Carlos Veiga, a figura histórica e humana de Amílcar Cabral e o significado político e simbólico da independência política de Cabo Verde
1. Em face das, para mim surpreendentes, obstrusas e abstrusas afirmações de alguns escribas da nossas praça (alguns deles, aliás, detentores de elevadas responsabilidades políticas e intelectuais, pelo menos num passado recente), e que questionam a importância histórica de Amílcar Cabral e o significado único, irrepetível e matricial da conquista pelo povo caboverdiano da sua independência política, convém trazer à colação e para o devido conhecimento de um mais vasto público, nacional e estrangeiro, alguns depoimentos anteriores de Carlos Veiga, designadamente daqueles proferidos no Segundo Colóquio Internacional Amílcar Cabral, realizado em 1998, na cidade da Praia, e no Segundo Simpósio Internacional Amílcar Cabral, realizado em 2004, na mesma cidade da Praia. Nesses dois eventos internacionais organizados pela Fundação Amílcar Cabral, ressalta-se a expressa exaltação por parte do líder histórico do MpD da figura histórica e humana de Amílcar Cabral, cujo centenário foi celebrado urbi et orbe com grande e indesmentível sucesso no passado ano de 2024, e do significado político-simbólico da independência nacional de Cabo Verde, cujo cinquentenário se comemora neste ano de 2025.
É, assim, que no Discurso que proferiu no acima referido Segundo Colóquio Internacional Amílcar Cabral, realizado em homenagem ao fundador do PAIGC e Herói dos Povoos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde e ao seu amigo e camarada dilecto, Mário de Andrade, e cuja Abertura Solene foi, aliás, presidida por Carlos Veiga, enquanto Primeiro-Ministro de Cabo Verde, ele afirma que Amílcar Cabral e Mário de Andrade são “dois homens que souberam sonhar o sonho das nossas independências, recusando-se a aceitar passivamente o destino de humilhação e dependência que a história parecia ter traçado para os nossos povos e acreditando, convictamente, na força das nossas nações e na sua capacidade de construir um futuro diferente”.
Nessa ocasião, Carlos Veiga caracterizou Amílcar Cabral e Mário de Andrade como “dois homens de craveira superior, de visão e inteligência brilhantes, de coragem, que também souberam dar tudo de si mesmos, sacrificar o seu bem-estar, desprezar benesses e regalias materiais, para lutar a luta dura mas nobre da libertação dos nossos povos e, com humildade, buscar nas nossas terras e nas nossas gentes a inspiração e a força.
Dois homens, pois, que merecem a nossa homenagem e gratidão, sobretudo pela via da continuação da obra que começaram e de enriquecimento crescente e contínuo do legado que nos deixaram”.
Mais à frente, e colocando a caboverdianidade como centro nevrálgico da proverbial resiliência do povo das ilhas e diásporas e como fermento, ao longo da história, da conhecida resistência anticolonial das ideias autonomistas e independentistas das suas elites letradas, asseverou Carlos Veiga que “ a independência foi o coroar desse esforço secular de construção e afirmação da nossa identidade cultural e nacional, um momento ímpar na nossa história, o resultado de uma consciência colectiva cada vez mais aguda de nós mesmos, das nossas diferenças e semelhanças com outros povos e culturas, e a concretização da nossa vontade comum de encontrar o nosso rumo e lugar próprios e específicos na humanidade, despertados e conduzidos pela acção de homens valorosos e heróicos, à frente dos quais está, indubitavelmente, Amílcar Cabral.
Reiterou ainda o então Primeiro-Ministro de Cabo Verde no Segundo Colóquio Internacional Amílcar Cabral, de 1998: “É forte, entre os caboverdianos residentes e da diáspora, mesmo entre os de segunda geração, este sentido de um destino comum e de pertença total a uma mesma comunidade. Suficientemente forte para gerar o consenso do povo cabo-verdiano em relação aos grandes desafios da sua existência e progresso.
Foi esse consenso que tornou possível a independência e a construção de um Estado credível e útil na comunidade internacional, desmentindo, na prática, aqueles que nos negavam a autodeterminação com fundamento na inviabilidade de as ilhas assumirem o seu próprio destino; foi ele que permitiu uma transição tranquila, sustentada e exemplar para a democracia; é ele ainda que tem permitido ao povo cabo-verdiano sobreviver, progredir e ser, efectivamente, um povo vencedor ao longo de séculos de luta tenaz contra as adversidades e as condições muito difíceis de existência que a natureza madrasta nos legou. A força da caboverdianidade e a solidez do consenso que lhe está subjacente são o factor mais importante de confiança no futuro de Cabo Verde e no complexo e árduo combate que é preciso continuar a fazer pelo desenvolvimento e felicidade dos cabo-verdianos”.
É neste contexto que deve ser também referida a comunicação apresentada por Carlos Veiga, em Setembro de 2005, ao Segundo Simpósio Internacional Amílcar Cabral. Nessa comunicação, asseverou Carlos Veiga numa por demais feliz e pertinente expressão que “para todos os cabo-verdianos, Amílcar Cabral é o Primeiro dos seus Heróis e o Maior dos Homens Grandes de Cabo Verde”, em razão de “ter sido dos primeiros a apresentar a independência como a única opção da nação caboverdiana colonizada, que a teorizou quanto a fundamentos e objectivos, que concebeu e construiu os instrumentos, a estratégia e a táctica para a conquistar, e que dirigiu a luta armada para a obter”. Prosseguiu o líder histórico do MpD: “Assassinado cobarde e traiçoeiramente, a solidez do trabalho realizado até então, a clareza das orientações deixadas, o gigantismo da coragem e a profundidade das convicções que soube incutir nos seus colaboradores mais próximos permitiram que, mesmo sem a sua presença inteligente, estimulante e mobilizadora, o sonho por que tanto lutou se concretizasse pouco depois”. Por tudo isso, Amilcar Cabral foi considerado por Carlos Veiga “o principal obreiro da Independência” política da Guiné e de Cabo Verde. Independência política de Cabo Verde que, segundo Carlos Veiga, é e permanece “a marca mais indelével da nossa História”.
Acrescentou ainda Carlos Veiga que “Amílcar Cabral tem uma outra faceta que o eleva ainda mais”, pois que sempre se mostrou preocupado com a fase pós-colonial da luta e da vida dos povos que ajudou a libertar e, assim, também do povo caboverdiano, prevenindo e asseverando em reiteradas ocasiões que a independência política não é a etapa final da luta de libertação nacional, mas uma simples, se bem que uma sua muito importante fase, designadamente e segundo Carlos Veiga, “o ponto de partida necessário e uma estação de trânsito obrigatória para o percurso rumo a uma marca ainda mais profunda, a um objectivo ainda mais importante e decisivo: a conquista completa da sua dignidade, da sua liberdade e do seu progresso, pelo livre desenvolvimento das forças produtivas nacionais e da sua colocação ao serviço do povo”. Ou por outras palavras, também correntes no discurso de Amílcar Cabral e referidas igualmente por Carlos Veiga: para a construção das condições de dignificação do povo, cujos filhos não lutam somente para ter um hino, uma bandeira e um governo nacionais, mas primacialmente para melhorar as suas próprias condições de vida e para a concretização prática do seu direito à liberdade, à dignidade, à paz, ao progresso e ao bem-estar material e espiritual, numa sociedade libertada do medo, da fome, da miséria e da ignorância.
Neste contexto, não deixou Carlos Veiga de realçar o valioso contributo teórico de Amílcar Cabral para o pensamento político contemporâneo ao sublinhar que i. somente existe verdadeira libertação nacional quando haja verdadeira libertação das forças produtivas nacionais de toda e qualquer dominação estrangeira; ii. a maior ameaça contra o movimento de libertação nacional é o neo-colonialismo; iii. a necessidade da inelutável escolha na fase pós-colonial entre a opção socialista e a dominação imperialista de tipo neo-colonial; iv. o suicídio de classe do sector revolucionário da pequena-burguesia de serviços, alcandorada ao poder do Estado pós-colonial é a condição sine qua non para a viabilização da opção socialista, acima referida; vi. no caso colonial, torna-se indispensável a constituição de uma frente unida da nação-classe colonizada contra a burguesia metropolitana e os seus representantes coloniais; vii.no caso neo-colonial, é premente a necessidade de uma ampla aliança de classes, incluindo com os sectores patrióticos da burguesia nacional, contra a burguesia imperialista e a classe dirigente nativa.
