Cabo Verde- Orfandade identitária e alegada (im) pertinência de uma poesia de negritude crioula (I)
Discursos da crioulitude e síndromas de orfandade identitária
Não obstante a origem colonial-escravocrata da sociedade crioula sedimentada nas ilhas, a grande predominância das componentes étnico-raciais negra e “negro-mestiçada” na composição do povo caboverdiano, a natureza racista da dominação colonial (de qualquer dominação colonial, mesmo quando o racismo, como forma de heterofobia em relação ao colonizado, se actualize, essencialmente, no campo cultural e se exprima fundamentalmente como racismo cultural) e as correlativas desvalorização simbólica e repressão histórica das manifestações culturais de matriz afro-negra e da componente negra da cultura da crioulidade caboverdiana, escassos são os traços de africanidade e de negritude na poesia caboverdiana da época anterior à Nova Largada.
A que se deve o (aparente) paradoxo? Será porque a Negritude, tanto nas suas dimensões teóricas césaireana e senghoriana de resgate dos valores das civilizações negro-africanas e/ou de matriz afro-negra, e da dignidade do homem negro (negro-africano e afrodescendente), como na sua feição de obra literária e cultural, foi um fenómeno sobretudo francófono (tal como a teoria da African Personality foi sobretudo afro-anglófona), ainda que dinamizadas na Europa e nas diásporas crioulas e negro-africanas por intelectuais originários da África Negra e das Antilhas? Estará o facto ligado ao alegado fenómeno, muito disseminado entre os estudiosos da cultura caboverdiana, que se sustenta na argumentação segundo a qual, tendo embora em comum a preocupação de retorno cultural às raízes e a valorização cívico-cultural dos seres humanos, seus compatrícios, fundar-se-iam as démarches identitárias do movimento da Negritude e do movimento claridoso em contextos histórico-sociológicos distintos, de retorno às fontes tradicionais, ainda intactas, da civilização negro-africana, ou de revalorização das sobrevivências da sua herança, no caso da Negritude, de “fincar os pés no chão” das raízes crioulas, no caso da “Claridade”? A esta perspectiva poder-se-ia contrapor, desde logo, a crioulidade do país de origem e de uma das componentes identitárias de dois dos mais importantes arautos da Negritude, Aimé Césaire e Léon Damas, e a comum cultura escolar “greco-latina” tanto dos fundadores da Negritude como da “Claridade”, para além do seu comum estado, de “marginalidade” e mal-estar culturais, adveniente do seu estatuto de letrados num contexto de sujeição a um colonialismo de feição assumidamente assimilacionista. Tal argumentação foi considerada como, de todo em todo, inadequada, tanto por Baltasar Lopes da Silva (“Notas sobre a linguagem das ilhas”, “Claridade”, nºs 1 e 2, “Uma experiência românica nos trópicos”, “Claridade”, nos 4 e 5; Cabo Verde visto por Gilberto Freyre, Imprensa Nacional, Praia, 1956) e Gabriel Mariano (“Cabo-Verdianidade e Negritude”, Boletim Cabo Verde, Praia, 1958, “Do funco ao sobrado ou o mundo que o mulato criou”, “A mestiçagem: seu papel na formação da sociedade caboverdiana”), como pelos seus actuais intérpretes luso-tropicaslistas, com destaque para o Onésimo Silveira de vários ensaios (“uma aventura política nos trópicos”, “Cabo Verde:auto de criação colonial”, “O nativismo caboverdiano: o caso Amílcar Cabral”) do livro A Democracia em Cabo Verde (Edições Colibri, Lisboa, 2005).
Para os claridosos, o retorno às raízes teria sido encarado na perspectiva da valorização da crioulidade, enquanto produto identitário comum a toda as ilhas e resultado acabado da evolução social e cultural do arquipélago caboverdiano, que teria caminhado irreversivelmente para a diluição da herança cultural afro-negra, reduzida, em algumas ilhas sociológicas, como o interior de Santiago, e “talvez o Fogo”, “a pobres resquícios e sobrevivências”, condenados a desaparecer, e a “aceitação” (assimilação) da cultura europeia dominante, considerada a etapa mais avançada dos processos aculturativos resultantes do contacto entre povos europeus (“mais avançados”) e afro-negros (“mais atrasados”). A crioulidade, enquanto base identitária e “comum lastro” da unidade psicológica e social dos caboverdianos, seria, por sua vez, considerada como corolário da ascensão e da aristocratização sociais e culturais do negro e do mulato e da consequente democracia social, cultural e racial reinante num mundo luso-tropical, de cuja estruturação o crioulo caboverdiano teria sido incontestavelmente o mestre e no qual os preconceitos rácicos e as formas de categorização racial teriam sido expulsos ou ressemantizados por formas de categorização estritamente sociais, como intentam teorizar Baltasar Lopes da Silva, Gabriel Mariano e seus actuais seguidores, e alguns oponentes, pós-coloniais.
