Nu sta djuntu ou uma política de amor revolucionário
Uma política de amor revolucionário (nu sta junto1) é a proposta da franco-argelina Houria Bouteldja, no seu Livro Os brancos os Judeus e Nós: Rumo a uma política de amor revolucionário2, publicado em 2015 pelas edições La Fabrique.
Membro fundador e representante do partido Les Indignes de la Republique3, H. Bouteldja4, é uma ativista decolonial, anti-imperialista e anti-sionista, cuja militância política se estriba na denúncia contra o racismo de Estado que estrutura a sociedade francesa.
Autora do apelo “Nós somos os indígenas da República” que, em maio de 2005, promoveu em França a primeira grande marcha em memória ao massacre de Setif, perpetrado pelo governo colonial francês a 8 de maio de 1945 (ironicamente a data da capitulação dos Nazis que comemorava o fim da Segunda Guerra Mundial), H. Bouteldja tem sido uma das vozes mais críticas contra as políticas integracionistas da República Hexagonal, por ela considerada um Estado neocolonial, imperialista, estruturalmente racista e filosemita.
Numa França atravessada por clivagens várias e confrontada com as mais diversas contradições sociais (reforçadas por medidas legislativas - lei anti-terrorismo - que prolongam um “regime de exceção”), onde as comunidades racializadas e historicamente marginalizadas têm sido eleitas como alvos por parte de Estado cada vez mais securizado, que despolitiza e descredibiliza qualquer debate sobre o racismo, a voz desta militante que se afirma indígena da república, tem incomodado toda uma classe política e mediática francesa, a preço de uma verdadeira hostilização contra a sua pessoa.
O livro Os brancos os judeus e nós: Rumo à uma Política de amor revolucionário, autêntico manifesto decolonial, é um ensaio ousado, de uma mulher de origem magrebina, de confissão muçulmana, com nacionalidade francesa, que recusa todo e qualquer hermetismo que lhe tem sido atribuído propondo o amor Revolucionário, uma espécie de política dos afetos, como único caminho viável para uma paz de facto entre os brancos e os corpos por estes racializados.
Nesta obra, a autora, que escreve na primeira pessoa, recorre a narrativas de cariz biográfico, nomeadamente memórias da sua infância e a uma conjunto de pensamentos de autores e militantes negros como Baldwin, Césaire, Fanon, Malcom X, CLR James, Audre Lorde etc, e a conceitos de todo um “campo semântico-léxical decolonial”, para produzir o ensaio, oferecendo uma leitura fluida e envolvente, rica nas abordagens e em posicionamentos originais, que não nos deixam indiferentes.
Os temas são de extrema atualidade e crítica decolonial, “parafuso lógico” que encadeia toda a obra, está presente ao longo de uma análise arrojada que não hesita em evocar o “sacrílego” conceito de raça, politizando-o, assim como historicizar o feminismo e rejeitá-lo enquanto “fenómeno de exportação europeia”, criticar as narrativas dogmáticas em torno do Holocausto e rejeitar a universalização da sua memória, desmistificar a laicidade e profanar a sua consagração em dogma de Estado. Trata-se aqui de um projeto assumidamente político, reflexo dos engajamentos da autora mas que faz eco de todo um multifacetado “campo político não branco”5 que tem surgido e ocupado muitos espaços em França.
O debate sobre branquitude enquanto sistema e condição de privilégio se faz presente, e as categorias Branco, Judeu, Indígena, Mulher são mobilizadas enquanto categorias sociais e políticas, produtos da história, e desta feita, nas palavras da autora, “Não fazem referência a nenhuma subjetividade ou qualquer determinismo biológico dos indivíduos, mas sim sobre sua condição e status” (p13). H. Bouteldja demarca-se assim já no início da obra, das numerosas críticas que lhe têm sido feitas em espaços onde falar de racismo é ainda hoje um tabu e factor de diabolização dos militantes anti-racistas6.