2. Parecem-nos ser assaz significativos os acima referidos posicionamentos do primeiro Presidente do MpD e antigo Primeiro-Ministro de Cabo Verde em relação à figura histórica e humana de Amílcar Cabral, pois que o singulariza e o diferencia nitidamente dos posicionamentos de outras personalidades políticas ligadas ao MpD, com destaque para os Deputados do Grupo Parlamentar do mesmo partido político na Assembleia Nacional que decidiram chumbar a proposta de Comemoração do Centenário Natalício de Amílcar Cabral durante todo o ano de 2024 e constante do projecto de Resolução da iniciativa da Fundação Amílcar Cabral e trazida para a discussão e a votação do Plenário da mesma Assembleia Nacional pelo Grupo Parlamentar do PAICV.
Tais considerações têm outrossim um especial significado em virtude de terem sido proferidas por uma individualidade, também ela integrante do Panteão das Grandes Personalidades Históricas Caboverdianas em razão de ser o líder histórico do MpD por ter sido sucessivamente: o primeiro Coordenador Provisório e o primeiro Presidente eleito do mesmo partido/movimento político; antigo Primeiro-Ministro de Cabo Verde por dois mandatos consecutivos conquistados com maioria qualificada e derrotando, primeiramente, o histórico Pedro Pires e, depois, Aristides Lima, candidatos a Primeiro-Ministro designados pelo PAICV; antigo candidato presidencial apoiado pelo MpD e derrotado por duas vezes por Pedro Pires, por sua vez apoiado pelo PAICV; antigo candidato a Primeiro-Ministro designado pelo MpD, do qual foi de novo eleito Presidente, e derrotado por José Maria Neves, Presidente do PAICV; antigo líder do MpD, colocado na oposição parlamentar durante quinze anos, e antigo candidato presidencial apoiado pelo MpD e derrotado por José Maria Neves, apoiado pelo PAICV.
3. Para Carlos Veiga, “por outro lado, a validade das teses de Cabral, no contexto em que se inseriam, foi confirmada pelos resultados alcançados: as independências da Guiné e de Cabo Verde”, reiterando o líder histórico do MpD em seguida, de modo assaz peremptório, ufano e solene: “Cabral, a sua memória e o símbolo que é pertence deste modo a todos os cabo-verdianos: querer apropriar-se, privativamente, dele é diminui-lo e tentar reduzir, injusta e injustificadamente, a sua estatura superior de Primeiro de nossos Heróis e não o homenagear, honrar e dignificar é incompreensível e inaceitável”.
Todavia e segundo Carlos Veiga, trinta anos depois do seu assassinato era natural que algumas teses de Amílcar Cabral fossem questionadas.
É, assim, que o líder histórico do MpD intenta também co-responsabilizar Amílcar Cabral, ainda que de forma parcial e indirecta, pelos supostos e/ou reais malefícios totalitários do regime político caboverdiano de democracia nacional revolucionária, implantado em Cabo Verde pelo PAIGC e consolidado pelo seu sucessor islenho, o PAICV. Para tanto, alegou o líder histórico do MpD que uma parte do legado teórico-doutrinário e da concepção de Partido-Estado e de Estado pós-colonial ter sido adoptada pelo primeiro líder do PAIGC nas condições muito particulares advenientes da urgente necessidade de administrar as chamadas zonas/regiões libertadas da Guiné dita Portuguesa e de proclamar unilateralmente a existência do Estado independente e soberano da Guiné-Bissau como resultado jurídico-constitucionalmente e internacionalmente relevante da longa luta político-armada conduzida pelo PAIGC sob a sua destemida e clarividente liderança.
Nesta óptica, e prosseguindo nas suas explanações expendidas no acima referido Segundo Simpósio Internacional Amílcar Cabral, de Setembro de 2004, considerou Carlos Veiga que é a “democracia revolucionária”, enquanto princípio fundante do sistema político de Partido-Estado implantado, primeiramente, nas áreas libertadas da Guiné-Bissau e, depois, tornado extensivo e político-constitucionalmente impregnante dos Estados soberanos e independentes da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, consabidamente modelados como regimes políticos de partido único socializante, depois oficialmente adoptando a designação de regimes políticos de democracia nacional revolucionária, nos quais o PAIGC foi unilateralmente erigido como partido único, isto é, como “o único partido autorizado” e qualificado, ademais, como “força, luz e guia do nosso povo”, “expressão suprema da vontade soberana do povo”, “força política dirigente da sociedade” e “força política dirigente da sociedade e do Estado”, entre outros atributos, epítetos e qualificativos supra-constitucionais. Segundo Carlos Veiga, foi a condição supra-constitucional do PAIGC e, depois, do PAICV, que teria propiciado a concepção do Estado independente e soberano de Cabo Verde como mero instrumento para a aplicação do “programa político, económico, social, cultural, de defesa e segurança” definido por esse mesmo “partido de vanguarda”, cujos dirigentes, responsáveis e militantes alegadamente se consideravam e se fizeram alcandorar a um privilegiado estatuto político de “melhores filhos do nosso povo”, por isso, alçados ao status de “detentores exclusivos do monopólio do poder político”. Em razão disso tudo, defendeu Carlos Veiga que, apesar das suas actuais virtualidades e potencialidades enquanto potenciador de uma democracia participativa complementar da moderna democracia representativa de feição democrático-liberal e matriz ocidental, tempestivamente consagrada na Constituição Política caboverdiana de 1992, o conceito de democracia revolucionária foi sujeito nos últimos anos a severas e demolidoras críticas porque, tal como os “Estados da legalidade socialista “, nos quais alegadamente Amílcar Cabral se teria inspirado para criar a sua concepção de Estado fundada no conceito de democracia revolucionária, o regime político de partido único socializante de Cabo Verde, comum e oficialmente designado de regime político de democracia nacional revolucionária, pode ser inserido na categoria de Estado de não direito e/ou de Estado contra o direito, diametralmente oposto, do ponto de vista conceptual, ao Estado de Direito e ao Estado de Direito Democrático, plasmados na Constituição Política caboverdiana de 1992.
4. Vale todavia relembrar que, em Dezembro de 1960, Amílcar Cabral tinha apresentado ao Governo português em nome do PAIGC um Memorando no qual propunha uma solução pacífica e negociada para a obtenção da independência política da Guiné dita Portuguesa e de Cabo Verde com instauração imediata das liberdades democráticas fundamentais de expressão do pensamento, de reunião, de manifestação, de associação, de greve e de criação de partidos políticos e de organizações sindicais com vista à realização de eleições gerais e livres por sufrágio universal, directo, igual e secreto da Câmara de Representantes do Povo da Guiné Portuguesa, na proporção de um representante para trinta mil habitantes, e da Câmara de Representantes do Povo de Cabo Verde, na proporção de um representante para dez mil habitantes, sendo que ambas as C^maras de Representantes seriam dotadas de poderes soberanos, constituintes e legislativos e de designação dos respectivos poderes executivos, ficando abertas as possibilidades alternativas da união entre os dois territórios ou da sua independência separada, conforme decidissem em reunião conjunta as duas Câmaras de Representantes.
A essa démarche liberal-democrática de Amílcar Cabral não deve ter sido estranha a sua recorrente e sistemática qualificação do Estado português da altura e das suas extensões político-administrativas nas colónias/províncias ultramarinas portuguesas como Estado colonial-fascista, com isso certamente querendo significar que, não obstante caber essencialmente ao povo português e às suas organizações políticas a luta contra o salarazismo e o fascismo na Metrópole portuguesa, a luta contra a dominação colonial portuguesa empreendida por movimentos de libertação nacional progressistas e socializantes, como era o PAIGC, implicava necessariamente o arrebentamento e o desmantelamento da ossatura e do aparato fascistas da sua extensão político-administrativa e estadual colonial/provincial-ultramarina nos nossos países africanos. Por isso, não foi certamente por acaso que o Programa Maior do PAIGC elege e define a defesa dos direitos humanos e a consagração das liberdades fundamentais como um dos objectivos cruciais e fulcrais dos futuros Estados independentes e soberanos da Guiné (-Bissau) e de Cabo Verde. Por outro lado, e como, citando Mário Silva, Carlos Veiga refere, aliás, muito bem, a primeira Constituição Política da Guiné-Bissau, aprovada pela Assembleia Nacional Popular (ANP) desse país, depois de ter proclamado unilateralmente o Estado independente e soberano da Guiné-Bissau enquanto República democrática, laica, unitária, anti-colonialista e anti-imperialista, referia-se expressamente, numa postura muito rara entre os Estados independentes existentes nessa altura, à Declaração Universal dos Direitos do Homem.