A acrescer, Cabo Verde caracterizar-se-ia, segundo Gabriel Mariano, pela pouca consistência dos vínculos coloniais, pelo abandono administrativo dos caboverdianos à sua sorte madrasta e pela insignificância da presença branca que, na sequência da prematura desagregação da sociedade escravocrata e do povoamento das ilhas de ocupação humana menos antiga essencialmente por negros e mulatos já aculturados e em regime de minifúndio, se tornou quase inócua. As secas e a pobreza proverbial da terra, então chamada “arquipélago da fome”, teriam, por outro lado, inviabilizado a implantação da economia capitalista de plantação, característica de outros territórios tropicais emergentes do latifúndio e da economia escravocrata, como o Brasil e as ilhas de S.Tomé e Príncipe e das Antilhas, e, assim, impedido a consolidação do poder económico-cultural de uma minoria branca, ainda fosse crioula. Mesmo na ilha do Fogo, o derradeiro santuário racista da classe possidente branca crioula, a ascensão social e cultural do negro e do mulato teria levado aos fenómenos sociológicos, acima referidos, de ascensão e aristocratização sociais e culturais do “homem de cor”, comuns ao conjunto arquipelágico caboverdiano. Cabo Verde seria, assim, em contraposição ao “mundo que o português criou”, “o mundo que o mulato criou” (depois rectificado para “o mundo que o caboverdiano (o crioulo ou o mestiço cultural) criou”). Nesta óptica, o branco, o negro e o mulato caboverdianos, libertos de preconceitos rácicos e angústias identitárias, perspectivariam como comuns as suas atribulações e sentir-se-iam igualmente responsáveis pelo destino do arquipélago, que se engendrou, por si próprio, como “arquipélago e continente culturais”, uno e diverso, nas suas matrizes culturais e formas de actualização civilizacional, e, como “nação”que, sócio-culturalmente, se potenciou, como “um tiro que saiu pela culatra do colonialismo”.
É, pois, nessa peculiaridade histórico-cultural de Cabo Verde que residiria a especificidade do movimento claridoso, por contraste com outros movimentos culturais africanistas, afro-crioulistas e/ou negristas de “retorno às fontes”. Tal ponto de vista tinha sido aflorado por Gabriel Mariano no texto “Negritude e Caboverdianidade” (Boletim Cabo Verde, no 104, Maio de 1958), no qual, sem aprofundar muito mais a questão, deixa entender que o caboverdiano não deveria ser cultural e identitariamente espartilhado e “rotulado” pelo entendimento dicotómico e excludente de “português ou africano”, ou de “portugalidade ou negritude”, na medida em que se tratava fundamentalmente de uma cultura mestiça, que, como explicaria em textos posteriores, era auto-suficiente e resultou das vicissitudes das culturas afro-negras transplantadas para o arquipélago e postas em contacto com a cultura portuguesa, também importada (como diz Manuel Duarte, cujo estudo é elogiado, na sua profundidade pioneira, por Gabriel Mariano). No mesmo texto, Gabriel Mariano deixa entender a inadequação do conceito de Negritude para explicar o caso caboverdiano, ao mesmo tempo que denota abertura para uma compreensão lata e diversificada da africanidade, na medida em que a Negritude é entendida como uma das suas formas, a negra ou afro-negra, de existência.
Para Manuel Ferreira (“Cabo Verde ou a originalidade crioula”, in No Reino de Caliban, Seara Nova, Lisboa, 1975) é “original o facto de, através quer da sua poesia, quer da sua ficção, não ficarmos a conhecer a cor das suas personagens, o que positivamente não acontece com os modernos escritores brasileiros, com os angolanos, ou moçambicanos ou santomenses, para não irmos às áreas francófonas ou anglófonas, espelhando a ausência de complexo de cor”. Conclui o reputado estudioso da cultura caboverdiana: “De tudo isso releva não podermos inscrever a poesia caboverdiana nos tradicionais quadros da africanidade ou, mais objectivamente, da negritude. Com efeito, Cabo Verde de há muito vem procurando, por entre ajustamentos e reajustamentos, o caminho da sua integral personalidade e não sendo um todo europeu também não é um todo africano, nem tão pouco, o ajustamento de duas culturas. E isto pela simples razão de há séculos ter sido cerceado o cordão umbilical com a África e os grandes fluxos humanos e culturais terem vindo a orientar-se particularmente para a Europa, sem que isto signifique da nossa parte a minimização das suas raízes africanas, que intervieram e resistem e persistem na génese da mestiçagem”.
É o próprio Manuel Duarte, insuspeito quanto às suas convicções anticoloniais e à sua reafirmada opção pelo maior regionalismo africano, do que europeu, de Cabo Verde, que escreve:” Nas ilhas, o mestiço, o preto e o branco (na sua maioria, luso-descendente mais ou menos puro) confraternizam quer nos lugares públicos, quer particularmente no ambiente familiar”, para mais adiante, constatar:” Dum modo geral, não se topa, entre a gente caboverdiana, qualquer manifestação de conflito racial; posso mesmo asseverar que o ilhéu ignora o problema racial, que vem dificultando e desumanizando as relações entre o branco e o indivíduo de cor, nos Estados Unidos, na União Sul-Africana. O caso cabo-verdiano tem, enquanto reverso e aspecto negativo, uma explicação económica e histórico-social, que não se identifica com a apregoada excelência de quaisquer métodos de civilização. Seja como for positivamente, demos graças a Deus” (Cabo-Verdianidade e Africanidade, e outros Textos, Spleen-Edições, Praia, 1998).
