sofridos às mãos dos morgados e das autoridades coloniais (incluindo as religiosas), etc. Era ademais ressaltada e vincada a lendária resistência anti-colonial do povo caboverdiano consubstanciada nas Revoltas dos Engenhos, da Achada Falcão e de Ribeirão Manuel (ainda os Valentes de Julangue e o seu Quilombo na freguesia de Santa Catarina, na ilha de Santiago, não eram conhecidos e rememorados) e nas figuras de Lázaro, o Salteador sedento de justiça social, e do Capitão Ambrósio, o porta-estandarte da bandeira negra contra a fome do poderoso poema homónimo de Gabriel Mariano, a par da denúncia da repressão das “nossas manifestações culturais mais genuínas”, com destaque para o batuco, a tabanca, o funaná, o colá sanjon, do inculcamento colonial da vergonha em relação às nossas características raciais de feição ou matriz negras, enfim, quase tudo o que tinha sido aflorado e severa e veementemente denunciado em 1962 por  Manuel Duarte, no panfleto político “Cabo Verde e a Revolução Africana”, assinado pelo seu pseudónimo da clandestinidade política A. Punói. Tudo muito regado e condimentado com música revolucionária, nossa e dos outros africanos, com especial destaque para José Carlos Schwarz e os Cobiana Jazz, da Guiné-Bissau, e de muita “poesia de protesto e luta”, da autoria de poetas cabo-verdianos, africanos e progressistas do mundo inteiro. Nos comícios e sessões de esclarecimento, jovens e adolescentes recitavam com fervor “Labanta bo anda fidjo di África/ labanta negro/ obi grito’l povo/África Djustisa Liberdadi” do poema “Labanta, Negro”, de Kaoberdiano Dambará, e os versos de outros poemas, tais o “Poema de Amanhã”, de António Nunes, “Kabral ka More”, de Emanuel Braga Tavares, “Os Flagelados do Vento Leste”, de Ovídio Martins, “Caminho Longe” e “Capitão Ambrósio”, de Gabriel Mariano, “Canta co alma sem ser magoado” e “Toti Cadabra”, de Arménio Vieira, “Bandera di Strela Negro (Black Star Over Africa”)” e “Batuco”, de Kaoberdiano Dambará, “Poeta e Povo”, de Aguinaldo Fonseca, “Hora Grande” e “Têtêia”, de Onésimo Silveira, “Casebre”, de Jorge Barbosa”, “Ressaca”, de Osvaldo Alcântara”, entre outros também de outros poetas caboverdianos e africanos contestatários ou de denúncia social e política, e entoavam o hino “Esta é a nosssa Pátria Amada”, mais conhecido popularmente por “Sol, Suor e o Verde Mar”, de Amílcar Cabral e hino do PAIGC e da Guiné-Bissau, “Guerra Mendes”, de Abílio Duarte, “Tchom di Morgado”, de Caló Querido, “Korda Skrabo”, “Minino Manso” e “Amílcar Cabral, Bu Mori Cedo”, de Tony Lima e do grupo Kaoguiamo, “Cabral ca Morre”, de Daniel Rendall, e “Nos Raça”, de Manuel de Novas, entre muitas outras canções em voga nesses tempos de renovação da música caboverdiana, em especial das suas letras. 


SEGUNDA PARTE

Consulta popular do povo caboverdiano e independência política de Cabo Verde 

1. Nesta fase, em parte precedente do 25 de Abril de 1974 e da queda do colonial-fascismo em Portugal e em Cabo Verde e em parte coincidente com esses mesmos eventos históricos, os princípios pan-africanistas e da unidade Guiné-Cabo Verde incorporados e defendidos no ideário político do PAIGC revelaram-se como encerrando um grande poder mobilizador. 
Releva nesta circunstância o profundo e subliminar significado da proclamação, a 24 de Setembro de 1973, ainda no calor da guerra colonial/da luta armada de libertação bi-nacional, do Estado independente e soberano da Guiné-Bissau. Como é sabido, Cabo Verde não fazia parte, nem podia fazer parte, desse mesmo Estado independente e soberano da Guiné-Bissau, quer por razões sumamente candentes e irrenunciáveis, porque fundadas na identidade própria do povo das ilhas e na intangibilidade das fronteiras do seu arquipélago, sendo que todas elas se funda(va)m em princípios de Direito Internacional Público imperativo (jus cogens), designadamente no princípio (direito) da autodeterminação e da independência política dos povos coloniais e no princípio da intangibilidade das fronteiras herdadas do colonialismo, princípios esses consagrados em vários instrumentos jurídicos internacionais, designadamente na Carta das Nações Unidas, na Resolução 1514 (XV), de 14 de Dezembro de 1960, da Assembleia Geral das Nações Unidas, e na Carta da Organização da Unidade Africana (OUA). 

Relembre-se neste contexto que na sua Mensagem de Ano Novo de 1973, considerada o seu Testamento Político, Amílcar Cabral arquitectara a proclamação de um Estado independente e soberano bissau-guineense pela Assembleia Nacional Popular (ANP) desse povo africano  (e cujo processo de eleição indirecta estava quase concluído com a eleição directa já realizada dos conselheiros regionais no seio dos quais sairiam os deputados à supra-referida ANP), e, posteriormente, a proclamação de um Estado independente e soberano caboverdiano, após a criação das devidas condições político-institucionais para o efeito, designadamente a eleição de uma Assembleia Nacional Popular caboverdiana. Esse Estado independente e soberano caboverdiano deveria ser distinto do Estado independente e soberano bissau-guineense, mesmo quando se tem em conta e sendo inegável que Amílcar Cabral continuava a almejar a associação política entre os dois Estados independentes e soberanos africanos e a pugnar pela união orgânica de ambos os países crioulófonos e afro-lusófonos, antevendo para prazo não muito longínquo a criação de uma Assembleia Suprema do Povo da Guiné e Cabo Verde, desde que assim fosse a vontade expressa dos povos dos dois países para o efeito consultados em referendo, como, aliás, constava expressamente da Constituição Política da República de Cabo Verde, de Setembro de 1980) e/ou por deliberação das respectivas Assembleias Nacionais Populares (como constava da Mensagem do Ano Novo, de 1 de Janeiro de 1973/do Testamento Político, de Amílcar Cabral, da Constituição Política da República da Guiné-Bissau, de 24 de Setembro de 1973, e da LOPE, de 5 de Julho de 1975.