5. A apresentação do Memorando ao Governo português pelo PAIGC liderado por Amílcar Cabral, e acima referido, foi, aliás, expressamente mencionado por Carlos Veiga na sua comunicação apresentada ao Segundo Simpósio Internacional Amílcar Cabral. Considera todavia (e erroneamente, na minha opinião), que com o início (e acrescentamos nós, com o crescente sucesso da luta político-armada de libertação binacional dos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde) e “influenciado quer pelas correntes de opinião em voga nos anos sessenta do século XX”, designadamente das concepções marxistas, aliás, partilhadas com a generalidade dos dirigentes dos movimentos de libertação nacional das colónias portuguesas, quer pelos países socialistas de onde provinham “os apoios políticos e ideológicos” à luta conduzida pelo PAIGC, e tendo ademais e sobretudo em conta a emergência no território da Guiné-Bissau das chamadas zonas/regiões libertadas, Amílcar Cabral “rompe com o modelo de democracia pluralista de inspiração liberal e passa a defender a democracia revolucionária, elevada a princípio fundamental da organização do partido, conjuntamente com os princípios da crítica e da autocrítica, da direcção colectiva e do centralismo democrático, a ele estreitamente ligados”, sempre guiado pelo princípios cardeais do seu pensamento político consubstanciados nas palavras de ordem Partir da Realidade da nossa Terra, Ser Realistas e Pensar Muito os nossos Problemas para Agir Bem e Agir Muito para Pensar Melhor, com vista a adaptar o seu partido-movimento de libertação binacional às condições da luta armada na Guiné-Bissau e à necessidade premente da administração das acima referidas zonas/regiões libertadas.
Da opção por esses princípios e da adopção dessa óptica organizacional na concepção do Estado pós-colonial, teria resultado, segundo Carlos Veiga, uma simbiose (diriamos nós que, até, uma osmose) entre o PAIGC e o nascente Estado da Guiné-Bissau, cuja independência política seria proclamada unilateralmente, já depois do “traiçoeiro ” assassinato do seu demiurgo e principal pensador e autor intelectual, a 24 de Setembro de 1973, seguindo-se, acrescentamos nós, já nas condições propiciadas pelo golpe de Estado militar do 25 de Abril de 1974 e pela sequente Revolução dos Cravos em Portugal, a correlativa aceleração da História nas colónias/províncias ultramarinas portuguesas, tudo culminando na abertura e na conclusão das negociações conducentes à obtenção das respectivas independências políticas durante todo o ano de 1975, nelas se inserindo a proclamação da independência política e da soberania nacional e internacional de Cabo Verde, a 5 de Julho de 1975, depois de um período de transição política de mais ou menos seis meses.
6. É, pois, nesse concreto circunstancialismo que Carlos Veiga analisa a concepção do Estado de Amílcar Cabral fundada no conceito de democracia revolucionária, o qual teria sido necessária e indelevelmente marcado pelas concepções políticas típicas dos regimes políticos de partido único e alegadamente pela inerente confusão entre o Partido e o Estado, aliás, amalgamados num Partido-Estado. Assim, considera Carlos Veiga que a concepção cabraliana de Estado, acima referida, podia ser filiada, tal como os Estados da chamada legalidade socialista, também desqualificados pelo Professor Gomes Canotilho, devidamente citado por Carlos Veiga, como “Estados da deriva totalitária socialista” , nas concepções de Estado de não direito ou de Estado contra o direito. Na opinião de Carlos Veiga, nos termos da concepção de Estado adoptada por Amílcar Cabral e pelos seus sucessores, e citando o estudioso António Duarte Silva “é o partido que exerce verdadeiramente o poder político, enquanto “vanguarda política“, “força, luz e guia do nosso povo na Guiné e em Cabo Verde”, “força motriz da revolução” e, nas condições pós-coloniais de existência de um Estado independente e soberano, enquanto “expressão suprema da vontade e da soberania populares”. Sempre citado por Carlos Veiga a propósito do regime político bissau-guineense de partido único, considera António Duarte Silva (in A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, Porto, Edições Afrontamento, 1977), que “o poder supremo pertence ao Partido, que este é, de direito e de facto, um partido único a que nenhuma outra instituição deve escapar” e que “o Partido acaba por ser não só um meio de expressão da soberania do povo, mas também a origem e o fundamento do poder político”. Por seu lado, e citado por Carlos Veiga, considera o sociólogo bissau-guineense Carlos Lopes que no sistema político de partido único implantado na Guiné-Bissau pelo PAIGC, “cabe aos órgãos do poder do Estado o mero papel instrumental de ratificação e de execução das decisões dos órgãos superiores do mesmo partido”, supomos que para os devidos efeitos jurídico-formais de outorga da generalidade, da abstração e da juridicidade, características das normas do direito positivo vigente, às decisões e deliberações emanadas dos órgãos do partido.
Conclui Carlos Veiga que “foi, pois, no modelo de Partido/Estado, em que o partido único, substancialmente, absorve o Estado, que as ideias de Cabral conduziram a Guiné e Cabo Verde em tema de construção do Estado, no advento das independências”. Considera ademais que tal “ é decorrência da concepção de Cabral sobre os partidos políticos”, na situação concreta da luta anti-colonial, pois que considera que para o sucesso dessa luta não seriam necessários muitos movimentos políticos, sendo, pelo contrário, imprescindível “uma ampla frente de unidade e luta contra o colonialismo” dirigida por um “instrumento-base”, ”uma vanguarda solidamente unida e consciente da verdadeira significação e do objectivo da luta de libertação que vai dirigir” e que deveria conduzir não só a luta para a independência, mas também a luta para o progresso social e ser, assim, “a força motriz da revolução”, opinião também corroborada por Olívio Pires, citado por Carlos Veiga.
7. É neste contexto político que, segundo Carlos Veiga, se teria constituído no período pós-colonial em Cabo Verde um Estado de não-direito ou um Estado contra o direito (contraposto a um verdadeiro Estado de direito), por isso caracterizado como centralizado, monolítico e marcado pela ausência da separação entre os poderes legislativo, executivo e judiciário e pela inexistência de um verdadeiro catálogo de direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, porque sempre condicionados e/ou amiúde funcionalizados para a prossecução dos fins e objectivos do Estado e do regime da democracia nacional revolucionária.
Ainda assim, assevera Carlos Veiga que, felizmente, os sucessores de Amílcar Cabral não aplicaram em Cabo Verde, tendo mesmo desaplicado no nosso país, alguns dos seus ensinamentos sobre a problemática da construção do Estado e da sociedade pós-coloniais, alegadamente devido às características próprias da sociedade caboverdiana, sobretudo de natureza identitária e cultural. Segundo Carlos Veiga, essas mesmas características próprias da sociedade caboverdiana não teriam sido devidamente consideradas por Amílcar Cabral, confrontado que fora com as condições específicas da luta político-armada na Guiné-Bissau, mas foram tidas devidamente em conta pelos seus sucessores depois do seu regresso a Cabo Verde, vindos dessa mesma luta político-armada, obrigados que tinham sido a adaptar-se às novas e específicas circunstâncias islenhas. Assim, embora infelizmente, segundo o líder histórico do MpD, também se tenha aplicado o essencial da teoria de Amílcar Cabral sobre a democracia revolucionária, “não se arrebentou com o Estado colonial”, “não se fez a revolução, mas optou-se pela via reformista”, “nem a pequena-burguesia se suicidou como classe”.
Residiria, pois, no pragmatismo dos sucessores de Amílcar Cabral nas nossas ilhas a verdadeira razão porque em Cabo Verde o regime político de partido único socializante e o seu correlativo e alegado Estado de não direito se tenha demostrado como menos radical, violento e repressivo por comparação com outros modelos aparentados e similares de regimes políticos implantados em outras paragens.
8. Depois de contestar com alguma veemência e contundência a pertinência e a viabilidade da aplicação em Cabo Verde não só do conceito de democracia revolucionária, mas também de outras teorias e estratégias políticas gizadas por Amílcar Cabral, com destaque para o suicídio de classe da pequena-burguesia (que, aliás, Carlos Veiga parece confundir com o suicídio da classe média em geral) e para o seu desiderato de “rebentar com o Estado colonial”, Carlos Veiga intenta retirar ilações e lições positivas de alguns ensinamentos e consignas cabralistas colhidos dos seus escritos, sobretudo daqueles resultantes do “seu esforço titânico de formação de quadros”, e incluindo aqueles relativos a alguns princípios nucleares do PAIGC, como a democracia revolucionária, o centralismo democrático, a direcção colectiva e a crítica e autocrítica. Nessa sequência, considera Carlos Veiga que muitos desses ensinamentos “são susceptíveis de uma interpretação actualizada e mostram-se válidos e incontornáveis, ainda hoje, como referências de ética e comportamentos políticos, para o aperfeiçoamento constante da nossa democracia, sempre um “assunto inacabado” na agenda política actual”, determinada pela nova vivência do país, marcada pela emergência de um Estado Constitucional de Direito Democrático e Social, plenamente consagrado na Constituição Política de 1992, e de uma democracia liberal aberta à alternância política e à condução de “políticas capitalistas liberais, capitalistas sociais e/ou socialistas democráticas”.