Para este pioneiro e mentor intelectual do nacionalismo cabo-verdiano, o problema põe-se a um outro nível, designadamente da obliteração da componente africana da identidade e da situação cabo-verdianas. Escreve o ilustre pensador:” Isto”, quer dizer, a ausência de conflitos rácicos em Cabo Verde, “porém, não basta como condição de autêntico progresso. Subsiste, efectivamente, no espírito de muito cabo-verdiano de cor - não só o instruído, como também o culto - o complexo da raça e da Cultura (em sentido antropológico), o recalcamento social e individual do que nele existe de negro-africano”. Pugnando pela identificação do cabo-verdiano letrado com a “Cultura específica e definidora do agrupamento humano”, de que é originário, na diversidade e riqueza das expressões, que ele, aliás, elenca exaustiva, inclusiva e pan-insularmente, defende o ensaísta”.
No caso concreto de Cabo Verde, não pode a identificação, acima referida, “enquanto ascensão da cultura ao nível da consciência reflectida e crítica, ao sentido coerente da necessidade de uma nítida posição político-social”, processar-se “num sentido exclusivamente europaizante, sob pena de despersonalização, de negação da parcial herança negro-africana, que igualmente integra a nossa realidade social e psicológica”. Conclui o analista: ” Nós, os cabo-verdianos, estamos étnica e historicamente ligados tanto à África como à Europa, acrescendo sobremaneira no sentido da africanidade, a situação geográfica, o condicionamento climatérico, a predominância da corrente migratória negra no povoamento das ilhas, originariamente desertas; em suma, o fenómeno colonial e suas necessárias implicações…”. Num outro texto, “Cabo-Verde e a Revolução Africana”, datado de Setembro de 1962, assinado pelo pseudónimo A. Punói e inserido no volume póstumo Cabo-Verdianidade e Africanidade, e outros Textos, Manuel Duarte procede, pela via do panfleto clandestino, aliás, de excelente recorte estilístico no quadro do discurso político, à denúncia global do estado das coisas em Cabo Verde, tendo, especialmente, em vista o reformismo colonial de Adriano Moreira, então Ministro do Ultramar. Nesse âmbito, ele denuncia “o vexame das discriminações raciais”, que inferiorizava “o Povo das Ilhas” em relação aos metropolitanos, colocados em Cabo Verde, e “cuja capacidade profissional consiste em sua condição de europeu e na brancura da sua pele”. Na mesma linha, ele opõe-se aos órgãos do poder colonial, considerados ilegítimos porque não escolhidos pelos cabo-verdianos e porque visavam unicamente a defesa “dos interesses da sua classe de grandes comerciantes e proprietários de terras, europeus ou europeizados”, invectiva a perseguição “dos usos e costumes que nos foram legados pelos nossos antepassados de origem negra, a pretexto de imoralidade pelos sacerdotes católicos, a pretexto de barbarismos espezinhados pelas autoridades coloniais, escarnecidos pela classe europeia dominante, renegados por mestiços trespassados dramaticamente pelo punhal da inautenticidade colonial”, desmonta a escola colonial como tendo como único objectivo a inculcação de realidades europeias, desfasadas, senão completamente estranhas à realidade geográfica, social e cultural de Cabo Verde, reivindica a mudança de estatuto, em “todos os momentos da nossa vida de relação (família, escola, comércio económico e social, vida pública)”, da língua materna caboverdiana, como a língua em que são veiculadas as manifestações culturais cabo-verdianas e “se reflecte a alma do nosso povo, sofredor e heróico, como numa lagoa de água límpida e transparente”. Deste modo é denunciado todo o sistema da dominação colonial, inclusive as componentes culturalistas e aquelas outras que punham em confronto “o Povo das Ilhas”, maioritariamente de origem afro-negra (negro ou mulato), e o estrangeiro dominador, europeu e branco, e seus aliados autóctones “europeizados” (leia-se assimilados) ou “descorados”, presume-se, destituídos de autoconsciência étnico-racial. À semelhança de Amílcar Cabral, Manuel Duarte opõe, assim, a “nação-classe” caboverdiana dominada, fenotipicamente diversificada mas maioritariamente “de cor”, à “classe colonial”, dominante, estrangeira ou intermediada por “nativos estrangeirados”.
Não há, assim, um “ombro a ombro” pacificamente mediado pelas elites crioulas, supostamente de posse de todos os mecanismos institucionais e económicos da sociedade colonial, como se vangloriavam alguns claridosos, mas a convivência conflituosa entre a cultura nacional e a cultura colonial, mesmo quando veiculada pelas elites cabo-verdianas. Veiculação tanto mais premente e necessária na ausência de uma classe colonial, quantitativamente substancial, mas privilegiada a todos os níveis. Deste ponto de vista, não é, pois, de todo irrelevante a problemática racial. Ela adquire outro peso e outra significação, no quadro da análise da natureza racista (mesmo que reduzido ao plano da heterofobia cultural anti-africana) de qualquer colonialismo europeu e dos fundamentos, paralelos à ampla assimilação cultural, da ressemantização das expressões de categorização racial para formas de categorização social. Nesta óptica, várias podem ser as razões da rarefacção da cor na literatura claridosa (melhor seria dizer na ficção dos claridosos-fundadores), que não na literatura caboverdiana, a menor das quais seria o deliberado esquecimento do português, pela (quase) exclusividade do multifacético protagonismo do homem cabo-verdiano ou pela ocultação do rosto físico do dominador estrangeiro.