Como anteriormente referido, já no Memorando apresentado ao Governo português no ano de 1960, Amílcar Cabral defendera, de forma inequívoca, a existência prévia de poderes independentes e soberanos em cada um dos dois países como pressuposto jurídico-constitucional e político-institucional para qualquer eventual unidade orgânica/associação política entre os mesmos.


2. Acontecimentos de grande relevância política rodeiam esta fase de aceleração da internalização arquipelágica dos princípios pan-africanistas conexos com o projecto de unidade Guiné-Cabo Verde. São os casos do sucessivo regresso a Cabo Verde,  ao longo do ano de 1974 e a partir do mês de Maio, de combatentes e de dirigentes do PAIGC, como Henrique Semedo, Zezé Manco, Toi de Suna, Lela Guerrilheiro,  Carlos Reis, Corsino Tolentino, João Pereira Silva, Tchifon, João José Lopes da Silva (Jota-Jota), Álvaro Dantas Tavares, Agnelo Tavares Dantas, João Pedro Silva (Baró) Paula Fortes, Maria das Dores (Dori) Silveira Pires, Olívio Melício Pires, Osvaldo Lopes da Silva, Silvino da Luz, Pedro Pires, entre muitos outros dirigentes, responsáveis, comandantes, combatentes e militantes caboverdianos, culminando, primeiramente, na entusiástica recepção de Pedro Pires, Presidente da Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC, no aeroporto da Praia, e, já a 21 de Fevereiro de 1975, na apoteótica chegada à cidade da Praia de Aristides Pereira, Secretário-Geral do PAIGC,  todavia  permanecendo na Guiné-Bissau o membro do Secretariado e do CEL do PAIGC José Araújo, a Directora da Escola-Piloto do PAIGC, Lilica Boal,  os Comandantes Honório Chantre, Júlio de Carvalho e Manuel (Manecas) dos Santos, integrados na Direcção Superior do PAIGC e no ramo nacional bissau-guineense desse partido bi- e  supranacional e das  FARP da Guiné-Bissau, e respectivas esposas/cônjuges/companheiras. 


3. Relevante no que se refere a Aristides Pereira parecem ter sido: 

i. A sua implícita recusa, na sua condição de caboverdiano e de mais alto dirigente político do PAIGC, em assumir primeiramente a candidatura à Presidência do Conselho de Estado (Chefia colectiva do Estado bissau-guinense, cujo Presidente era equiparado a Presidente da República) da Guiné-Bissau, proclamada unilateralmente a 24 de Setembro de 1973, ainda em pleno fragor da luta político-armada de libertação bi-nacional, cargo a que poderia querer aspirar enquanto Secretário-Geral do PAIGC e substituto de Amílcar Cabral. Por sua vez, Amílcar Cabral era consensualmente considerado uma personalidade político-militar carismática e de grande prestígio internacional que, segundo Aristides Pereira, estaria plenamente legitimada para exercer as funções de Presidente do Conselho de Estado da República da Guiné-Bissau, porque bissau-guineense de nascimento, e, acrescentamos nós, totalmente identificado com uma bipatridia caboverdiano-bissau-guineense e com uma futura comunidade política resultante da eventual e propugnada união orgânica/da almejada associação política entre os dois países já independentes e soberanos, e no presente da História consubstanciada na união combativa independentista entre guineenses e caboverdianos no seio do PAIGC. Segundo Aristides Pereira faltar-lhe-ia, enquanto caboverdiano de nascimento, de vivência  e de cultura, a qualidade de bissau-guineense de nascimento, facto  que  obstava de forma absoluta a uma sua eventual pretensão ao exercício do cargo de Presidente do Conselho de Estado da Guiné-Bissau (mesmo que o Conselho de Estado enquanto Chefia de Estado da Guiné-Bissau se corporizasse numa entidade colegial). 

ii. A sua também implÍcita recusa de posteriormente assumir de forma imediata a candidatura à Presidência de uma eventual República Unida da Guiné e Cabo Verde, proposta à Reunião Alargada do Comité Executivo da Luta (CEL) do PAIGC,  e que, como já referido,  teve lugar a 24 e a 25 de Junho de 1975, menos de duas semanas antes da proclamação solene da independência política das ilhas caboverdianas programada para 5 de Julho de 1975, nos termos da Lei Orgânica do Estado de Cabo Verde, de 17 de Dezembro de 1974, e do Acordo de Lisboa,  de 19 de Dezembro de 1974. É nessa sequência que Aristides Pereira foi formalmente indigitado pelo mais alto órgão político  executivo do PAIGC para ser apresentado à ANP caboverdiana como candidato único do partido-movimento de libertação bi-nacional  para exercer o alto cargo de Chefe de Estado caboverdiano, isto é, de primeiro Presidente da República de Cabo Verde, e Pedro Pires foi escolhido pela ANP, por proposta do Presidente da República também eleito/indigitado pela ANP, para ser o primeiro Primeiro-Ministro do Cabo Verde independente e soberano.

