Reparar na língua é fazer cumprir Abril.

Para quando o reconhecimento da língua cabo-verdiana em Portugal? 

Celebra-se hoje o Dia Internacional da Língua Materna, uma iniciativa lançada pelo Bangladesh e adoptada pela UNESCO em 1999. Contudo, as origens deste amplo movimento internacional em defesa das línguas remonta a 1948, quando o então governo do Paquistão - resultado do desmoronamento do Império Britânico -, declarou o urdu e o inglês como únicas línguas oficiais, na tentativa de unificar um país gigantesco formado por uma diversidade de comunidades linguísticas. Tal como no caso do levante de Soweto numa África do Sul do apartheid, no qual os estudantes protagonizaram uma das maiores lutas em defesa da língua no continente africano, também no caso do então Paquistão Oriental (atual Bangladesh), os estudantes estiveram na linha da frente de um movimento que seria posteriormente potenciado pela Liga Awami, uma das maiores forças políticas da época, num processo revolucionário que culminou na independência do Bangladesh.

Da mesma forma que o Dia da Criança Africana, a 16 de junho, relembra e celebra a memória dos estudantes que foram massacrados pelo braço armado do regime do Apartheid no Sweto, também o Dia Internacional da Língua Materna celebra a memória dos estudantes da Universidade de Daca assassinados pela força policial na manifestação de 21 de fevereiro de 1952.

O tema lançado pela UNESCO este ano é “As línguas importam”. O paralelo com o hashtag BlackLivesMatter, hoje um dos principais movimentos de luta anti-racista da atualidade, não é mera opção estilística. Entre a língua e a vida, existe imperativo e urgência. As conexões de ordem política dão-se na medida em que as línguas não meros instrumentos de comunicação, mas sim o principal património da nossa existência. Todas, sem excepção, formam a biblioteca-mundo onde estão preservadas memórias, saberes, imaginários, isto é, a totalidade de tudo o que nos constitui como partes integrantes desta comunidade terrestre. 

Todavia, segundo a UNESCO cerca de 40% das 7000 línguas faladas no mundo estão em vias de extinção. As causas deste glotocídio são várias mas a maior delas será a tentativa geopolítica de hierarquizar e transformar certas línguas em autênticas armas de extinção. Quando se oblitera uma língua, oblitera-se uma parte da nossa existência, amputa-se um membro insubstituível do imenso corpo que é a humanidade. E quando registos de línguas desaparecem, como no catastrófico incêndio que aconteceu em 2018 no Museu Nacional do Rio de Janeiro, onde acervos linguísticos únicos, como os cantos em muitas línguas dos povos indígenas hoje sem falantes vivos, ficamos mais parcos.

Portanto, a questão linguística - a descolonização das suas hierarquias, a sua preservação e difusão - deveria estar no centro dos nossos interesses.

O colonialismo, objetivando quase sempre fenómenos de monocultura, foi um dos principais fatores do desaparecimento ou da marginalização das línguas do Sul Global. Se hoje línguas como o português, o inglês e o francês figuram na lista das línguas oficiais de instituições nacionais e internacionais, não é mero acaso. Na sua obra Decolonising the Mind, o escritor Ngũgĩ wa Thiong’o fala do poder bélico que as línguas, por via da educação e da escola em particular, tinham, funcionando duplamente como canhão de destruição e como íman de atração. Como íman, o seu papel era muitas vezes mais letal, porque ia destruindo lentamente as culturas africanas, subalternizando as línguas naturais locais, ao mesmo tempo que erigia as línguas da conquista em  monólitos fálicos, autênticas Torres de Babel. 

É exatamente isto que o colonialismo fez. Em países como a Guiné-Bissau, onde existiu o estatuto do indigenato, ou Cabo Verde onde vigorou o processo dd ladinização, encontramos decretos-lei que proibiam expressamente as pessoas de falarem crioulo. Falar crioulo ou língua cabo-verdiana como prefiro dizer por opção política, era considerado um atentado contra a civilização portuguesa, um ato execrável digno de punição. Quantas palmatórias terão recebido dos “Prósperos” lusitanos, os Calibans cabo-verdianos para aprenderem a língua da “civilização”?  