Curioso de todo o modo é a frequente emergência da categoria cor precisamente nalguma prosa de ficção de Manuel Ferreira, mormente quando o protagonista cabo-verdiano se confronta com o outro, na sua faceta de branco colonial, em Cabo Verde, ou de branco, negro-africano ou simplesmente de não-cabo-verdiano, no estrangeiro, nomeadamente em Luanda ou Lisboa. Por outro lado, os exemplos que adiante carreamos, bem assim a obra ficcional de Teixeira de Sousa, por exemplo, vieram comprovar a ausência de bases sólidas para a generalização de situações que podiam ser, no máximo, típicas somente de algumas “ilhas sociológicas”.
Referindo-se a determinados “critérios extraliterários” de reacção negativa à literatura claridosa, veiculados, supõe-se, na Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana, designadamente o seu “acusado alheamento africano” e, “como corolário”, um “barlaventismo de temas e espaço com esquecimnento da ilha de Santiago, a mais populosa e a mais culturalmente próxima do continente africano”, intenta replicar Arnaldo França (“O nascimento e reconhecimento de uma literatura em prosa”, in Cabo Verde- Insularidade e Literatura (bilingue), coordenação de Manuel Veiga, Editions Karthala, Paris, 1998): “o alheamento africano, que não leva em conta o carácter compósito do continente, devia ser no viver quotidiano das gentes e naquilo que então representasse um falseamento da realidade pelo autor-textual, nunca pelo propósito do voluntarismo que respondesse às necessidades de luta pela emancipação, que se começava a viver. O chamado barlaventismo, como alienação da sociedade caboverdiana, não levava em conta a formação de “arquipélago cultural” dentro de um espaço nacional e que, na década de trinta, o meio urbano mindelense oferecia condições forçosamente mais viáveis em termos de quantidade e qualidade.
Nada espelha melhor esta situação que o facto de, por razões que agora não discutiremos, ter sido na cidade da Praia de Santiago que as primeiras manifestações de adesão ao modernismo se manifestaram, mas sem concretização. A projectada revista Atlanta, na Praia se anunciou, mas foi no Mindelo que a vanguarda literária triunfou com a Claridade”. Concordamos plenamente com o autor de que a (eventual negro-) africanidade (ou mais apropriadamente, a afro-crioulidade) da cultura e da sociedade cabo-verdianas deve ser procurada nas próprias vivências e expressões culturais das criaturas cabo-verdianas, sob pena, agora sim, de inautenticidade. Somos, outrossim, do parecer de que não pode a africanidade geográfica e as opções de africanidade geopolítica ser confundidas com africanidade ou afro-crioulidade cultural, mesmo se inter-influenciáveis. Subscrevemos, assim, a opinião, de que o alegado barlaventismo de alguns ficcionistas claridosos-fundadores não deve ser procurado na abordagem que empreenderam, de forma memorialística, testemunhal ou ficcionalmente autobiográfica, das vivências das ilhas que experienciaram, no seu corpo e na sua alma, mas sim na exemplaridade, tida por negativa, dos processos históricos e da específica miscigenação badia-santiaguense, e “talvez foguense”. Já não concordamos com a afirmação do reputado ensaísta de que o modernismo claridoso tinha, inelutavelmente, de se concretizar, como efectivamente se concretizou, em S. Vicente.
Primeiramente, porque a primeira experiência modernista, que constitui o Diário, obra literária de António Pedro, e objecto-testemunho da obra plástica modernista de Jaime de Figueiredo, viu a luz do dia na cidade da Praia. Por outro lado, a cidade da Praia dispunha do escol humano (intelectual e técnico-profissional) e das condições técnico-materiais para a concretização do desiderato de edição de uma revista moderna, na senda do seu rico passado editorial, que, aliás, propiciou, no período republicano, imediatamente anterior, a “época áurea ” da imprensa caboverdiana. O acaso, esse fautor de eventos históricos, favoreceu, desta vez, a cidade do Mindelo, que, assim, se alcandorou a importante centro difusor de identidade e de modernidade. Note-se, no entanto, que, no caso da revista “Claridade”, não existe qualquer dependência editorial em relação à principal instituição escolar da altura, o Liceu, que só posteriormente desempenharia um papel importante na renovação das vagas criadoras e das formas de publicização da produção literária, como o comprovam as várias folhas saídas na sequência da revista “Claridade”. A revista “Cabo Verde” e a edição do grosso das obras, inclusivamente claridosas, maioritariamente pela Imprensa Nacional e pela Minerva de Cabo Verde, ambas sediadas na Praia, estão aí para o comprovar.