 
4. Relembre-se que a 30 de Junho de 1975 tiveram lugar as eleições para uma Assembleia Representativa do Povo de Cabo Verde, dotada de poderes soberanos e constituintes, tendo-se apresentado às mesmas eleições, nos termos da Lei Eleitoral vigente, datada de 15 Abril de 1975 e elaborada e posta em vigor pelas autoridades portuguesas competentes, grupos de cidadãos total e completamente dominados pelo PAIGC, o qual vinha agindo como partido único de facto desde a neutralização política dos partidos políticos adversários do PAIGC na sequência dos acontecimentos que levaram, em Dezembro de 1974, ao encarceramento de alguns dos seus altos responsáveis e importantes militantes no Presídio do Tarrafal. Relembre-se neste preciso contexto que, segundo dados recolhidos no livro Cabo Verde-Os Bastidores da Independência, de José Vicente Lopes, e no livro O MFA e o Processo da Independência de Cabo Verde, de…Pires,  nos dias 14, 15 e 16 de Dezembro de 1974, militantes do PAIGC, instigados pelos dirigentes do partido então instalados em Cabo Verde em cumplicidades conluio activos com o MFA local, procederam nas ilhas de Santiago, de São Vicente, de Santo Antão, do Fogo e do Sal, à prisão de setenta e um militantes e simpatizantes da UPICV e da UDC, por alegadamente terem sido informadores da famigerada PIDE/DGS e se terem posicionado contra a descolonização preconizada pelo MFA e a correlativa independência política  de Cabo Verde. Entregues à Polícia Judiciária Militar portuguesa, devidamente assessorada pelo advogado caboverdiano António Caldeira Marques, e colocados sob sua custódia, os mesmos militantes e simpatizantes da UPICV e da UDC foram encarcerados no presídio político do Tarrafal (ainda que, como se escreve na incontornável obra Cabo Verde-Os Bastidores da Independência, de José Vicente Lopes, em regime de recreio, isto é, com ampla liberdade de circulação dentro dos murros da prisão e sem que tivessem sido sujeitos a qualquer forma de tortura, sevícia ou outra forma de tratamento degradante, cruel e desumano). Desses setenta e um presos políticos oito foram imediatamente libertados por nada se ter apurado contra os mesmos. Os restantes presos políticos do processo de descolonização de Cabo Verde seriam libertados nas vésperas da independência de Cabo Verde, facto devidamente testemunhado pelo então delegado do Procurador da República, Carlos Veiga, tendo sido dezoito deles enviados para o forte de Caxias e entregues à Comissão de Extinção da PIDE/DGS, por alegadamente terem sido informadores da famigerada polícia política portuguesa. Todos os remanescentes presos políticos caboverdianos seriam entretanto libertados na sequência dos acontecimentos do 25 de Novembro de 1975 em Portugal. 


TERCEIRA PARTE 

O significado político dos acordos de Lisboa, de 17 e de 19 de dezembro de 1974, para a transição política de Cabo Verde para a independência política 

1. Resolvida definitivamente a favor do PAIGC a questão (da não realização) do alegado referendo de autodeterminação política, foram retomadas em princípios de Dezembro de 1974 as negociações para a independência política de Cabo Verde entre o Governo Provisório Português e o PAIGC. Ainda assim, o PAIGC nunca foi expressa e nominalmente reconhecido pelas autoridades provisórias centrais portuguesas como o único e legítimo representante do povo de Cabo Verde, como, aliás, constava das pertinentes Resoluções da OUA ( desde 1965), e da ONU (desde 1972 e reiterado em inícios  de Abril de 1974, depois da apresentação em 29 de Março de 1974 ao Comité de Descolonização da ONU de um Relatório  sobre a Situação em Cabo Verde por uma Delegação do PAIGC chefiada por Abílio Duarte) e para as quais remetia expressamente o Acordo de Argel, de 26 de Agosto de 1974, celebrado entre o Governo Provisório Português e o PAIGC, de reconhecimento de jure da independência da República da Guiné-Bissau e do direito à autodeterminação e independência política do povo de Cabo Verde. Como é sabido e como fase indispensável e condição prévia para o encetamento de negociações para a independência política das suas colónias, consideradas territórios não-autónomos pela ONU e que eram elencados como partes integrantes da República Portuguesa  no Acto Colonial, anexado,  como sua parte integrante, à Constituição Política Portuguesa, de 11 de Abril de 1933, nas suas versões resultantes das suas sucessivas Revisões, designadamente de 1951 e de 1972, como colónias, províncias ultramarinas e/ou regiões Autónomas  portuguesas, foi a adopção da Lei Constitucional 7/74, de 17 de Julho, que reconheceu o direito à autodeterminação e independência política dos povos de todas essa entidades coloniais sucessivamente chamadas, como acima referido, colónias e províncias ultramarinas e, desde a Revisão Constitucional de 1972, transformadas formalmente em regiões autónomas de Portugal e dotadas da denominação honorífica de Estados. 

 
2. É neste complexo e intrincado contexto que surge a proposta do principal  negociador português, o Ministro da Coordenação Interterritorial António de Almeida Santos, de promover o acesso de Cabo Verde à independência política, tal como no caso de São Tomé e Príncipe, mediante a realização de uma consulta popular que não pudesse ser confundida com um referendo de autodeterminação política e com as várias opções mutuamente excludentes dele emergentes, quais sejam i. a independência política total e imediata; ii. A integração na Metrópole colonial  como uma sua mera circunscrição administrativa; iii. A integração na Metrópole colonial como uma sua região autónoma. 