É, assim, que para Carlos Veiga:
“-A unidade e luta podem inspirar a busca de consensos nacionais (…) indispensáveis na luta ainda titânica contra a pobreza e outros flagelos e para o desenvolvimento sustentado e sustentável do país”;
-”O acento posto no dever democrático de participar, de dar opinião, que Cabral retira do seu princípio de centralismo democrático pode inspirar no tempero participativo indispensável para apurar a nossa democracia representativa”;
-”A tónica do poder concreto nas mãos do povo que Cabral punha na democracia revolucionária pode inspirar-nos para o necessário aprofundamento das descentralização e da cada vez mais urgente regionalização do poder; “
-”A inclusão que Cabral faz no âmbito da democracia revolucionária do apelo para que se acabe com a mentira, se defenda e se diga sempre a verdade e de não enganar o povo com conversas e promessas falsas e a que ninguém tenha medo de perder o poder deve inspirar-nos no combate à fraude eleitoral e à demagogia, ao populismo e ao ataque pessoal no combate político;”
-E, finalmente, “princípios como “partir da realidade, ser realista”; “ agir muito para pensar bem e pensar muito para melhor agir ”, “pensar com as nossas próprias cabeças e andar com os nossos próprios pés” (“independência de pensamento e de acção”), etc, são recomendações que nenhum político e nenhuma organização política podem desdenhar ou deixar de aplicar” sobretudo, acrescenta Carlos Veiga, nas condições das oportunidades e dos riscos de um mundo globalizado e da necessidade de afirmação de um pequeno país insular como Cabo Verde.
Prossegue Carlos Veiga, asseverando que a vida e a obra exemplar de Amílcar Cabral não ficariam em nada beliscadas pela conclusão anteriormente tirada sobre a sua concepção de Estado pós-colonial, porque construída em circunstâncias muito específicas da condução da luta político-armada na Guiné-Bissau.
A concluir a sua extensa e marcante intervenção, proferida a 10 de Setembro de 2005, no Segundo Simpósio Internacional Amílcar Cabral, organizado pela Fundação Amílcar Cabral e realizado na cidade da Praia, afirmou Carlos Veiga: “Depois, e não menos importante, houve o cidadão da nossa terra, da África e do mundo - imbuído do espírito de missão e de serviço em prol do seu povo; o líder lúcido, corajoso e destemido, inconformado e ousado, patriota amigo e querido do seu povo e prestigiado internacionalmente; e houve o Homem - sensível, culto, superior, mas sempre modesto e íntegro e sobretudo sempre humano. Homem que seguramente nos fez falta ao longos destes anos de Independência, porque, parafraseando o que ele próprio disse, não foi imprescindível, mas era necessário, pelo proveito e utilidade que podíamos tirar da sua experiência vasta e rica, do seu prestígio internacional, da profundidade e amplitude dos seus conhecimentos e cultura e das suas elevadas qualidades humanas, éticas e políticas. É este homem multifacetado e a grandeza da obra que construiu, a Independência, que é justo e dever de todos nós recordar e homenagear. Por isso, e com muita honra e orgulho, termino, prestando a minha sincera homenagem a Amílcar Cabral”.
Amílcar Cabral
9. Cabe, neste preciso contexto, relembrar que, como referido anteriormente, são inúmeros os factos históricos que atestam que Amílcar Cabral e o PAIGC empreenderam múltiplos esforços no sentido de, em conformidade, aliás, com o Programa Mínimo do PAIGC, unir organicamente numa Frente Unida todas as forças nacionalistas e patrióticas da Guiné dita Portuguesa e de Cabo Verde para a obtenção da independência política desses dois territórios coloniais portugueses da África Ocidental. É, assim, que, em 1961, é criada em Dacar a Frente Unida de Libertação (FUL), que pretendia congregar de forma orgânica a grande maioria das organizações nacionalistas da Guiné e de Cabo Verde, designadamente, por um lado, a UDC (União Democrática de Cabo Verde) e a MLICV (Movimento de Libertação das Ilhas de Cabo Verde), e, por outro lado, o Movimento de Libertação da Guiné, a União das Populações da Guiné Portuguesa, etc., mantendo cada uma dessas organizações políticas a sua autonomia organizacional, estatutária e programática em face do PAIGC, a única organização co-fundadora da FUL com natureza intrinsecamente binacional, se nos abstrairmos do chamado Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde (MLGC), de Dacar, e que uniu todas as demais organizações nacionalistas de Cabo Verde e da Guiné dita Portuguesa, acima referidas, na Reunião/Conferência das Organizações Nacionalistas da Guiné dita Portuguesa e de Cabo Verde e que culminaria na constituição da mesma FUL, bem como do chamado Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde (MLGCV), de Conacri, e do chamado Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde (MLGC), de Ziguinchor, os quais podiam ser considerados como meras organizações políticas satélites do PAIGC para o representar no seio das comunidades emigradas oriundas de Cabo Verde e da Guiné dita Portuguesa. Segundo elucida o próprio Amílcar Cabral numa das suas palestras em crioulo no Seminário de Quadros, de 1969, e posteriormente publicada com o título “A Evolução e As Perspectivas da Nossa Luta”, os trabalhos preparatórios da Conferência para a criação da FUL foram da exclusiva responsabilidade do PAIGC, tendo todavia a mesma organização política unitária de natureza frentista então criada soçobrado nas intrigas políticas internas e na inactividade dos seus membros, tendo, por isso, fracassado totalmente do ponto de vista politico e organizacional. Nessa sequência, as organizações nacionalistas da Guiné dita Portuguesa criaram a FLING (Frente de Libertação para a Independência Nacional da Guiné), que, apoiada pelo Governo do Senegal, viria a tornar-se a principal adversária política (Bissau) guineense do PAIGC. Com efeito, e segundo informações constantes do livro Amílcar Cabral (1924-1973) - Vida e Morte de um Revolucionário Africano, de Julião Soares Sousa, foi o MLG (Movimento de Libertação da Guiné), relembre-se que uma das organizações políticas co-fundadoras da FUL e, depois do fracasso desta, uma das futuras organizações políticas co-fundadoras da FLING, a iniciar a luta armada na Guiné dita Portuguesa, em 1961, dois anos antes do assalto ao Quartel de Tite, o qual marcou o início da luta armada conduzida pelo PAIGC. Foi também com base nesse facto e nesse feito históricos que a FLING empreendeu uma renhida disputa com e contra o PAIGC para o seu reconhecimento junto da OUA (Organização da Unidade Africana) como o único e legítimo representante do povo da Guiné dita Portuguesa. Tendo comprovado que era de facto a única organização efectivamente presente no terreno político-militar da Guiné dita Portuguesa e no terreno da luta política clandestina em Cabo Verde, e que a acção armada promovida pelo MLG no território da Guiné dita Portuguesa fora uma acção esporádica e sem qualquer consequente sequência, a contrario da luta armada promovida pelo PAIGC e iniciada depois de uma intensa e longa campanha de preparação político-armada dos combatentes, vindos dos centros urbanos e dos campos, e de mobilização política prévia e extensiva das populações camponesas da Guiné dita Portuguesa, o PAIGC viria a merecer, em 1965, o reconhecimento por parte da OUA como único e legítimo representante dos povos da Guiné dita Portuguesa e das ilhas de Cabo Verde. Foi nessas concretas circunstâncias internas e internacionais que o PAIGC se constituiu em partido/movimento de libertação binacional único nas áreas libertadas da Guiné dita Portuguesa e no plano da representação internacional da luta dos povos da Guiné e Cabo Verde, para, mais tarde, se consagrar como Partido/Estado nessas mesmas zonas/regiões libertadas, posteriormente proclamadas como Estado soberano e independente com a denominação oficial de República da Guiné-Bissau.