Por outro lado, ao definir estas categorias enquanto coletividades produzidas (e em alguns casos politicamente mobilizadas) a autora complexifica um debate conceptual sobre os termos que os movimentos sociais iniciaram há muito tempo e que, dentro das academias ocidentais, tem sido negligenciado para não dizer desprezado.
A obra em si é provocadora. Em 143 páginas divididas por 6 capítulos, a autora desafia e confronta os seus destinatários que identifica de forma incisiva em cada capítulo, sacudindo as suas geografias políticas de existência, expondo-os:
1º Fuzilem Sartre 2º Vocês, os brancos, 2ºVocês, os judeus, 3º Nós mulheres, as indígenas, 4º Nós, os indígenas da República e, por fim, em epílogo clama Allahou, Akbar!
“A minha experiência e a minha sensibilidade baseiam-se na história e no presente da imigração magrebina, árabe-berbere-muçulmana. É a partir desta trajetória que me expresso.” (p.13) O lugar a partir do qual a autora fala é uma geografia que ultrapassa as fronteiras hexagonais que se estendem até as suas possessões coloniais ultramarinas. A sua tribuna é uma memória e uma história, que se fazem presentes dentro de uma localidade sul que nasce no interior de um mundo norte. Um lugar de dissidência, de resistência.
“Porque escrevo esta obra?”
Esta pergunta que se repete por três vezes ao longo do primeiro capítulo é uma tripla confissão, que relembra, ironicamente, um cenário bíblico.
Escrevo “Sem dúvida, para redimir-me da minha primeira covardia de chienne de condição indígena” (p.22).
Nesta fórmula crua e dura que escandalizará alguns certamente, H. Bouteldja revela-nos a generosidade da sua escrita ao remeter-nos para a sua infância. Generosidade porque é disso que se trata quando os indígenas partilham memórias da sua intimidade. No discurso de um corpo político racializado há quase sempre algo de muito íntimo. O seu eu coletivo secreta constantemente um pouco da sua essência, é um elixir de salvação que generosamente oferta ao branco que, muitas vezes, o bebe sofregamente ignorando a composição do catártico líquido, negligenciando os rituais necessários para que o mesmo faça o devido efeito. Torna-se algo embriagante e desejam sempre mais procurando incessantemente apossar da fonte, extraí-la faze-la sua. É o que se passa aqui em Portugal. Não raras vezes, assistimos a este tipo de “safari” emocional, a transformação de um cálice de catarse, numa efémera sessão de degustação tão só. Não há comunhão, nem reciprocidade. Uma fonte nunca alimentada, repetidamente esvaziada. Em toda a luta do oprimido, há uma incomensurável generosidade expressa nas diversas formas onde se oferta não como sacrifício, mas como possibilidade de novos começos.
Assim, H. Bouteldja confessa-nos da vergonha que sentia dos seus pais face aos seus colegas da escola, a ponto de um dia pedir a estes quando a acompanhavam para ir apanhar o avião numa viagem de escola rumo aos EUA, para se esconderem de modo a não serem vistos. “Tinham aquele aspeto de gente demasiado pobre, demasiado imigrante com ares de árabe” (p.23), confessa. Ter vergonha de si, dos seus, do seu lar é, como diz a autora, “uma espécie de segunda pele, uma máscara”. Sentimento comum a muitos africanos e negros nascidos na diáspora que se debatem em dilemas identitários, com medo da estigmatização. Quantos não sentiram vergonha, não só dos seus familiares, mas do seu bairro, a ponto de muitas vezes esconderem o lugar de proveniência, da sua casa e de si? Esta vergonha alienante é o ponto comum entre os oprimidos. Aqueles que “não inventaram nem a pólvora nem a bússola”.