A eleição de uma Assembleia Representativa do Povo Caboverdiano, dotada de poderes soberanos e constituintes e com data marcada para a transferência de poderes com a correlativa proclamação solene da independência política de um país soberano nos planos interno e internacional, surge assim como uma solução intermédia entre a transferência pura de poderes por parte da antiga potência colonial ao movimento de libertação bi-nacional reconhecido internacionalmente  e implicitamente reconhecido como interlocutor negocial pelo Governo Provisório português que era o PAIGC e o famigerado e abstruso referendo spinolista, com o devido interregno do exercício do poder por parte de um Governo de Transição representante das duas partes negociais, como parece ter sido o caso da chamada descolonização de Moçambique, em que um Alto-Comissário representava a soberanias portuguesa e um Governo de Transição formado por Ministros indicados por Portugal e pela FRELIMO e chefiado por um Primeiro-Ministro indicado pela FRELIMO deveria conduzir o país à independência política, proclamada a 25 de Junho de 1975, no 11º aniversário da fundação da mesma Frente de Libertação de Moçambique. 
Solução, afinal, ideal e satisfatória para ambas as partes negociais e certamente encarada com inteiro  agrado e imenso júbilo pela Delegação do PAIGC, chefiada pelo Comandante Pedro Pires, e ainda integrada por Amaro da Luz e José Luís Fernandes (tendo Osvaldo Lopes da Silva também integrado a mesma Delegação), porque também antevista na profética Mensagem do Ano Novo, de 1 de Janeiro de 1973, depois estatuído como o seu Testamento Político, do considerado Pai/Fundador das Nacionalidades bissau-guineense e caboverdiana. Todavia com uma diferença de monta, pois que ao tempo que Amílcar Cabral arquitectara a proclamação unilateral da independência política do Estado da Guiné-Bissau por uma Assembleia Nacional Popular eleita e dotada de poderes soberanos e constituintes, mudando radicalmente o estatuto jurídico dessa entidade político-administrativa de uma colónia em guerra de independência/luta de libertação nacional  contra uma potência colonial para um país independente e soberano com uma parte do seu território ocupada por uma potência estrangeira agressora, e simultaneamente antevia o mesmo desfecho jurídico-constitucional para Cabo Verde para um tempo posterior relativamente próximo, mas indeterminado, o PAIGC era efectivamente o único partido-movimento de libertação binacional em luta nos dois países, se bem que assumindo essa luta modalidades substancialmente diferentes nos dois territórios africanos.  A previsão da criação de uma Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC para fazer recrudescer e ascender a luta nas ilhas sahelianas e afro-atlânticas a novos e inéditos patamares político-militares fazia antever o inevitável colapso político-militar da potência colonial tanto na Guiné-Bissau como em Cabo Verde. É nessas específicas circunstâncias  históricas que, na nossa opinião, reside a razão de a eleição da ANP da Guiné-Bissau ter sido feita num quadro monopartidário, se bem que parcialmente nuançado com a apresentação de candidatos a conselheiros regionais e, depois, a deputados nacionais oriundos da população e não integrados como membros ou dirigentes (quadros) do partido-movimento de libertação binacional. 


3. No caso de Cabo Verde ocorreram entretanto novas circunstâncias políticas, não necessariamente previstas por Amílcar Cabral na sua  célebre Mensagem do Ano Novo/Testamento Político, de 1 de Janeiro de 1973,  quais sejam a eclosão em Portugal do golpe de Estado militar do 25 de Abril de  1974, a sequente revolução anti-fascista e a reconquista das liberdades cívicas e democráticas pelo povo português e a extensão dessas liberdades cívicas e democráticas a todas as colónias/províncias ultramarinas portuguesas. Dessa conjuntura política emergiu, com acuidade e fulgor, a questão colonial e a questão nacional como as problemáticas políticas mais candentes e imediatas a resolver pelos povos  colonizados por Portugal e patentes tanto nas agendas de todos os partidos políticos caboverdianos entretanto saídos da clandestinidade política e/ou emergentes no cenário das ilhas como novos actores políticos, como também no Programa Político  do MFA, o autor do golpe de Estado do 25 de Abril de 1974, e do qual o D da Descolonização constava como um dos três Ds desse mesmo Programa Político, conjuntamente como o D de Democracia e o D de Desenvolvimento