Penso que a língua é uma das unidades mais interessantes para analisar a questão da colonialidade. Em 2022, a Escola Portuguesa da Praia, uma instituição estrangeira, teve a ousadia de, violando princípios de soberania e direitos fundamentais básicos da nossa Constituição, “em prol do bom português”, proibir os seus alunos cabo-verdianos de falar “crioulo nos recreios”. A situação não é diferente em Portugal, onde existem vários relatos da classe trabalhadora que se vê amordaçada quando fala cabo-verdiano com os colegas de trabalho. Sobre este racismo linguístico, o SOS Racismo já recebeu várias queixas. E as escolas? O que nos consola é que combatentes pela causa linguística, como a professora Ana Josefa Cardoso, nunca pousam as armas na defesa da educação plurilingue.

  

A proibição do direito à fala na sua língua materna é um gravíssimo atentado ao direito de existir. A Declaração Universal dos Direitos Linguísticos de 1996, no seu artigo terceiro, diz que todas as comunidades linguísticas têm direito ao reconhecimento, não podendo ser impedidas de fazer uso das suas línguas naturais ou maternas. Portugal, que é salvo erro signatário desta declaração, tem estado em situação de incumprimento. 

Em 2023, na Oficina de Reparações do Porto a convite da investigadora Kitty Furtado, participei, junto com um conjunto de pessoas, na elaboração da Declaração do Porto: Reparar o Irreparável. Um documento propositivo em matéria de reparação que elenca cerca de 20 medidas concretas a serem adoptadas pelas instituições portuguesas. Entre as propostas encontra-se o «Reconhecimento do cabo-verdiano enquanto língua nacional, à semelhança do mirandês, e difusão da diversidade linguística que habita o país, através da promoção de políticas públicas do seu ensino».

A diáspora cabo-verdiana é muitas vezes referida como a 11ª ilha do país. Trata-se de uma enorme comunidade linguística espalhada pelo mundo e que tem contribuído imenso para a constante revitalização e renovação da língua.
Em Portugal esta diáspora forma, no seu todo, um Cabo Verde inteiro dentro de Portugal. Não é por acaso que se fala por exemplo, da “ilha da Cova da Moura”. A presença do povo cabo-verdiano em Portugal assume uma dimensão arquipelágica que faz de cada bairro, cada comunidade, ligada pela língua. Essas ilhas cabo-verdianas dentro de uma metrópole ainda colonial reconfiguram uma autêntica zona libertada onde homens e mulheres de gerações diferentes não cessam de se afirmar a sua existência. Não será exagerado comparar uma horta urbana cabo-verdiana com um jardim crioulo na acepção glissantiana. Todos esses lugares de sementeira são insurgências silenciosas contra a plantação, contra a monocultura (linguística). A música é um dos maiores veículos de polinização deste territórios arquipelágicos que nos ligam. O batuku, por exemplo, terreiro impossuível, opaco para as línguas da conquista, é quiçá um dos exemplos mais potentes disso. Na sua imaginação radical, as batukadeiras, através da palavra cantada, como que num ato de encantamento eternizam a língua nas linhas do tempo.  

Não se pode negar a presença da língua cabo-verdiana e o que ela representa enquanto contributo imprescindível para a construção de uma outra sociedade aqui em Portugal. Numa altura em que se colocam tantos obstáculos aos debates sobre a reparação, e em os que monstros da história, que pensávamos a definhar, ressurgem com força, atentar ao estatuto que esta língua tem aqui em Portugal e reconhecê-la de jure, oferece uma oportunidade concreta para fazer cumprir Abril. 

Não basta apenas traduzir textos políticos ou artísticos em cabo-verdiano. O reconhecimento deve ser de ordem jurídica e, porque não, constitucional?

As comunidades linguísticas cabo-verdiana, guineense, bengali, entre outras, representam todo um arquivo de saberes, imaginários, sonhos, sons e sabores de reconstrução e preservação da nossa pluralidade. 

Ser poroso, ou melhor, absorver este tipo de contributos, alavanca todas as lutas. 

Reparar na língua é reparar a relação. É abrir um campo de possibilidades. É efectivar a descolonização na prática.
Reparar nas línguas é reparar a própria humanidade.

Sim, as vidas negras importam! Sim, as línguas africanas importam! 

por Apolo de Carvalho
A ler | 22 Fevereiro 2025 | caboverdiano, crioulo, Declaração do Porto, direitos, língua, oficina das reparações