Referindo-se ao tratamento claridoso das problemáticas da africanidade e da negritude, escreve Dulce Almada Duarte (“Literatura e Identidade: uma abordagem sociocultural”, in revista “C(K)ultura”, nr 2, Julho de 1998): “Na obra propriamente literária dos claridosos não se sente a herança cultural africana como uma componente importante da cabo-verdianidade, cujos contornos, pela primeira vez, eles procuraram definir em termos estético-literários. Ora se é certo que a evolução cultural do arquipélago dificilmente poderia ter levado os escritores da década de trinta a enveredarem pelos caminhos da negritude, tal como esta foi percepcionada por escritores mestiços culturais como Césaire e Senghor, não é menos verdade que a nossa herança cultural podia ter sido incorporada à obra dos claridosos como um elemento intrínseco da culturas nacional como o fez, por exemplo, o poeta cubano Nicolás Guillén, dando uma dimensão mais vasta à nossa crioulidade.
Apesar disso, conscientes de que a cultura cabo-verdiana é o fruto da reelaboração de culturas vindas da Europa e da África, foi ao Brasil, através da literatura do Nordeste que os claridosos foram procurar as referências culturais. Não foi, por isso, casual o “alumbramento” que neles provocou essa literatura. Para além de uma temática baseada numa situação ecológica e social afim, a literatura brasileira do Nordeste era o desembocar de um processo cultural ao Brasil e a Cabo Verde. O Nordeste brasileiro, com as secas e os êxodos, as suas esperanças e as suas frustrações, surgia como um eco longínquo e amplificador dos gritos de revolta que morriam na garganta dos homens das ilhas. Mais que isso, o Nordeste revelava-se aos claridosos como a região onde desabrochou o sistema patriarcal, agrário e escravocrata no Brasil, criando um espaço psicossociológico que foi, tal como em Cabo Verde, o produto da reelaboração de dados culturais provenientes da Europa e da África. Foi deste modo que, sem complexos, os claridosos se afirmaram como cabo-verdianos, não como africanos”.
Merecem especial atenção as subsequentes explanações da emérita estudiosa da caboverdianidade:” (…) se os escritores da “Claridade” não sentiram a necessidade de afirmar a sua diferença pela reivindicação da cor, não terá sido apenas por se terem querido demarcar culturalmente do continente africano. Foi sem dúvida, também, porque, a despeito das posições que tomaram em razão do carácter de classe da cultura, se sentiam seres integrais do ponto de vista cultural e não homens à busca de uma identidade. Ora, como é sabido, se a negritude desempenhou um papel importantíssimo no despertar da consciência do homem negro, secularmente oprimido, ela foi, sem dúvida nenhuma, um modo de afirmação de intelectuais em busca de identidade que, para se reencontrarem, opuseram o mundo cultural negro à acção desculturante do colonizador branco. Para além do condicionamento real que a assimilação produziu no intelectual caboverdiano, contrariamente ao drama vivido por outros intelectuais negros e mestiços, ele nunca se sentiu despedaçado entre as suas origens. Se, com o processo desculturativo que atingiu os africanos vindos para as ilhas, estes viram destruídos muitos dos seus valores culturais, os seus descendentes conseguiram recriar uma cultura nova, pela reelaboração dos dados culturais em presença, no quadro histórico e socioeconómico da escravatura e da colonização. Por isso, se é certo que o intelectual dos anos trinta sofreu o impacto da política da assimilação, ele tinha como respaldo uma cultura com contornos razoavelmente definidos, resultante, em grande parte, da criatividade dos africanos que vieram para as nossas ilhas, na sua luta contra a desculturação. Daí que os escritores da “Claridade” tenham conseguido resolver, literariamente falando, os conflitos culturais que, em muitos escritores negros e mestiços, nasceram das ambivalências devidas a um processo aculturativo em que as culturas da Europa e da África se confrontaram em permanência sem se harmonizarem. A ultrapassagem desses conflitos fez-se, na “Claridade”, pela identificação dos seus escritores com espaço cultural nacional cujas coordenadas o mestiço traçou”.
E neste ponto, divergimos parcialmente da ilustre estudiosa quando, a seguir, afirma que a “démarche” claridosa teria sido motivada por uma aguda consciência nacional, adveniente da compreensão do espaço cabo-verdiano como um espaço nacional, como uma nação distinta de Portugal. Se tal ocorreu, só pode ser no sentido estritamente literário da emergência de um sistema literário nacional, autonomizado pela exclusividade dos motivos, da temática e da utilização de uma linguagem própria e inovadora, fundada no chamado português literário cabo-verdiano. Tal emergência, propiciadora, aliás, do que Aristides Pereira qualificou, por ocasião do simpósio internacional comemorativo do cinquentenário da revista Claridade, de “proclamação da independência literária de Cabo Verde”, significou sobretudo aquilo que Onésimo Silveira apelida “nativismo literário” ou “deriva literária do nativismo” (“O nativismo cabo-verdiano: o caso de Amílcar Cabral”, in obra supracitada) e Alberto Carvalho denomina “nacionalismo modenista” dos claridosos, entendendo-o num sentido estritamente cultural e desprovido de carácter político independentista, como era, aliás, timbre da época, mesmo para os movimentos panafricanistas e negritudistas (“Prefácio” a Chiquinho (quinta edição, Plátano-Editora, Lisboa, 1984). Na verdade, todos os claridosos pugnaram, com mais ou menos relutância, e em conformidade com o seu ideário político-cultural luso-tropical pelo regionalismo crioulo cabo-verdiano no quadro da unidade política do império e da “comunidade de cultura e de afectos” d’ “o mundo que o português criou”. A única excepção teria sido Jaime de Figueiredo que, segundo Pedro Martins (Testemunho de um Combatente, Ilhéu Editora, Mindelo, 19990), seria “um nacionalista convicto”.