É esse ambiente de liberdades cívicas e democráticas, real e efectivamente existente e sentida no conjunto das ilhas caboverdianas, que constitui a grande novidade em relação ao cenário antevisto por Amílcar Cabral na sua Mensagem do Ano Novo, de 1 de Janeiro de 1973/no seu Testamento Político, mas não em relação ao cenário antevisto e propugnado por ele em 1960 como devendo passar a existir como resultado político da exigência e da reivindicação do PAIGC para uma transição pacífica e negociada para a independência política da Guiné  dita Portuguesa e das ilhas de Cabo Verde. Vale a pena rememorar e relembrar que no Memorando do PAIGC ao Governo Português, de Dezembro de 1960, subscrito por pseudónimos de vários dirigentes desse mesmo movimento de libertação binacional, então clandestino, e visando uma transição pacífica e negociada da Guiné dita Portuguesa e das ilhas de Cabo Verde para a independência política, Amílcar Cabral exigiu a instauração prévia de uma ordem democrática plena com consagração das liberdades de expressão do pensamento, de imprensa, de reunião, de manifestação e de associação e dos direitos de greve, de criação de sindicatos e de partidos políticos com o único fito de os povos da Guiné dita Portuguesa e de Cabo Verde poderem efectivar o seu direito à independência política mediante a eleição por escrutínio universal, igual, directo e secreto dos seus representantes para as respectivas Câmaras de Deputados e na base de um representante para trinta mil habitantes para a Guiné dita Portuguesa e de um representante para dez mil habitantes para Cabo Verde. Depois de eleitas, essas mesmas Câmaras de Deputados teriam uma de duas opções: a) decisão pela união política dos dois  países e fusão das duas Câmaras de Deputados numa única Câmara de Deputados do Povo da Guiné e Cabo Verde com designação de um Governo comum para os dois países unificados; b) decisão pela independência separada  de cada um dos dois países com designação de um Governo para cada um dos países pelas respectivas Câmaras de Deputados. 
O cenário emergente em Cabo Verde do golpe de Estado do 25 de Abril de 1974 veio consubstanciar na prática o cenário desejado e desenhado em 1960 no Memorando do PAIGC ao Governo Português, da autoria de Amílcar Cabral, cuja liderança da luta político-armada conduzida pelo PAIGC pode, outrossim, ser considerado  como um dos factores determinantes da eclosão desse mesmo golpe de Estado, como, aliás, profusamente demonstrado no livro Amílcar Cabral e o Fim do Império-Independências da Guiné-Bissau e Cabo Verde, de António Duarte Silva. Creio que, por isso mesmo, estavam criadas todas as condições  para a aplicação do plano delineado em 1960 por Amílcar Cabral e por outros dirigentes na clandestinidade do PAIGC para a transição pacífica e negociada de Cabo Verde para a sua independência política com a participação de todos os partidos políticos presentes no cenário político caboverdiano em inícios do mês de Dezembro de 1974, tanto mais que dois deles, o PAIGC e a UPICV, tinham sido fundados há já vários anos, nos tempos da clandestinidade política e do exílio, e eram ferreamente nacionalistas e independendistas, se bem que com pressupostos, alinhamentos e configurações político-ideológicos diferentes. Não estando, nem podendo estar em causa a independência política de Cabo Verde, mas somente a sua calendarização bem como a calendarização do processo eleitoral para a constituição da Assembleia Representativa do Povo Caboverdiano, devidamente dotada de poderes soberanos e constituintes, a UDC poderia ser também admitida a participar no mesmo processo eleitoral se, finalmente, se decidisse a pronunciar-se clara e inequivocamente pela independência total e imediata de Cabo Verde, como, aliás, verificado com a relativa evolução do pensamento político de Henrique Teixeira de Sousa, e não por uma independência faseada num longo tempo de preparação com eventual estágio como região  autónoma de Portugal. A questão da unidade Guiné-Cabo Verde podia estar também na ordem do dia, todavia não como uma questão sujeita a um referendo prévio à obtenção da independência política de Cabo Verde, como desastrosamente vinha propugnando José André Leitão da Graça e a sua UPICV, mas como uma questão  a ser resolvida no período pós-colonial pela Assembleia Representativa do Povo Caboverdiano (desejavelmente renomeada e baptizada como Assembleia Nacional Popular, conforme exarado e profetizado no Testamento Político de Amílcar Cabral), na sequência da decisão favorável à unidade Guiné-Cabo Verde tomada pela Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau, ao tempo unilateralmente proclamada e reconhecida de jure por Portugal  que, aliás, viria a patrocinar a sua entrada como Estado independente e soberano  na Assembleia Geral da ONU, como nos elucida António Duarte Silva, no seu mais recente livro acima referido. Atente-se que o Acordo de Alvor, celebrado, em inícios de  Janeiro de 1975, pelo Governo Provisório Português e pelos três Movimentos de Libertação Nacional angolanos, viria consagrar  a transição de Angola para a independência política em regime de pluralismo político-partidário, embora limitado aos partidos internacionalmente reconhecidos como movimentos político-armados de libertação nacional, designadamente à FNLA, ao MPLA, e, já depois do 25 de Abril de 1974, à UNITA, mediante a realização de eleições por sufrágio livre, universal, igual e secreto para a constituição de uma Assembleia Representativa do Povo Angolano, dotada de poderes soberanos e constituintes.
Infelizmente, o consenso na altura formado no seio do PAIGC e sufragado por todas as suas correntes político-ideológicas, tanto na Guiné-Bissau como no seu ramo nacional caboverdiano, designadamente pelas facções nacionalista e democrático-revolucionária (vinda das duas Guinés), trotskista, maoista, estalinista, marxista-leninista, luxemburguista e outras (vindas de Portugal e emergentes da clandestinidade política em Cabo Verde, quiçá com excepção da corrente nacionalista moderada, representada por Manuel (Lela) Rodrigues), no sentido da instauração de um regime político de partido único socializante em Cabo Verde ou, de um outro modo, de uma modalidade mais ou menos esquerdizante de autoritarismo revolucionário, era tão forte e firme  que ninguém parece ter-se lembrado de aplicar o Memorando de Dezembro de 1960 dirigido pelo PAIGC ao Governo português e da autoria de Amílcar Cabral. É esse mesmo consenso de teor autoritário e revolucionário que levou não só à prematura instauração do regime político de partido único em Cabo Verde, já em meados de Dezembro de 1974, com os auspícios do MFA-Cabo Verde e do seu auxiliar, a Polícia Judiciária Militar, devidamente assessorada  pelo jurista caboverdiano e futuro opositor ao mesmo regime político de partido único socializante que ajudou a edificar, António Caldeira Marques, mas também à expurgação de quaisquer laivos competitivos e pretensões concorrenciais às listas eleitorais apresentadas pelos grupos de cidadãos independentes, tal como proposto por António de Almeida Santos, Ministro da Coordenação Interterritorial e principal negociador português com o caboverdiano Pedro Pires dos Acordos de Lisboa de Dezembro de 1974. 
Realce-se neste concreto contexto que, segundo esclarece o estudioso e jurista António Duarte Silva no seu muito informado e fundamentado livro Amílcar Cabral e o Fim do Império-Independências da Guiné-Bissau e Cabo Verde, os chamados Acordos de Lisboa para a independência política de Cabo Verde abrangeram dois instrumentos jurídicos de diferente natureza:

a) o Estatuto Orgânico do Estado de Cabo Verde, Lei Orgânica de natureza juridico-constitucional, previamente discutida com os negociadores do PAIGC, aprovada pelas entidades competentes portuguesas (designadamente pelo Governo Provisório, pelo Conselho de Estado e pelo Presidente da República) e devida e regularmente publicada no jornal oficial da República Portuguesa, a 17 de Dezembro de 1974, bem como no Boletim Oficial de Cabo Verde;

b) o Acordo de Lisboa, de natureza jurídico-internacional, negociado pelo Governo Provisório Português e pelo PAIGC,  mas que permaneceu no estádio de mero Protocolo porque nunca foi publicado no jornal oficial da República Portuguesa  e no Boletim Oficial de Cabo Verde, se bem que tivesse sido ratificado pelo Presidente da República Portuguesa e confirmado e aprovado pelo Secretário-Geral do PAIGC, e largamente difundido nos órgãos de comunicação social portugueses e caboverdianos, incluindo no Novo Jornal de Cabo Verde. A esses instrumentos jurídicos, deve-se acrescentar um terceiro, qual seja a Lei Eleitoral (Decreto-Lei nº 203-A/75, de 15 de Abril de 1975), aprovada e posta em vigor pelas autoridades políticas competentes portuguesas para regular a eleição, a 30 de Junho de 1975, de uma Assembleia Representiva do Povo Cabo-Verdiano, dotada de  poderes soberanos e constituintes, mandatada para ser a interlocutora caboverdiana das autoridades portuguesas na transferência dos poderes de soberania da República Portuguesa para o Estado de Cabo Verde, proclamar a independência política desse mesmo Estado de Cabo Verde, a 5 de Julho de 1975, e aprovar a primeira Constituição Política de Cabo Verde no prazo de três meses a partir da proclamação da sua independência política, tal como também previsto no Estatuto Orgânico do Estado de Cabo Verde, de 17 de Dezembro de 1974, mas não no Acordo de Lisboa, de 19 de Dezembro de 1974.


4. As eleições de 30 de Junho de 1975 tiveram uma elevada participação com  92% de votos sim, isto é,  favoráveis aos candidatos apresentados nas listas dos grupos de trezentos cidadãos eleitores, em conformidade com o preceituado na Lei Eleitoral, de 15 de Abril de 1975 (Decreto-Lei nº 203-A/75), aprovada e posta em vigor pela autoridades soberanas portuguesas. Na verdade, esses  grupos de trezentos cidadãos eleitores foram inteiramente constituídos pelo PAIGC e/ou foram totalmente controlados pelo mesmo partido/movimento de libertação binacional, contrariando assim o disposto no Preâmbulo da mesma Lei Eleitoral, no qual se proclamava literalmente o seguinte: “As soluções encontradas asseguram o livre jogo democrático das possíveis correntes de opinião existentes na comunidade cabo-verdiana, numa base de absoluta igualdade de oportunidades e de tratamento. Simples emanação, afinal, da ideia matriz do nosso processo de descolonização, ou seja a do respeito pela vontade da maioria das populações interessadas”. Por isso, e porque destituídas da competitividade entre programas políticos apresentados por candidatos representativos de diferentes forças políticas, as mesmas eleições afiguraram-se como de natureza eminentemente referendária ou plebiscitária. Na verdade, elas vieram ratificar os lamentáveis acontecimentos de 14,15 e 16 de Dezembro de 1974 que, como já referido, levaram à neutralização dos adversários políticos do PAIGC e à sua exclusão/expulsão do campo político-social caboverdiano, consagrando a um tempo i. o regime político de partido único do PAIGC; ii. o carácter socializante desse mesmo regime político e iii. o princípio cabralista  e o projecto paigcista de unidade Guiné-Cabo Verde e de união orgânica pós-colonial entre as Repúblicas da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. É, assim, que a recém-eleita Assembleia Representativa do Povo Caboverdiano, soberana e constituinte, devidamente transfigurada em Assembleia Nacional Popular (ANP),  aprovou uma LOPE (Lei da Organização Política do Estado), até ser adoptada a primeira Constituição Política da República de Cabo Verde, de cuja elaboração no prazo de três meses foi encarregada uma Comissão de seis deputados presidida pelo Presidente da ANP; elegeu o Presidente da Assembleia Nacional Popular, o Presidente da República (todos propostos pelo PAIGC) e o Primeiro-Ministro, proposto pelo Presidente da República eleito pela ANP; procedeu, a 5 de Julho de 1975 e pela voz do Presidente da Assembleia Nacional Popular, à proclamação solene da independência política e da soberania nacional e internacional do Estado de Cabo Verde, como República de Cabo Verde, cujo texto tinha sido previamente aprovado pela ANP, na sua reunião constitutiva da tarde de 4 de Julho de 1975, parecendo assim dar-se sequência aos trâmites todos previstos no Estatuto Orgânico do Estado de Cabo Verde, no Acordo de Lisboa celebrado entre o Governo Provisório Português e o PAIGC bem como no Decreto-Lei nº 203-A/75 (Lei Eleitoral, de 15 de  Abril de 1975), acima referenciado.
Anote-se neste contexto que Pedro Pires fora o putativo candidato à Presidência da República de Cabo Verde, conforme proposta da Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC apresentada à Reunião Alargada, de 24 e 25 de Junho de 1975, do CEL (Comité Executivo da Luta) do PAIGC, partindo do pressuposto que o Secretário-Geral do Partido, Aristides Pereira, viria assumir num futuro próximo, e nos termos do ante-projecto de Constituição Política da República Unida da Guiné e Cabo Verde, presumivelmente elaborado por José Araújo e apresentado à mesma Reunião Alargada do CEL, acima referida, a Presidência dessa  eventual República Unida da Guiné e Cabo Verde. Como  relatado no livro Cabo Verde - Os Bastidores da Independência, de José Vicente Lopes, à pretensão de Pedro Pires opôs-se de forma veemente o Secretário-Geral Adjunto do PAIGC e Presidente do Conselho de Estado (equiparado a Presidente da República) da Guiné-Bissau, Luís Cabral, que teria alegado não querer ver colocado como Presidente da República de Cabo Verde e, por isso, num cargo equivalente ao de Presidente do órgão de Chefia Colectiva  da República da Guiné-Bissau um responsável político, que, sendo indubitavelmente um alto e prestigiado dirigente supra-nacional do PAIGC, não era todavia  uma das seis individualidades consideradas fundadoras oficiais do PAIGC. A candidatura de Pedro Pires ao cargo de Presidente da República de Cabo Verde, apresentada, como já referido, pela Comissão Nacional do ramo caboverdiano do PAIGC, foi liminarmente rejeitado nessa mesma Reunião Alargada de 24 e 25 de Junho de 1975 do Comité Executivo da Luta (CEL) do PAIGC, que, em seu lugar e omitindo de todo esse relevante facto político, emitiu uma Declaração instando os povos irmãos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde a aprofundar a sua unidade e luta, princípio comprovado na praxis da luta como por demais justo, pertinente, produtivo e eficaz  e de que, aliás, resultara a proclamação da República da Guiné-Bissau e a brevíssimo trecho faria desabrochar a República de Cabo Verde e exortando a Direcção Superior do PAIGC a prosseguir no período pós-colonial nos caminhos fecundos da concretização prática do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e, em consequência, da construção da união orgânica/da associação política entre os dois Estados independentes e soberanos, mediante a criação de uma Comissão junto da futura Assembleia Nacional Popular (ANP) de Cabo Verde que, conjuntamente com a sua congénere da República irmã da Guiné-Bissau, também integraria um Conselho de Unidade adstrito às Assembleias Nacionais Populares da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, se encarregaria da elaboração de uma Constituição de Associação das Repúblicas irmãs, soberanas e independentes da Guiné-Bissau e de Cabo Verde e, assim, conduziria indirectamente à convocação da Assembleia Suprema do Povo da Guiné e Cabo Verde, tal como previsto na Mensagem do Ano Novo de 1 de Janeiro 1973/no Testamento Político do proclamado Militante Número Um e Líder Imortal do PAIGC, o  mitificado e sacralizado Camarada Amílcar Cabral, desde “o seu traiçoeiro e bárbaro assassinato em Conacri, a 20 de Janeiro de 1973, por agentes infiltrados no PAIGC a serviço do colonial-fascismo português”, como reiterado pelo discurso oficial do PAIGC e pelos círculos políticos, intelectuais, jornalísticos e diplomáticos afectos ao mesmo. 