Ao definir-se enquanto “uma mulher moderna, integrada, que não sabe fazer a kesra e a quem foi ensinada a o orgulho de odiar a sua mãe”7 a autora revela-nos um outro inferno do indígena, a quem o corpo e mente são abduzidos, disputados e de tal forma domesticados a ponto de orgulhosamente trair os seus. O mesmo corpo que afirma pertencer “à sua família, ao seu clã, à sua raça, à Argélia, ao Islão e à sua história”, é visto como um espólio pelo Estado francês. Este, através do integracionismo, declara guerra aos seus pais e à sua comunidade. e prossegue:
“Escrevo este livro porque: Não sou inocente. Vivo em França. Moro no Ocidente. Sou Branca. Não há nada que me possa absolver” (p23).
Nesta frase lembramos Fanon: “Cada geração deve, numa relativa opacidade, descobrir a sua missão, cumpri-la ou traí-la” 8. E H. Bouteldja é “violentamente” fanoniana.
Para cumprir com a sua missão assume primeiramente a sua condição de mulher indígena, branca, detentora de certos privilégios. Ao reconhecer esta cumplicidade afirma “sou uma criminosa que subcontrata o seu crime”. Através de uma série de exemplos nomeia os privilégios, da macro à microestrutura, que fazem dos corpos que habitam a “colónia interna da metrópole” meros objetos ao dispor da “boa consciência branca”.
A boa consciência Branca é no seu dizer, aquela que repete “somos todos americanos, somos todos Charlie”. Por outras palavras, esta consciência falocrática e megalómana é a mesma que usou conceitos como o humanismo a democracia em suma, a civilização, como justificação do seu direito supremo em criar e ocupar o topo de todas as hierarquias nos céus (porque afinal, como ironiza Paulina Chiziane “Os anjos de Deus são brancos”)9 e na terra. Ou, melhor dizendo, aquela que considerou todos os valores humanos como criação sua, apanágios seus.
“Fui branqueada”, afirma, dizendo contudo não ser completamente branca. Não ser completamente branco é o drama do oprimido que aspira à branquitude. Este, como nos indica Cabral ao falar das elites colonizadas “não chega quaisquer que sejam as exceções aparentes, a franquear as barreiras impostas pelo sistema (…) enclausurados na sua condição de classe marginal ou, marginalizada” (Cabral, 2014).
Ao evocar o processo de branqueamento, a autora reforça aqui o teor político da palavra BRANCO e enquadra a sua dimensão histórica afirmando: “Estou aqui porque fui vomitada pela história. Estou aqui porque os brancos estiveram na minha casa e, desde então, numa partiram” (p.25). E vai mais longe dizendo ser “uma bastarda”, uma indígena da república, uma vítima. Bastarda, tal é o sentimento também comum a muitos jovens nascidos no Ocidente ou que passaram aqui toda a sua vida, e que não encontram um lugar de pertença. Vomitados por uma história violenta, circulam entre mundos sem muitas vezes sentir a pertença. Alguns chamam-lhe limbo, este lugar de não perteça e não existência no qual, segundo a tradição católica, aqueles que não posuem nem a graça batismal nem o pecado são jogados.
Porém, o indígena que sofre o processo de branqueamento não pertence à mesma categoria da “mão de Midas” que tudo branqueia. Ocupa o escalão mais baixo da pirâmide de opressão e, aqui, as pessoas de pele negra seriam os mais miseráveis entre os miseráveis que o branco criou.
Ao dizer-se uma aristocrata indígena, beneficiária da pilhagem feita pelo Ocidente, Houria explica este complexo sistema de opressão detentor de um sofisticado arsenal de sobrevivência branca que, histórica e sistematicmanete, usa o oprimido como carvão e cárcere de si mesmo.
Quando se reconhece como vítima, purga esta palavra hoje, objeto de vergonha e repulsa, resgatando-a de todas as engenharias de deslegitimação e conspurcação da linguagem dos oprimidos.
Vitimizar é, neste contexto, politizar a sua condição de vítima. Condição esta que é uma realidade objetiva, histórica, e não um muro das lamentações como amiúde o sistema branco nos tem feito acreditar. É-se vítima porque há um poder esmagador que oprime e estratifica as relações humanas criando uma condição de subalternidade, independentemente dos processos emancipatórios que se crie.