A sinceridade das convicções e dos propósitos claridosos, em coerência estrita com as mentalidades dominantes nas elites letradas cabo-verdianas da época, é que, aliás, confere autenticidade à ambiguidade e ao pendor dilemático da sua praxis literária e cívico-cultural, enquanto autores e actores sociais, historicamente situados. Diferentes terão sido as repercussões, objectivamente nacionalistas, do seu apostolado (mais da obra literária, do que do pensamento cultural luso-tropical) na consciencialização nacional emancipalista dos nacionalistas cabo-verdianos.
As estratégias culturalistas dos letrados cabo-verdianos, de fundo colonial-regionalista e feição lusitano-crioula, como refere José Carlos dos Anjos (Literatura, Intelectuais e Poder, IPC, Praia, 2001) ou autotómica, como a qualifica Gabriel Fernandes para significar a sua preocupação de auto-amputação cultural pelo apagamento da componente africana da crioulidade, como “contraparte cultural socialmente mais desvalorizada” (A Diluição da África —A Saga identitária Caboverdiana, Editora da UFSC, 2002; “O cabo-verdiano, esse ser ambivalente”, entrevista a José Vicente Lopes, in A Explicação do Mundo, Spleen-Edições, Praia, Setembro de 2004) permeia a obra e a praxis tanto dos nativistas como dos claridosos, e foi, vezes bastantes, encorajada, e, até, imposta pela política colonial. Política colonial, oficial, de feição imperial e compreensão eurocêntrica, de assimilação dos povos coloniais, “uniformizadora”, nos tempos do liberalismo monárquico e republicano, “progressiva”, depois, na terminologia do Estado Novo. Assimilacionismo, aliás, que, baseando-se, desde os primórdios da colonização e da ladinização, na afirmação de uma alegada superioridade da civilização cristã-ocidental face aos “costumes pagãos e gentílicos” dos “negros boçais” africanos, depois, absorvendo e ratificando, em sentido eurocêntrico e ostracizante das culturas negras, a recepção e interpretação claridosas do luso-tropicalismo freyreano, logrou ancorar-se no inconsciente cultural colectivo das elites letradas e disseminar-se amplamente na mentalidade do homem comum cabo-verdiano. Caboverdiano que era situado pelos nativistas na ambiguidade civilizacional do homem-de-dois-mundos (da “pátria natal (mátria) crioula” e da “pátria monumental lusitana”, na terminologia de Gabriel Fernandes, da “pátria” “exterior, “lusitana”, “colonial”, da “sperpátria imperial” e da “pátria “interna”, “crioula”, na expressividade de Manuel Ferreira) e pelos claridosos, primeiramente, na imediata contiguidade da cultura lusitana, fortemente diluente das “sobrevivências culturais africanas”, e depois, na ambivalência de um homem-de-entre-dois-mundos, situado num lugar atlântico que, sendo predominantemente europeu, não era nem Europa, nem África, como se depreende das palavras de Baltasar Lopes da Silva e de outros insignes intelectuais e estudiosos, seus discípulos, como Manuel Ferreira, Pedro de Sousa Lobo ou, actualmente, Onésimo Silveira. A subsequente reivindicação de um estatuto de adjacência seria o corolário lógico da compreensão e caracterização luso-tropicalistas da cabo-verdianidade e da assunção do “mínimo cultural compartilhado”, de raiz ocidental, como fundamenta Gabriel Ferrnandes. A estratégia de ocultação, de desvalorização e/ou de estigmatização da matriz afro-negra e das componentes afro-crioulas da identidade caboverdiana (rotuladas como “sobrevivências africanas” e atribuídas especialmente à ilha de Santiago), ou de automutilação e de esquecimento selectivo da África, como prefere Gabriel Fernandes, foi assinalada, por razões diferentes, como sintoma de trauma identitário por Gilberto Freyre, em Aventura e Rotina e Um Brasileiro em Terras Portuguesas (1955), por um lado, e por outro lado, por Manuel Duarte e pela generalidade dos intelectuais cabo-verdianos independentistas e defensores da qualificação de Cabo Verde como um caso de regionalismo africano, com destaque para o autor de Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana (Casa dos Estudantes do Império, Lisboa, 1963), o mais expressivo libelo acusatório anti-claridoso, como é sabido. Note-se, no entanto, que Onésimo Silveira, num compreensível esforço de aggiornamento intelectual e de uma mais justa apreensão do ideário cultural e da obra literária dos claridosos (aliás, sintomaticamente festejada por Aristides Pereira no Simpósio comemorativo do seu cinquentenário como “a proclamação da independência literária de Cabo Verde”) se tem distanciado progressivamente das posições defendidas na Consciencialização na literatura ca-verdiana, assumindo, primeiramente, a defesa de um “nacionalismo crioulo nunca subordinado ao nacionalismo africano” e claramente demarcado do nacionalismo negro, que ele atribui a “intelectuais de Santiago” (que, curiosamente, não nomeia), e uma aproximação às culturas crioulas das Caraíbas, numa postura aparentada com a de Archibald Lyal, de Black and White make Brown ou de Gilberto Freyre de Aventura e Rotina.