5. Os nacionalistas pan-africanistas caboverdianos sempre argumentaram que, sem a participação caboverdiana na luta político-armada na Guiné dita Portuguesa/na Guiné-Bissau não teria sido possível (ou teria sido extremamente difícil) fazer vingar junto das autoridades políticas portuguesas o direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e à independência política, negado ou relativizado por aqueles caboverdianos que ainda navegavam nas águas pantanosas quer de “uma autonomia político-administrativa no quadro de uma Nação portuguesa doravante progressista”, como defendeu, em Junho de 1974, o médico e escritor anti-fascista Henrique Teixeira de Sousa (curiosamente, num aparente mimetismo do  regionalismo político-cultural nativista, diga-se que assaz avançado no seu contexto epocal e histórico), tendo sido ambas as propostas acima referidas sido comummente consideradas como modelos apressados e oportunistas de reciclagem do mal-fadado adjacentismo colonial. Anote-se neste contexto que, contrariamente ao que temos defendido até agora em outros textos da nossa autoria sobre a mesma problemática, Mário Silva veio esclarecer, no seu muito informado, documentado e exaustivo livro intitulado Contributo para a História Político-Constitucional de Cabo Verde-1974-1992, que houve uma pequena evolução no pensamento político de Henrique Teixeira de Sousa em relação ao que o mesmo letrado neo-claridoso defendera em Junho de 1974 no seu opúsculo Cabo Verde e o seu Destino Político. Com efeito, esclarece o livro de Mário Silva acabado de referir que, em artigo publicado no mês de Outubro de 1974, no Novo Jornal de Cabo Verde, o conhecido e prestigiado médico e intelectual foguense teria constatado que a solução ideal por ele almejada, isto é, uma independência política de Cabo Verde sob protecção da ONU, organização mundial que garantiria a neutralidade do arquipélago atlântico face aos alegados apetites geopolíticos e geo-estratégicos dos dois grandes blocos militares mundiais, designadamente a NATO e o Pacto de Varsóvia, liderados respectivamente pelos Estados Unidos da América e pela União Soviética, já não teria pernas para andar em face da indisponibilidade demonstrada pela mesma ONU, pelo que a solução de recurso já não seria a opção de Cabo Verde em ser uma região autónoma de Portugal, mas a sua opção por uma independência política com assistência e ajuda de  Portugal, a antiga potência colonial, mas excluindo qualquer modalidade de associação política com a República da Guiné-Bissau. Essa solução de recurso, que passou a ser da clara preferência de Henrique Teixeira de Sousa, deveria todavia ser precedida de um referendo ao povo de Cabo Verde, não sobre o seu direito à autodeterminação e independência política, doravante considerado de todo em todo inquestionável, mas sobre a unidade com a Guiné-Bissau e, assim, sobre “a unidade dos caboverdianos com fulas, manjacos, papéis, mandingas, etc.” e/ou, em alternativa, sobre uma independência política ligada a Portugal e, assim, sobre “a ligação dos caboverdianos aos portugueses, mas agora sem qualquer canga colonial”. Fica, pois, feita, aqui e agora, a devida correcção sobre a relativamente importante evolução do pensamento  de Henrique Teixeira de Sousa sobre o futuro político de Cabo Verde. 