Vitimizar é assim, tão-somente, denunciar esta situação e produzir mecanismos de emancipação e de resistência. Não existe aqui qualquer essência, ser vítima não é uma identidade que se assume, nem um lugar que se ocupa por iniciativa.
E se é verdade que o indígena por viver no Ocidente beneficia dos privilégios aqui produzidos, trata-se apenas de um efeito colateral porque, na verdade, ele não é o destinatário principal nem secundário desses privilégios. Os verdadeiros beneficiários “são os brancos, o povo branco: proprietários da França, proletários, funcionários, classes médias. Os meus opressores” (p18).
“Porque escrevo esta obra?”, continua, “Porque partilho a angústia de Gramsci: O velho Mundo agoniza, o novo demora a surgir e, nesse claro-obscuro, irrompem os monstros” (p27).
Nesta fórmula emprestada ao filósofo político italiano, H. Bouteldja avança uma leitura crítica da modernidade eurocêntrica, suas taras e pedantismos. Esta mesma Europa de onde saíram os dois maiores e mais terríveis totalitarismos que o mundo já alguma vez conheceu, o nazismo e o fascismo. Esta mesma Europa cuja riqueza é o espólio de tantos mundos que destruiu.
Em declínio sob o plano material e ontológico, a Europa é hoje um corpo moribundo como um monstro à beira da morte, arrasta-se em convulsão, agarrando-se a um sentimento de sobrevivência, destruído tudo na sua que sabe inevitável. Porque afinal “tudo o que sobe tem de descer”.
E para se manter de pé, e no topo da hierarquia que criou, não hesita em vangloriar o seu passado colonial como um feito positivo, que beneficiou “o homem africano que nunca entrou na história” 10. Nenhuma civilização se iguala a esta detentora de todos os saberes e desígnios.
E lembra-nos Césaire “A infelicidade da África foi de um dia ter encontrado a Europa” 11e o que diriam os Incas e os Astecas e tantos outros? A esta Europa que “trapaceia com os seus princípios”, a este mundo branco que rapina e mata, H. Bouteldja pergunta: “o que oferecer em troca do inevitável declínio e das guerras que se anunciam? (…) A paz e o amor revolucionário”(p28). Responde, usando esta fórmula poética que diz ter ouvido pela primeira vez, pela voz da militante mexicana Chela Sandobal.
Não se trata de romantismo, ingenuidade ou deslumbramento, mas sim de uma busca pela honestidade política, por uma possibilidade de futuro. E isso passa pela revolução, por um outro começo.
Fuzilem Sartre!
O título da primeira parte do livro é claramente bélico e escandaliza os fervorosos leitores do grande filósofo do existencialismo. Talvez, um dos intelectuais franceses mais engajados politicamente na luta contra o racismo e colonialismo. Um dos primeiros do seu meio a posicionar-se a favor da independência da Argélia, a pérola do império francês, Sartre militou por várias causas contra o racismo e as pretensões imperialistas do Ocidente. Porém, este mesmo homem branco que acompanhou tantas lutas pela independência e que prefaciou a icónica obra Os condenados da terra de Frantz Fanon, é alvo a abater. O crime? Ter apoiado a criação do Estado de Israel e a sua armamentização. O anticolonialista tornara-se sionista, cúmplice de um hediondo crime, participando na legitimação do terrorismo de Estado decretando o assassinato de milhares de palestinianos. Segundo H. Bouteldja, Josie Fanon, viúva de Frantz Fanon terá mesmo pedido a retirada do prefácio que Sartre fizera à obra.