10. Parece-nos, pois, incorrecto, apressado, erróneo e/ou errado considerar que Amílcar Cabral seria, de antemão e por princípio, contrário a qualquer forma de multipartidarismo, mesmo nas condições históricas específicas da sociedade colonial e da luta anti-colonial existentes na altura tanto na Guiné dita Portuguesa como também em Cabo Verde. O que nos parece evidente nele e no seu pensamento político é o seu realce à necessidade da existência de uma organização política de vanguarda que pudesse orientar com sucesso a luta pela independência política, no período colonial, e pelo progresso social, no período pós-colonial, quer no quadro de um único e amplo movimento de libertação binacional, quer ainda no âmbito de uma Frente Unida congregadora de várias organizações políticas nacionalistas da Guiné e de Cabo Verde. Não tendo a experiência da FUL (Frente Unida de Libertação) tido sucesso e sobrevivido como organização unitária de carácter frentista, optou Amílcar Cabral pela continuação da luta pela independência política, doravante na forma político-armada, sob a orientação da organização política binacional dos povos da Guiné e de Cabo Verde por ele fundada em 1956 e que, a partir de então, deveria conjugar em si a dinâmica e a dialéctica partido-movimento, isto é, que deveria ser simultaneamente uma ampla frente de categorias e classes sociais em luta pela independência e um partido de vanguarda. Com efeito, a partir do fracasso da FUL Amílcar Cabral passou a considerar as antigas organizações políticas parceiras do PAIGC na mesma FUL como sendo controladas por oportunistas políticos que visavam sobretudo satisfazer as suas ambições pessoais de poder e riqueza e ocupar os lugares eventialmente vagos na hierarquia político-administrativa e económico-social em substituição dos colonialistas portugueses, e que, ademais, não estariam dispostos a embrenhar-se consequente e seriamente na preparação e na consecução de uma luta político-armada de longa duração como único meio deixado pelas autoridades colonial-fascistas portuguesas aos povos da Guiné dita Portuguesa e de Cabo Verde bem como aos povos das restantes colónias portuguesas para a obtenção das respetivas independências políticas.
É para fundamentar a sua opção política estratégica que Amílcar Cabral relembrou e aduziu durante o célebre Seminário de Quadros, realizado durante alguns dias, em 1969, na cidade de Conacri, os seguintes factos políticos e sociológicos característicos da dominação colonial portuguesa nesse período (vide a obra de Amílcar Cabral: Pensar Muito para Agir Bem, Intervenções no Seminário de Quadros, 1969 (Organização de Luis Fonseca, Olívio Pires e Rolando Vera-Cruz Martins, edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014):
a) O PAIGC foi a primeira organização política nacionalista surgida na Guiné dita Portuguesa e em Cabo Verde, tendo sido criada na clandestinidade, em 1956, na cidade de Bissau, em razão da natureza colonial-fascista do poder político instalado não só na Guiné dita Portuguesa e nas ilhas de em Cabo Verde, mas também nas demais colónias/províncias ultramarinas portuguesas e na própria Metrópole colonial. Em razão da natureza colonial-fascista desse poder político era proibida e severamente punida a criação de partidos políticos, os quais, quando criados, somente podiam actuar na mais estrita e rigorosa clandestinidade política. No que se refere à Guiné dita Portuguesa, Amílcar Cabral refere-se a uma primeira organização política anterior ao PAIGC fundada na clandestinidade por ele próprio, mas que teria sido “uma desilusão”. Trata-se certamente do misterioso MING (Movimento para a Independência Nacional da Guiné), presumivelmente criado em 1955 e cuja fundação teria sido uma das razões da “apressada saída” de Amílcar Cabral da Guiné dita Portuguesa por ordem ou por recomendação do Governador Alvim com quem tivera, “uma longa conversa”, segundo palavras do próprio Amílcar Cabral. Por outro lado, segundo consta do livro Amílcar Cabral (1924-1973) - Vida e Morte de um Revolucionário Africano, de Julião Soares Sousa, Rafael Barbosa teria participado na fundação de um Partido Socialista da Guiné dita Portuguesa, de que todavia se sabe muito pouco ou quase nada. Anote-se neste contexto que João Lopes e Pedro Monteiro Cardoso foram membros encartados do Partido Socialista Português, não tendo todavia a independência política de Cabo Verde estado nos horizontes político-ideológicos desses dois importantes letrados caboverdianos.
b) É a própria situação colonial que, dissolvendo os antagonismos políticos e reduzindo e aplainando as eventuais contradições políticas entre as diferentes categorias e classes sociais nativas (e os grupos étnicos autóctones, para o caso da Guiné dita Portuguesa), leva a uma grande convergência de objectivos políticos imediatos dessas mesmas categorias e classes sociais nativas (e dos grupos etno-linguísticos nativos, para o caso da Guiné dita Portuguesa) face ao poder colonial e consistentes primacialmente na obtenção da independência política pela nação-classe colonizada. Como anteriormente analisado e dissecado, para Amílcar Cabral esses interesses políticos imediatos podiam ser melhor corporizados e salvaguardados no quadro de uma única organização política, que, para garantir esses mesmos objectivos políticos imediatos, mas também os interesses fundamentais do povo colonizado, em especial das suas classes trabalhadoras, bem como os objectivos estratégicos de longo prazo da luta de libertação nacional, num futuro pós-colonial em liberdade, democracia e progresso para todos, deveria ter a natureza simultânea de partido-movimento. Para tanto, a organização política em luta pela independência dos povos da Guiné dita Portuguesa e de Cabo Verde deveria manter uma ampla base organizativa/orgânica de apoio social à luta pela independência política, ao mesmo tempo que era “dirigida pelos mais capazes e aptos”, como diria Carlos Veiga (quiçá numa outra forma de significar a controvertida expressão cabraliana “melhores filhos do nosso povo”), assim constituindo-se um “partido dentro do partido”.
c) A démarche unitária de Amílcar Cabral estendeu-se consabidamente às demais colónias/províncias ultramarinas portuguesas em África com a constituição sucessiva do MAC (Movimento Anti-Colonial), da FRAIN (Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas) e, finalmente, da CONCP (Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas), integradas, em formatos sucessivos diferenciados, pelo PAIGC, pelo PLUAA (Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola, fundado por Viriato da Cruz e outros nacionalistas progressistas angolanos, depois pelo MPLA), pela UDENAMO (União Democrática Nacional de Moçambique, de Marcelino dos Santos, depois pela FRELIMO, de Eduardo Mondlane) e pelo CLSTP (Comité de Libertação de São Tomé e Príncipe, depois pelo MLSTP), tendo sido igualmente notável o esforço de Amílcar Cabral no apoio à formação tanto do PLUAA e do MPLA como da FRELIMO, a partir de várias organizações políticas nacionalistas originárias tanto de Angola como de Moçambique, bem como na constituição do CLSTP e da sua posterior e tardia transformação em MLSTP.
Por outro lado, é sempre de se ter em conta a preocupação maior e permanente de Amílcar Cabral com a componente participativa, democrática e popular do Estado a erigir e implantar nos nossos países independentes e soberanos. É assim que, antecipando a emergência de um regime político de partido único socializante, pelo menos e em especial na Guiné-Bissau, em face das circunstâncias específicas atinentes à condução de uma luta político-armada vitoriosa e da constituição do PAIGC em Partido-Estado nas áreas/zona/regiões libertadas do mesmo país, diz o líder caboverdiano/bissau-guineense aos congressistas norte-americanos que o interpelaram a esse propósito:
“Conseguimos uma das mais importantes realizações no quadro da nossa luta - as primeiras eleições gerais realizadas no nosso país, a criação dos conselhos regionais e da primeira Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau.
Posso dizer-vos que não sonhámos para realizar isto. Não se trata do resultado de um sonho de Cabral. Foi uma necessidade que resultou da luta. Uma necessidade para nos impor, no Partido, limites à nossa própria acção, possibilidades de exercer controle sobre nós, pois, no quadro do desenvolvimento da luta de libertação, se não for simultaneamente criado algo para ajudar a agir sempre corretamente talvez se estejam a criar as condições para a sua própria derrota. E a melhor maneira de colocar limites a nós mesmos é criar as condições para o povo nos colocar esses limites.
Dito de outro modo, temos de ser muito consequentes com os nossos princípios. Queremos que o nosso povo assuma gradualmente a autoridade da sua vida. Para tal o Partido não é suficiente. É muito perigoso o facto de que, nas nossas condições históricas, tenhamos de ter apenas um partido. É necessário criar algum órgão, algum instrumento que transmita às pessoas a consciência efetiva de que são elas as donas do seu próprio destino.
Sim, é verdade que hoje afirmamos que toda a gente está no Partido. Se disser a algumas pessoas que elas não são do Partido ficarão furiosas.