Ultimamente, o mesmo intelectual transitou para a reciclagem europeízante das teses de Gabriel Mariano referentes ao “mundo que o mulato criou” e, paralelamente, à condenação da alegada e incompreensível falta, mesmo nos anos trinta, de militância política independentista dos claridosos, para a recuperação e a defesa de teses culturistas de feição luso-tropical, próximas das defendidas por destacados intelectuais claridosos e neo-claridosos, designadamente pelas seguintes personalidades: João Lopes, quanto à dicotomia entre, por um lado, as ilhas de Barlavento mais a ilha Brava, de culturas fortemente miscigenadas (no sentido de europeizadas) e fundadas no regime agrário do minifúndio e, por outro lado, as ilhas, com destaque para Santiago, de fortes “sobrevivências culturais gentílicas” (isto é, negro-africanas) alegadamente advenientes do regime servil-escravocrata e latifundiário de exploração da terra, as quais se teriam, por isso, beneficiado menos da “compensação cultural” propiciada pela mestiçagem e interpenetração culturais e raciais, conforme se lê nos dois “Apontamento” constantes dos números 1 e 3 da revista “Claridade”; Pedro de Sousa Lobo, que defende um ponto de vista idêntico ao de João Lopes, mas estabelecendo uma nítida dicotomia entre o interior de Santiago e o resto de Cabo Verde; Baltasar Lopes da Silva (em especial nos textos “Notas para o Estudo da Linguagem das Ilhas”, “Uma Aventura Românica nos Trópicos”, “Cabo Verde visto por Gilberto Freyre” e no “Prefácio” a “A Aventura Crioula”, de Manuel Ferreira) sobre a alegada diluição de África na cultura caboverdiana.
Tais teses foram a seu tempo largamente defendidas, desenvolvidas e difundidas por esse arguto conhecedor das elites cabo-verdianas e da sua compreensão das manifestações literárias e da cultura material e espiritual do povo caboverdiano que foi Manuel Ferreira, especialmente nas obras A Aventura Crioula, “Cabo Verde ou a originalidade crioula” (constante de No Reino de Caliban), Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, O Discurso no Percurso Africano. No ensaio “O mito hesperitano ou A nostalgia das origens” o autor persiste na defesa da tese da diluição da África mesmo nas condições pós-coloniais, embora mitigue as posições quanto à total irrevelância do factor racial, do racismo e dos preconceitos raciais (aliás, curiosamente patentes na sua obra literária, em especial, em Voz de Prisão), quando, por exemplo, perspectiva as condições de vida e a obra do mestiço luso-caboverdiano Daniel Filipe em correlação com a plena integração do branco luso-caboverdiano António Pedro na sociedade portuguesa).
As concepções culturais actuais de Onésimo Silveira são particularmente relevantes e revisionistas no que respeita à alegada e genética predominância da cultura judaico-cristã e das instituições culturais ocidentais na modelação não só das mentalidades das elites e das categorias sociais ilustradas como da civilização e da sociedade caboverdianas, na sua globalidade, incluindo as manifestações mais castiças e populares, como o batuco, e à concomitante diluição de África na nossa crioulidade, ao distanciamento em relação à integração e ao nacionalismo africanos e à legitimação de uma hegemonia barlaventista historicamente fundada na alegada circunstância de, como assevera o autor, “as populações de barlavento serem culturalmente mais evoluídas que as populações de sotavento”. A afirmação peremptória acima referida não constitui, no entanto, óbice a que o autor de “Um poema diferente” e “Hora Grande” reconheça o papel histórico desempenhado pelas ilhas de Santiago e do Fogo no primordial alicerçamento das matrizes essenciais da cultura crioula de Cabo Verde e a Cidade Velha como o primeiro berço da intelectualidade caboverdiana, bem como de intentar dissecar as raízes histórico-sociais do alegado complexo de superioridade dos Sanvicentinos face aos demais Caboverdianos e, em especial, aos Santiaguenses.