Para a autora, Sartre “não soube ser radicalmente traidor da sua raça”. Não soube ser Genet. Escritor, poeta e dramaturgo, Genet é um dissidente da branquitude. Recebeu com indiferença a abolição da pena de morte em França, afirmando: “que se corte a cabeça ou não a homens brancos, isto não me interessa verdadeiramente, enquanto a França mantiver uma posição imperialista e não resolver a situação dos imigrantes”. Sobre Hitler que ocupou e subjugou a França, a sua posição era de indiferença. Não por falta de empatia e solidariedade com os judeus, mas por considerar o Nazismo um efeito boomerang do colonialismo francês no mundo sul. Aqui, as palavras de Césaire que a autora convoca, fazem todo o sentido “O Nazismo é uma forma de colonização do homem branco pelo homem branco (…) um choque em retorno para os europeus, colonizadores: uma civilização que justifica a colonização, chama o seu Hitler, o seu castigo”.
Por outro lado, Genet sabe que a resistência de todo o negro, de toda a indígena, cria as condições para a sua própria salvação e não hesita em agarrar esta oportunidade, posicionando-se radicalmente ao lado desta barricada. Sartre é a imagem da moribunda esquerda europeia, a aliada que se traiu e traiu a aliança, e que morreu branco e sionista. Genet é o que deveria ser esta esquerda. Não uma aliada, mas uma camarada, parte de uma mesma luta, um traidor da branquitude, um adepto deste amor revolucionário.
Após apelar ao fuzilamento de Sartre, H. Bouteldja dirige-se ao “Eu” cartesiano.
Cogito, ergo sum
“Penso logo sou eu quem decide, eu penso logo sou eu que domina, eu penso logo sou eu quem subjuga, pilha, rouba, viola e genocida. Eu penso logo sou um homem moderno, viril, capitalista e imperialista” (p30).
“Penso logo existo.” Quem afirma é o grande pensador francês René Descartes, um homem branco, um dos pais do Iluminismo. Todos o conhecem ou são obrigados a conhecer porque á tão universal como o “Je” que formula. Este “Eu” cartesiano, segundo H. Bouteldja, iria lançar “os fundamentos filosóficos da branquitude, secularizando os atributos de Deus, transferindo-os para o deus-ocidente, que nada mais é do que uma parábola do homem branco”.
Neste capítulo intitulado “Vocês os brancos”, o estilo da escrita toma a forma de um monólogo dirigido aos Brancos. O tom é de acusação “Vocês pertencem a nações poderosíssimas que vos protegem. Os meios que garantem este poder são pletóricos, a começar pelos arsenais nucleares (…) Vocês conhecem os crimes que foram cometidos em vosso nome, ou com a vossa cumplicidade(…)” (p36) mas também de convergência: “O lugar do verdadeiro reencontro não se realizará a não ser no cruzamento dos nossos interesses comuns …” (p45). H. Bouteldja interpela de forma direta os brancos, ofertando uma saída, uma libertação sempre neste gesto solidário.
Começa então por descrever um conjunto de privilégios detidos pelos brancos, afirmando que o primeiro de entre eles é a vida. Na Declaração Universal dos Direitos humanos, o direito à vida figura como um dos primeiros dos 30 artigos da declaração. Os movimentos Black Lives Matter, surgido nos EUA em 2013; Reaja ou será morto, surgido no Brasil, Justice pour Adama Traoré em França e toda uma série de assassinatos de pessoas negras pelo arsenal da bélica potência coletiva que é o sistema da branquitude, consagram a vida não enquanto um direito inalienável ao ser humano mas sim como privilégio único e exclusivo dos brancos. Ao mesmo tempo, podermos ter essa permissão, passa a ser prerrogativa do homem branco, do sistema branco a quem devemos todo o tipo de adoração.
Porque não haverá certamente, segundo este sistema brancocêntrico, ninguém mais humanista, mais antiracista do que ele, a inocência pura personificada. Quanto ao indígena o que é senão um guardião desta sacrossanta inocência do homem branco?
A branquitude enquanto projeto de dominação
“A branquitude é uma fortaleza e que todo o branco é construtor desta fortaleza” (p38).