Mas, ao mesmo tempo, é necessário criar qualquer coisa de novo com vista a desenvolver o que poderemos, em linguagem clássica, chamar de ‘democracia prática ’ no nosso país.(“Conversando com Amigos Americanos” in Amilcar Cabral-A Luta Criou Raízes, edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2018).
Relembre-se neste contexto que, sem o nomear expressa e explicitamente, esta componente participativa, democrática e popular tinha como pressuposto a prevenção e a repressão de um qualquer despotismo político-militar ou de uma qualquer forma de facciosa tirania partidária, protagonizados por dirigentes e responsáveis político-militares transfigurados em sanguinários e arbitrários chefes de guerra, e que, a haver e havendo efectivamente, constituiriam certamente indesejáveis expressões de um Estado de não direito ou de um Estado de contra direito, ainda que embrionariamente. Pelo contrário, desde o histórico Congresso de Cassacá do PAIGC, de 1964, que o PAIGC e o seu líder Amílcar Cabral envidaram esforços assinaláveis para extirpar definitivamente do cenário da luta político-armada na Guiné dita Portuguesa os abusos, a prepotência e as arbitrariedades dos responsáveis político-militares do Partido que, nas zonas libertadas por eles controladas, se tinham transformado em autênticos régulos e déspotas, em total desconformidade e inobservância das Palavras de Ordem Gerais do Partido e das leis vigentes nas zonas libertadas, quer no que se refere ao respeito devido no relacionamento dos responsáveis e militantes armados do partido com as populações civis e com os prisioneiros de guerra portugueses, quer no se refere à condução da própria guerra, quer ainda no que se refere à dignificação das pessoas e da criação das condições para a efectiva igualdade de todos em todas as esferas da vida pública e da vida privada. Tal é particularmente verosímil, verdadeiro e relevante no que respeita à pugna de Amílcar Cabral em prol da emancipação das mulheres, pelo respeito das crenças religiosas dos militantes e combatentes do partido e das populações em geral, mesmo se discordando delas, pelos esforços envidados para a melhoria da suas condições de vida mediante a disseminação do ensino, dos cuidados de saúde e do abastecimento em bens essenciais, mesmo em situação de guerra, bem como para o aumento e a melhoria da sua consciência cívica de cidadãos de um novo país, no qual o poder devia ser do povo, para o povo e pelo povo, em necessária decorrência da luta do povo, pelo povo e para o povo e devidamente concretizado em organismos políticos, judiciários e de gestão corrente dos próprios assuntos do seu imediato interesse e em outras instituições representativas das populações, mesmo que de forma ainda assaz embrionária e incipiente. Tudo isso que acaba de ser referido e colhido das obras de Amílcar Cabral e da sua excepcional liderança da luta político-armada do PAIGC constituiu-se em conquistas incomensuráveis num país, a Guiné dita Portuguesa, em que, até 1960, mais de 90% dos seus habitantes estavam sujeitos ao abjecto estatuto do indigenato, a trabalhos forçados, a açoites, prisões arbitrárias e a todos os abusos e arbítrios das autoridades coloniais e dos seus representantes e agentes locais, incluindo, até, execuções sumárias, assim consubstanciando o poder político e a administração coloniais (esses sim!) autênticas, genuínas e verdadeiras expressões de um Estado de não direito ou um Estado de contra-direito, tal como, aliás, o próprio Amílcar Cabral tinha denunciado em 1960, em Londres, no impressionante documento intitulado A Verdade/Factos sobre as Colónias Africanas de Portugal, com vista a, deliberadamente, quebrar o Muro de Silêncio à volta de um pretensamente idílico colonialismo português de teor luso-tropical. Como é também do conhecimento geral, os dirigentes, responsáveis e militantes do PAIGC seriam sujeitos a torturas, sevícias, assassinatos, prisões e deportações e, depois de iniciada e consolidadada a luta político-armada de libertação binacional, vindo as mesmas populações bissau-guineenses acima referidas a ser objecto de massacres, bombardeamentos, assaltos aéreos terroristas, incêndio das suas culturas e de outros crimes de guerra e de crimes contra a humanidade impiedosamente perpetrados pelas forças policiais e militares colonialistas portuguesas.
Como é por demais sabido, toda a gesta libertadora do PAIGC liderado por Amílcar Cabral visava a promoção e a defesa não só do Direito Internacional Público, o qual, desde a aprovação da Resolução 1514 (XV), de 14 de Dezembro de 1960, da Assembleia-Geral da ONU, fornecia uma sólida e insofismável base legal à luta dos povos colonizados para o exercício do seu direito à autodeterminação e independência política, mas também para a sedimentação, na vindoura Guiné-Bissau e no futuro Cabo Verde independentes e soberanos, dos mais elementares, inalienáveis e imprescritíveis direitos humanos e liberdades fundamentais, a que, aliás, somente com o desencadeamento da luta político-armada de libertação binacional as populações da Guiné-Bissau puderam aceder e começar a usufruir de forma alargada e em medida incomensuravelmente mais extensa do que no período colonial-fascista português.
Por outro lado, são conhecidas as genuínas preocupações de Amílcar Cabral com as questões relativas ao exercício democrático do poder político na administração das zonas/regiões libertadas pelo Estado nascente e ainda muito marcado pela ambivalente fisionomia de um Partido/Estado, mediante uma crescente participação popular na mesma administração, bem como com a salvaguarda do respeito dos direitos humanos e a garantia das liberdades fundamentais no funcionamento dos órgãos do Partido/Estado e no seu relacionamento com as populações dessas mesmas zonas/regiões libertadas.
É assim que no Seminário de Quadros, de 1969, o líder político-militar caboverdiano/bissau-guineense explanou o seu posicionamento, que era o posicionamento do PAIGC, sobre a questão do Estado colonial versus Estado pós-colonial, nos seguintes termos:
“Pretendemos destruir toda a possibilidade de que, amanhã, aqueles que libertaram a terra ou outros abusem do nosso povo. O nosso objectivo não pode ser tomar conta do palácio do governador, da casa do administrador ou do chefe de posto para fazermos o mesmo que eles faziam. O nosso objectivo é destruir o Estado colonial para criarmos um novo Estado, diferente, na base da justiça, do trabalho e da igualdade de oportunidades para todos os filhos da nossa terra, a Guiné e Cabo Verde. Queremos portanto eliminar tudo quanto seja um obstáculo ao progresso do nosso povo, todas as relações que na nossa sociedade sejam contra o progresso e a liberdade do nosso povo. Ao fim e ao cabo, queremos oferecer possibilidades concretas e iguais a qualquer filho da nossa terra, homem ou mulher, para avançar como ser humano, dar tudo da sua capacidade, desenvolver o seu físico e o seu espírito, em resumo ser um ser humano à altura da sua capacidade” (in “Alguns Tipos de Resistência - Resistência Política”, in obra acima citada A Luta Criou Raízes).
No que se refere mais especificamente à questão do Estado pós-colonial, parecem-nos assaz pertinentes e premonitórias as seguintes reflexões de Amílcar Cabral: “Devemos fixar, portanto, em cada momento desta grande luta que estamos a fazer, duas etapas: uma, contra as classes dirigentes capitalistas colonialistas de Portugal e o imperialismo, que querem dominar a nossa terra económica e politicamente; outra, contra todas as forças dentro da nossa terra, forças materiais ou ideias que possam levantar-se contra o progresso do nosso povo no caminho da liberdade, da independência e da justiça”
“O nosso objectivo é fazer o progresso e a felicidade do nosso povo, mas nós não podemos fazê-lo contra a vontade do nosso povo. Ora se alguns da nossa terra não querem isso, ou eles não são o povo, e então nós podemos fazer tudo contra eles e talvez mesmo os ponhamos na cadeia, ou eles são muitos e representam o povo e, nessa altura, não podemos fazer nada, porque não se pode fazer o progresso e a felicidade de alguém contra a sua vontade”.
“Hoje, os filhos do mato que ontem não tinham opinião nenhuma em relação à sua própria vida e ao seu destino podem dar a sua opinião, podem decidir através dos comités do Partido até aos tribunais populares, nos quais mostraram capacidade de julgar os erros, os crimes e outras falhas cometidas por outros filhos da nossa terra. Esta é mais uma prova clara que esta luta é do nosso povo, feita pelo nosso povo e para o nosso povo”.