Tal esforço ocorre simultaneamente com a defesa da igualdade das diversas culturas regionais e variantes linguísticas insulares contra um alegado tratamento privilegiado da variante da “língua di terra” da ilha maior, a cujos locutores, os Badios, e cultura não deixa, no entanto, de tecer rasgados elogios. Tudo isso, a despeito de não reconhecer aos Santiaguenses qualquer “primazia” ou legitimidade, fundada numa qualquer ancestralidade histórico-cultural ou maioria demográfica, para promover mudanças no estado discriminatório de coisas, herdado do período colonial e parcialmente reproduzido durante largos períodos da época pós-colonial, estado de coisas esse fortemente penalizador da ilha de Santiago (sobretudo do seu interior) e dos seus habitantes e originários, aliás, desde há muito por demais causticados e ostracizados por preconceitos culturalistas que lhes negava a plena crioulidade e por fortes défices nas políticas de desenvolvimento. Tais posicionamentos, constantes do livro A democracia em Cabo Verde (editada em 2005) sobretudo nos ensaios “Subsídios para a regionalização em Cabo Verde” e “Cabo Verde - auto de criação colonial” e de entrevistas concedidas, em 1992 e 1993, a José Vicente Lopes e inseridas no livro A Explicação do Mundo, começaram por ser publicamente assumidos num contexto em que o projecto de unidade Guiné - Cabo Verde, concebido e almejado por Amílcar Cabral, dava sinais evidentes de crise, sobretudo a partir do assassinato desse grande intelectual e líder histórico, culminando, já depois das independências nacionais e da emergência dos dois Estados soberanos, com o posterior e sucessivo adiamento da unidade orgânica dos dois países, até a sua total inviabilização com o golpe de Estado de Bissau de Novembro de 1980.
Relembre-se, neste contexto, que os dois povos eram inequivocamente considerados, desde o III Congresso do PAIGC, de 1977, como nações autónomas, ainda que engajadas num processo gradual e progressivo de edificação de uma pátria africana una, só possível, no entanto, a longo prazo e em resultado da construção das indispensáveis bases técnico-materiais e de um crescente e de necessário intercâmbio entre os dois povos) A recentragem da sociedade caboverdiana sobre si própria adquire contornos cada vez mais nítidos e ocorre de modo irreversível, a despeito do perigo da perda da dimensão africana da cultura caboverdiana em resultado da ruptura do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde, como alertava Dulce Almada Duarte, no Simpósio Amílcar Cabral, de 1983, ou a historiadora Elisa Andrade, que no artigo supra-citado assevera, por sua vez: “O facto de muitos cabo-verdianos não quererem aceitar a identidade cultural cabo-verdiana senão como o resultado da aventura portuguesa nos trópicos, como expressão da regionalidade luso-tropical ou como cabo-verdianidade, não é senão a recusa clara ou subtil da aceitação da nossa especificidade cabo-verdiana como manifestação de uma regionalidade africana”.
Como fundamenta Gabriel Fernandes no livro A Diluição de África, a recentragem da sociedade caboverdiana sobre as suas capacidades autónomas de captação de recursos com vista à materialização da sua ânsia de se viabilizar como país e Estado independentes, que, aliás, vinha sendo experimentada desde a data da independência, caminha paralelamente com a descomplexada afirmação da sua crioulidade na totalidade das suas manifestações culturais, tanto as de matriz europeia, como as de matriz africana. O mesmo processo ocorre, por sua vez, a par da busca, num contexto de plena soberania nacional e de novos desafios de desenvolvimento, de novos portos de ancoragem económica, política e cultural e parcerias estratégicas, das quais a mais mediática é a da parceria especial com a Europa, via os conjuntos arquipelágicos da Macaronésia.
Neste contexto, vêm pugnando alguns intelectuais e políticos portugueses e caboverdianos pela integração plena de Cabo Verde nessa entidade supra-estatal e supra-nacional, por via culturalista e geo-estratégica, isto é, mediante uma compreensão predominantemente atlantista e macaronésica, e irrestritamente (ou, pelo menos, largamente) europeizante da cultura caboverdiana, que, na óptica de outros pensadores caboverdianos, perderia irremediavelmente, caso tal compreensão se materializasse, a sua natureza crioula, porque despojada da matriz afro-negra. Tal ponto de vista assemelha-se (porque também obliteradora, ainda que antinomicamente, de uma das matrizes da nossa crioulidade) a antigas e actuais démarches de alguns intelectuais (por exemplo, Elisa Andrade e José Leitão da Graça) e literatos (por exemplo, Mário Fonseca) no sentido inverso da negação, ou, pelo menos da desvalorização, no contexto do nacionalismo pan-africanista, da especificidade geográfica (atlântica) e histórico-cultural da nossa crioulidade, e da consequente afirmação da plena africanidade (ou, até, da negro-africanidade) de Cabo Verde e do regionalismo africano (por vezes entendido em sentido negro-africanista) da cultura caboverdiana. Deste modo, tornaram-se de novo actuais e prementes as discussões relativas à orfandade continental da identidade caboverdiana, que tanto tem atormentado as elites letradas e ilustradas desde a eclosão do nativismo cultural e político. Desta feita, muitos se situam exactamente nas posições públicas que outrora combateram com denodo e que tantos dissabores lhes causaram. Mais um fenómeno a juntar à historicidade do pensamento político, às metamorfoses (quase) heteronímicas (senão esquizofrénicas) dos protagonistas e actores sociais caboverdianos e à funcionalização político-ideológica da nossa identidade crioula!