Mas a branquitude não é algo que sempre esteve presente na longa história da humanidade. Ela foi projetada num contexto preciso, pela burguesia ocidental, para satisfazer as suas próprias necessidades, relata a autora. Toda a aliança entre as pessoas escravizadas que não tinham sido ainda transformadas numa categoria racial, ou seja, em negros tout court, como os proletários europeus que também não tinham ainda sido transformados em pessoas brancas, já se encontravam reunidas. Todavia, esta aliança seria uma ameaça para a burguesia ocidental e foi para evitar esta catástrofe que uma comunidade de interesses foi criada. “Ao institucionalizar-se, a raça branca foi criada”.
Embora possam ser discutíveis, as referências históricas que a autora mobiliza para descrever a criação da raça branca, a saber o contexto de da chegada de Colombo, em 1492, a descrição do processo nos ecooa bastante. O termo raça, as categorias negros e brancos, são criações ocidentais e, neste sentido, pertencem desde o início ao léxico geopolítico de dominação.
É esta geopolítica que faz com que os países brancos detenham o monopólio da violência reunindo para si as armas mais poderosas do mundo, obrigando os países não brancos a abandonar o seu desenvolvimento. É este monopólio que garante que ditem as regras e normas que regem política e economicamente o mundo sem, no entanto, se sujeitaram a estas mesmas regras. É este monopólio que faz que a última palavra sobre a segurança deste mundo em que vivemos caiba somente aos cinco países, cinco continentes, sendo o continente das pessoas negras o único excluído 12.
As instituições como a ONU e as suas agências várias (TPI, Banco Mundial, FMI, NATO, União Europeia e as suas agencias como a Frontex) são outros exemplos maiores da formação esmagadora desta branquitude, a prova do crime. A engenharia de defesa dos privilégios “Materiais, estatutários, institucionais, políticos e simbólicos” que os brancos possuem.
Contudo, quando são identificados enquanto privilegiados, quando são nomeados como brancos, incomodam-se. Embora sabendo sempre quem é branco e quem não é. O seu incómodo não é pelo uso da palavra branco, mas sim por terem sido nomeados. O anonimato que se funde num universalismo exclusivo é prerrogativa dos brancos e quando são acusados de pertencerem ao universal, ao centro, ao absoluto, enfim, de serem brancos, se escandalizam. Incomoda o uso deste termo porque releva sempre uma culpa, uma cumplicidade sobre um crime cometido em seu nome.
A questão de classe é também evocado pela autora para dizer que branquitude não é um bloco coeso mas, sim, um aglomerado de contrações entre as quais a questão de classe. E diz que nesta obra se dirige a duas categorias de brancos que considera os interlocutores possíveis.
Primeiro os proletariados, os desempregados, os camponeses, os que perderam o seu lugar social e abandonaram as minorias regionais, por séculos de centralismo estatal e todos os brancos deixados ao deus-dará. Ou seja, os sacrificados da Europa, dos mercados e dos Estados. Outra categoria a quem H. Bouteldja se dirige são os revolucionários que têm a consciência da barbárie provocada em seu nome pelos seus estados, instituições e mercados, política francesa que muitas vezes desliza rumo à extrema-direita, e que tem ciência da catástrofe que se avizinha. Uma catástrofe que virá porque o sistema imunitário branco se enfraquece.
H. Bouteldja insurge-se contra a branquitude e critica os brancos que dizem “nós somos sacrificados para vos salvar”. Que existe uma lógica utilitária de uso dos indígenas que sempre foram e são solicitados quando se tratava de salvar a social-democracia, e preservar os interesses da classe média branca, para fazer frente à Frente Nacional e votar socialista, etc. Ou seja, os indígenas sempre foram como erigidos de defesa a um conjunto de extremismo na França que nada mais era que uma coluna de defesa dos interesses desses brancos a quem se dirige e que são, entre outros, objeto do amor revolucionário.
É nesta altura que nos diz que despreza ferozmente a esquerda que, também segundo ela, despreza os pobres brancos deixados ao deus-dará, esses desempregados e revolucionários anteriormente mencionados. E porque a barbárie que se avizinha não poupará nem o indígena nem esses brancos, propõe numa convergência de interesses.