Referindo-se logo a seguir ao emprego da violência no relacionamento entre as pessoas, em especial com as crianças, diz Amílcar Cabral, de modo simultaneamente peremptório e pedagógico, ele que tinha consciência que, nessa altura, ainda se vivia em pleno estado de guerra no território martirizado da então Guiné dita Portuguesa: “Não queremos na nossa terra, amanhã, que os filhos tenham medo dos pais (…), pois o que devem ter é respeito. Já não aceitamos que se amarrem crianças para lhes baterem (…) Não queremos que se amarre ninguém para lhe bater. Os que são bandidos, que não prestam, serão julgados e, se for preciso, fuzilados, mas não serão tratados como cães. Não admitimos mais que na nossa terra se tratem seres humanos como cães. O nosso trabalho, na nossa resistência, é destruir tudo quanto faça de gente, homens e mulheres, cães, para deixarmos levantar, avançar, crescer, como as flores, tudo quanto possa fazer da nossa gente seres humanos de valor. É este o nosso trabalho, camaradas. Se não entenderam isso, ainda não entenderam nada” (in “Alguns Tipos de Resistência -Resistência Política”, in obra acima referida A Luta Criou Raízes).
Um pouco mais à frente, acrescenta o mesmo líder político-militar: “Amanhã, não podemos aceitar na nossa terra os abusos e os privilégios de grupos e de grupinhos. Não vamos libertar o nosso povo só dos colonialistas, mas de tudo quanto o prejudique no caminho do progresso. Temos de eliminar a ignorância, a falta de saúde e toda a espécie de medo, gradativamente. (…) Quando conseguirmos isso, teremos libertado verdadeiramente o povo da nossa terra, porque a maior pressão que existe sobre um povo não é do colonialista, não é a falta de trabalho, mas sim o medo. Medo de passar fome, de não ter trabalho, de doenças, de pancada, de ser deportado para São Tomé” (in “Alguns Tipos de Resistência -Resistência Política” , in obra acima referida A Luta Criou Raízes).
Ainda a propósito do respeito requerido e exigível aos direitos humanos, reitera Amílcar Cabral: “Temos de evitar na nossa luta tudo quanto possa diminuir a dignidade do ser humano. O Partido proíbe na nossa luta tudo quanto possa ser crime, manifestação de ódio ou sede de sangue» (in “Alguns Tipos de Resistência -Resistência Armada” , in obra acima referida A Luta Criou Raízes).
No que concerne especificamente à necessidade da existência, durante a luta político-armada, de tribunais populares de diferentes níveis, em especial de tribunais populares de tabanca, Amílcar Cabral pôde dissertar no acima referido Seminário de Quadros de 1969 e explanar a sua visão da problemática judiciária nos seguintes termos:
“Eu mesmo fiz e escrevi as regras para se estabelecerem os tribunais populares na nossa terra, indicando quem deve fazer parte do tribunal popular, como é que deve ser organizado, ao nível da tabanca, da Zona e da Inter-Região. Qual é a função destes tribunais populares? O tribunal popular de tabanca não é para julgar grandes casos de justiça. É como se fosse um tribunal de paz, um juizado de paz, como se diz em português. Nós queremos fazê-lo colectivamente, com um grupo de pessoas da nossa terra. Para resolver que casos? Por exemplo, desavenças, brigas entre dua pessoas ou alguém que roubou qualquer coisa. A questão, por exemplo, dos casamentos da terra, em que as raparigas não querem casar com os velhos que os pais escolheram e protestam. O tribunal resolve isso, de acordo com os costumes também, respeitando-os um bocado. O tribunal popular de tabanca é para compor as coisas, ajudando as pessoas. Isso está escrito no papel que dei ao Fidélis. Aliás, o documento foi elaborado de acordo com o Fidélis, o Araújo e outros camaradas do Partido que são advogados. Mas eu trabalhei nisso também, porque tenho de salvaguardar a linha do Partido. Embora não seja advogado, tenho a obrigação como dirigente do Partido de conhecer as coisas”.
Todavia é no excerto seguinte da intervenção de Amílcar Cabral que se torna nítida a preocupação do mesmo teórico e líder político-militar com a existência de tribunais independentes, mesmo no contexto da condução da luta político-armada e da existência de um Partido-Estado, com inabalável proeminência dos órgãos do Partido em relação aos órgãos do Estado. O carismático ideólogo do PAIGC começa por se interrogar, para, a seguir, explanar circunstanciadamente e, a final, tirar as devidas ilações da sua explanação: “Mas o tribunal deve ser o comité do Partido? Pode ser. Durante muito tempo, o tribunal foi o comité do Partido. Naquela época foi assim. Mas na medida em que o trabalho do comité do Partido aumentou muito, tem de estar sempre em movimento. O comité de tabanca tem de ajudar em muitas coisas como abastecimento, cultura, educação, etc., e as coisas complicaram-se. Além disso, é preciso que mais gente da tabanca sinta que tem alguma autoridade. Uma questão nova e também podem dizer alguma coisa, dar a sua contribuição sobre essa questão.
Então dissemos que se evitasse pôr gente do comité de tabanca no tribunal popular, que se escolhessem na tabanca pessoas que têm dedicação ao Partido e, por outro lado, merecem o respeito da população em geral. Que não sejam malandros, nem bandidos, para não entregarmos nas mãos deles a função de julgar outras pessoas.
O tribunal popular tem uma função, de acordo com o caso que aparece, de ajudar, enquanto o comité do partido tem uma função permanente. Um é trabalho político, económico, cultural, sanitário, social, portanto. O outro é trabalho de justiça, porque como já avançamos na nossa vida e na nossa luta, procuramos distinguir o político da justiça. Estamos a procurar separar, lentamente, o Estado da Justiça. Mas na nossa terra, a Justiça por mais que se separe do Estado, tem sempre de obedecer aos princípios fundamentais do Estado, quer dizer à linha política do nosso Partido.
Nós não temos conveniência em pôr membros do Comité do Partido a julgar casos concretos, porque alguns deles podem abusar. Se um dia, um membro do Comité do Partido proceder mal, como vai ser? Ele é juiz e acusado ao mesmo tempo?
Mas, tens razão, a autoridade principal não é o tribunal em nenhuma parte do mundo. O tribunal é um julgador do comportamento de um homem ou de um grupo de homens, em função das leis estabelecidas. As nossas leis para julgar os casos a nível da tabanca são os costumes da nossa terra, por um lado, mas melhorados pelas leis em geral e pelos princípios do Partido. Já o Tribunal de Zona e o Tribunal Inter-Regional trabalham na base da Lei da Justiça Militar, porque tratam de casos mais graves, como matar alguém, fazer grandes roubos, provocar incêndios ou ser agente dos colonialistas”.
11. Por tudo o que foi sendo aduzido no que se refere às preocupações de Amílcar Cabral relativamente ao respeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, parece-nos claramente impertinente, manifestamente exagerada e/ou por demais excessiva a asserção de Carlos Veiga segundo a qual o conceito de democracia revolucionária de Amílcar Cabral seria, por assim dizer, o perverso núcleo irradiador de um Estado de não direito ou de um Estado de contra-direito, devidamente consubstanciado no Partido-Estado, no qual o PAIGC liderado pelo mesmo Amílcar Cabral se tinha transformado nas zonas/regiões libertadas da Guiné-Bissau. O nosso juízo de valor negativo ou, pelo menos, discordante a propósito da asserção primacialmente política de Carlos Veiga sobre uma das componentes mais cruciais do pensamento político-ideológico de Amílcar Cabral parece-nos ainda e tanto mais pertinente se levarmos em conta que esse mesmo Partido-Estado era, segundo as palavras do próprio Amílcar Cabral, “um Estado em formação e desenvolvimento” e cuja proclamação unilateral visaria essencialmente a alteração radical do estatuto político e jurídico-internacional do seu país natal com a respectiva transição da condição de uma colónia portuguesa denominada Guiné Portuguesa para um país soberano e independente orgulhosamente denominado Guiné-Bissau e com uma parte do seu território nacional - constituida essencialmente pelos centros urbanos e pelas ilhas (Bissau, Bolama e arquipélago dos Bijagós) - ocupada pelo poder colonial português, doravante transfigurada em potência estrangeira agressora. Como é sabido e já foi anteriormente referido, tal desiderato de Amílcar Cabral, posteriormente realizado integralmente pelos seus sucessores, apóstolos, discípulos e seguidores do PAIGC, depois do seu bárbaro e traiçoeiro assassinato, a 20 de Janeiro de 1973, em Conacri, constituiu uma notável e inovadora contribuição do carismático líder caboverdiano/bissau-guineense para o desenvolvimento do Direito Internacional Público, em especial daquele relativo ao exercício do direito dos povos colonizados à autodeterminação e independência política.