QUARTA PARTE 

O 5 de Julho de 1975 ou Julho, nosso ourgulho, segundo a muito feliz expressão do poeta Oswaldo Osório

Apesar da persistência da seca severa, iniciada em 1968 em toda a zona do Sahel, vindo a assumir depois, pelo menos na sua parte insular caboverdiana, laivos de uma verdadeira catástrofe ecológica, a independência política de Cabo Verde ocorreria, em condições assaz favoráveis, na medida em que foi possível chegar-se a dois objectivos cruciais: 

a) A obtenção de uma ampla adesão popular para a causa da independência política, sobretudo entre as camadas jovens e urbanizadas, os intelectuais, o funcionalismo público, o operariado, os empregados comerciais, os proprietários de pequenas oficinas urbanas e suburbanas, os camponeses pobres e sem terra, os pequenos proprietários agrícolas (denominada pequena burguesia camponesa), uma parte dos grandes e médios proprietários fundiários, uma parte do clero católico e protestante caboverdiano e uma parte  dos comerciantes e dos empresários (a chamada pequena-burguesia comercial e industrial). Para esse efeito, foram decisivas tanto a catarse cultural no sentido da reafricanização dos espíritos propugnada por Amílcar Cabral, isto é, da libertação da plenitude da identidade caboverdiana e da recuperação da dimensão afro-crioula, da co-matriz afro-negra e da margem continental africana da mesma identidade como também a euforia e a confiança no futuro da nossa terra despoletadas com as lutas políticas no pós-25 de Abril de 1974. 
Tais estados anímicos foram potenciados, em grande medida, pela participação caboverdiana não só na guerra de libertação (bi)nacional levada a cabo com inegável sucesso no território da Guiné dita Portuguesa/da Guiné-Bissau como também na saga heróica da luta anti-colonial realizada nas difíceis condições da clandestinidade política nas nossas ilhas, na Metrópole colonial e nas demais colónoias/províncias ultramarinas portuguesas, tornada por demais visível na libertação dos presos políticos do campo de concentração de Chão Bom do Tarrafal de Santiago, logo no Primeiro de Maio de 1974, no regresso dos presos políticos do Campo de Concentração de S. Nicolau, localizado na Foz do Cunene, no  deserto de Moçâmedes (actual Namibe), no regresso triunfal e apoteótico daqueles militantes, combatentes, responsáveis e dirigentes caboverdianos directamente engajados na luta político-armada na Guiné dita Portuguesa/na Guiné-Bissau e/ou comprometidos na luta político-diplomática do PAIGC irradiada pelo mundo fora a partir da República da Guiné (Guiné-Conacri), tendo sido de transcendente importância a mitificação de Amílcar Cabral, quer como um profeta e sábio, tal um Moisés negro, que não pôde pisar a Terra Prometida, quer ainda como um Messias negro e combatente, ademais  martirizado e sacrificado com a doação da própria vida, tal um Jesus Cristo afro-crioulo. 
Esses acontecimentos demonstraram-se como sumamente necessários para uma catarse psicológico-cultural de amplas repercussões identitárias e político-ideológicas e, assim, para a total ruptura com o assimilacionismo colonial e a tutela assistencial portuguesa, considerada até aí, tanto em franjas extensas das camadas mais pobres e vulneráveis das populações, como também por importantes sectores das elites letradas, burocrático-administrativas, comerciais e fundiárias do povo das ilhas, como indispensável, senão insubstituível, para a viabilização da emigração caboverdiana para Portugal, para a manutenção dos planos de fomento e dos trabalhos públicos de fornecimento de empregos e salários míseros e precários às populações (vulgarmente conhecidos como trabalhos de estrada e/ou trabalhos de apoio), para o fornecimento num quadro suficientemente estável de uma ampla gama de géneros, de mercadorias e de produtos comerciais e, assim, para a garantia da simples sobrevivência física das camadas sociais mais humildes e vulneráveis do povo caboverdiano e para a manutenção do nível de vida a que se habituaram as camadas sociais mais remediadas e  abastadas das nossas ilhas.  
b) A captação de recursos, de diversos quadrantes político-ideológicos, necessários, senão indispensáveis, para a viabilização do jovem Estado nacional independente e soberano, para a sobrevivência do seu povo, acossado e apavorado, ou pelo menos, receoso, pela ameaça sempre latente das fomes, bem como para a criação e potenciação de força anímica com vista à prossecução do futuro desenvolvimento sustentado do país.

 
Nota do autor: Constitui o presente texto excertos de um capítulo do livro AMÍLCAR CABRAL-O MAIOR MAIOR IMORTAL DOS POVOS DE CABO VERDE E DA GUINÉ-BISSAU, a ser publicado brevemente.

por José Luís Hopffer Almada
Vou lá visitar | 22 Dezembro 2024 | Amílcar Cabral, Cabo Verde, Independência, política