12. Desde a apresentação da por demais surpreendente proposta constante do Memorando apresentado ao Governo português, em Dezembro de 1960, o PAIGC pôde encetar, desenvolver e consolidar, com muito êxito e inegável sucesso, uma luta político-armada de longa duração que lhe granjeou imenso prestígio na arena político-diplomática mundial e o correlativo reconhecimento internacional como único e legítimo representante dos povos da Guiné e de Cabo Verde, primeiramente, em 1965, junto da OUA (Organização da Unidade Africana), depois, em 1972, junto da ONU (Organização das Nações Unidas), que, depois de ter enviado uma sua Missão Especial às zonas libertadas da Guiné-Bissau, reconheceu o PAIGC como membro observador da ONU, seguindo-se o reconhecimento pela OUA, em Novembro de 1973, do Estado independente e soberano da Guiné-Bissau, proclamado unilateralmente, a 24 de Setembro de 1973, por uma Assembleia Nacional Popular (ANP), eleita indirectamente por deputados integrantes dos Conselhos Regionais, eleitos directamente por sufrágio universal, directo, igual e secreto pelas populações das zonas libertadas e pelas comunidades de emigrantes bissau-guineenses radicadas nos países vizinhos e amigos, e dotada de poderes soberanos, constituintes e legislativos, bem como de poderes de designação de um poder executivo constituído por uma chefia de Estado colectiva denominada Conselho de Estado e por um Governo denominado Conselho dos Comissários do Estado. Ademais, a Assembleia-Geral da ONU reiterara o seu reconhecimento do PAIGC como único e legítimo representante do povo de Cabo Verde em princípios de Abril de 1974, depois da apresentação, em fins de Março de 1974, de um Relatório sobre a Situação em Cabo Verde por uma Delegação do PAIGC chefiada por Abílio Duarte, membro do Comité Executivo da Luta (CEL) do mesmo partido/movimento de libertação binacional.
Se é verdade que, interpretando a putativa vontade de Amílcar Cabral, seria impossível para o PAIGC retomar para a Guiné-Bissau o plano constante do Memorando Apresentado ao Governo Português, em Dezembro de 1960, pois que para a Guiné-Bissau a questão passou a reduzir-se essencialmente ao reconhecimento de jure pelo Governo português da República da Guiné-Bissau, na altura já gozando de amplo e sólido reconhecimento internacional, para Cabo Verde a situação era completamente diferente. Apesar de no Acordo de Argel celebrado entre o Governo Provisório Português e o PAIGC, a 25 de Agosto de 1974, para o reconhecimento de jure, a 10 de Setembro de 1974, pelas autoridades políticas portuguesas da independência política da República da Guiné-Bissau, o Governo português ter também reconhecido o direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e independência política, as mesmas autoridades políticas portuguesas mantinham alguma relutância em reconhecer o PAIGC como único e legítimo representante do povo de Cabo Verde, tal como tinha ocorrido com a OUA e a ONU, e, nesse contexto, mormente quando ainda estavam em cena os apoiantes das teses spinolistas, insistiam na realização em Cabo Verde de um referendo de autodeterminação política com a participação dos três partidos políticos então presentes no cenário político caboverdiano, designadamente o PAIGC, a UPICV e a UDC. A isso opunha-se o PAIGC, aliás, com inusitadas veemência e firmeza, alegando e contrapondo com o seu reconhecimento internacional como único e legítimo representante do povo de Cabo Verde, considerando ademais que os outros dois partidos caboverdianos eram partidos fantoches e pouco representativos. Os representantes do MFA (Movimento das Forças Armadas) presentes em Cabo Verde comungavam do mesmo posicionamento político defendido pelo PAIGC, tendo, ademais, apresentado um ultimato ao Governo Provisório de Lisboa, ameaçando-o com a entrega imediata e a correlativa transferência ao PAIGC dos poderes soberanos que Portugal detinha sobre Cabo Verde. Neste contexto, o Governo Provisório Português não teve outro remédio senão iniciar as conversações com o PAIGC, as quais culminaram na celebração dos chamados Acordos de Lisboa, de 19 de Dezembro de 1974, e que, como é sabido, instituíram (tal como, aliás, a Lei Orgânica do Estado de Cabo Verde, adoptado a 17 de Dezembro de 1974, pelas autoridades políticas soberanas portuguesas, com o acordo prévio do PAIGC) um Governo de Transição para a Independência Política de Cabo Verde, nomeado pelo Presidente da República Portuguesa, integrado por sete Ministérios, constituído por três Ministros designados pelo PAIGC, dois Ministros designados pelo Governo Provisório Português e chefiado por um Alto-Comissário português, tendo o mesmo Governo de Transição do Estado de Cabo Verde tomado posse a 31 de Dezembro de 1974. Ademais, os Acordos de Lisboa marcaram a data do evento político maior da História da nova República para 5 de Julho de 1975, devendo a proclamação da independência política e da soberania nacional e internacional da nova República de Cabo Verde ser protagonizada por uma Assembleia Representativa do Povo Caboverdiano, a ser eleita, nos termos constantes da correspondente Lei Eleitoral, aprovada em Abril de 1975, pelas autoridades política soberanas portuguesas competentes, a 30 de Junho de 1975, por sufrágio pluralista, universal, directo, igual e secreto e por voto maioritário em cada um dos círculos eleitorais em listas plurinominais e solidárias apresentadas por grupos independentes de cidadãos. Estamos em crer que o PAIGC gozava de toda a legitimidade, quer a histórica, quer a internacional, para ser o único interlocutor do Governo Português nas negociações conducentes à independência política e à soberania nacional e internacional do nosso país, mas também estamos em crer que o cenário político prevalecente em Cabo Verde em inícios de Dezembro de 1974 correspondia exactamente àquele desenhado por Amílcar Cabral no seu já muito referido Memorando ao Governo Português, de Dezembro de 1960. Por isso, acreditamos que teria sido possível realizar eleições livres e democráticas para a Assembleia Representativa do Povo Caboverdiano e prevista no Acordo de Lisboa, de 19 de Dezembro de 1974, com a participação de todos os partidos políticos presentes na altura no cenário político caboverdiano e não, ou não só, unicamente com a participação de grupos independentes de cidadãos, depois de terem sido interditadas as actividades da UPICV e da UDC e de alguns dos seus dirigentes e membros terem sido encarcerados no presídio político do Tarrafal. Não estando de maneira nenhuma em causa a concretização efectiva da independência política de Cabo Verde na data e nos moldes em que realmente veio a ocorrer, com previsível vitória esmagadora do PAIGC, as eleições legislativas de 30 de Junho de 1975 não teriam todavia sido um mero referendo/plebiscito às listas de grupos de cidadãos, afinal completamente dominados e controlados pelo PAIGC, mas eleições verdadeiramente livres e democráticas, mesmo que com a participação exclusiva de grupos independentes de cidadãos, mas influenciados e/ou determinados na sua composição por todos os três partidos políticos, presentes em inícios do mês de Dezembro de 1974, no cenário político caboverdiano. Contra esse cenário, alta e efectivamente democrático, posicionaram-se consabidamente todas as correntes político-ideológicas presentes no ramo caboverdiano do PAIGC, designadamente a democrático-revolucionária (também denominada nacionalista revolucionária por Jorge Carlos Fonseca), de feição cabralista, vindas das duas Guinés e emergentes da clandestinidade política e da luta legal de massas em Cabo Verde, em Portugal e em outros países, tal como, aliás, as correntes trotskista, luxemburguista, maoista, estalinista, marxista-leninista, nacionalista moderada e outras similares inominadas, também emergentes da luta política clandestina, semilegal e legal de massas conduzida pelo PAIGC em Cabo Verde, Portugal e outros países, como acima referido. Todas essas correntes e sensibilidades político-ideológicas, salvo quiçá a nacionalista moderada representada por Manuel (Lela) Rodrigues, parecem ter esquecido e ignorado (e/ou, talvez, até desconhecido) completamente o plano constante do Memorando do PAIGC apresentado ao Governo português, em Dezembro de 1960, e que, afinal, se aplicou em vários casos similares ao da ambiência democrática existente em Cabo Verde do período imediatamente posterior ao 25 de Abril de 1974 até aos inícios do mês de Dezembro de 1974. Perderam sobremaneira Cabo Verde e o povo caboverdiano, sobretudo em ganhos históricos de execução política de experiências em democracia pluralista. Não por causa de Amílcar Cabral, mas apesar de Amílcar Cabral e do seu plano de transição plenamente democrática para a nossa independência política, de matriz indubitavelmente democrático-liberal, hoje tão justamente incensada e festejada!