Pergunta-se: “Como pensar o amor se os privilégios de uns se baseiam na opressão de outros?”
E propõe o abandono das fronteiras do Estado-nação, a reescrita da história, a sua desnacionalização e desracialização. É um convite de abandono ao patriotismo de glorificação. Esses patriotismos que celebram vitórias e conquista. Estas vitórias e conquistas que significam a derrota do indígena, o seu esmagamento, a sua desumanização. E propõe a renúncia à memória glorificadora dos seus estados bélicos, partilhando com o indígena a memória da independência da Argélia ou da vitória do Dien Bien Phu. Vai mais longe ainda sugerindo a mudança do Panteão nacional e já agora, porque não a sua destruição? Citado C.L.R. James convida os brancos a partilhar ou a aceitar como seus os ancestrais do indígena.
“Se a história vos fez brancos, nada vos obriga a permanecer”.
Porque “o amor e a paz que se oferta têm um preço. E deve ser pago” (p47).
Em relação aos judeus, convida-os a voltarem a ser os indígenas que sempre foram, a renunciar a servir como mascote e braço armando do Ocidente, e assim pôr termo ao processo de monstrificação em que foram envolvidos desde a criação de 1948. Afirma que o anti-sionismo será o espaço de confrontação entre os indígenas. Sempre de forma direta, afirma “Na verdade vocês continuam no ghetto. E se o abandonarmos juntos? Porque (…) entre nós tudo é ainda possível … Temos um destino comum da mesma forma que temos, potencialmente, um futuro político comum” (p63).
Nós
Os capítulos seguintes são a afirmação de um grande NÓS. “Nós as mulheres indígenas, Nós os indígenas e Allahou Akbar”. Às mulheres indígenas convida a renunciarem à objetificação dos dois patriarcados (indígena ocidental) sem, no entanto, importarem o feminismo, que considera um produto de exportação europeia, uma arsenal branco, que não serve à emancipação da indígena se esta não controlar todas as suas formulações e construções. Aos indígenas convida a formar um corpo político forte dentro das fronteiras do mundo norte, criando as condições para o amor revolucionário. Em Allahou Akbar, mostra os fundamentos desse amor. Ao dizer deus grande, este termo que a media internacional transformou num grito de guerra, numa palavra quase execrável cuja simples pronunciação pode levar à morte, Houria fala sobre o ódio racial, a beleza do indígena e a forma como este ódio contamina e por vezes destrói tal beleza.
E cita Malcom X dizendo que este terá uma vez dito nunca ter odiado ninguém. Estas palavras saída da boca do autor da célebre frase “por todos os meios necessários” fazem espumar. Contudo, como diz a autora, “Tudo o que sobe deve descer”. As gerações negras ofereceram séculos de espiritualidade, de poesia, e diálogo que os brancos nunca souberam acolher.
A obra que começa com “Vocês os brancos”, vai-se revelando uma confidência da autora dizendo nunca ter conseguido expressar um nós que incluísse os brancos e termina com um Nós que inclui brancos e negros. Um nós de uma identidade política a inventar, um nós da maioria decolonial. Um nós do amor revolucionário, e convida a “começarmos pelo começo” e a fazer descer tudo o que se eleva sobre o outro.
Este livro é sobre possibilidades e sobre porosidades. É uma tentativa “desesperada de suscitar uma vã esperança de convivência”. A palavra que melhor descreve a démarche de H. Bouteldja seria solidariedade. Neste sentido, ela se escreve numa longa prática de luta de homens e mulheres, esses corpos não brancos que tudo o que produziam, mesmo nos momentos mais radicais como a revolução haitiana, foi para libertar não só os seus companheiros negros, mas também para salvar os fratricidas brancos. Este livro é certo para todos mas, na minha opinião, é especialmente dirigido aos brancos. É uma tábua de salvação, um convite. Espero que sirva. A sua tradução para língua portuguesa será um ponto de partida para a luta que aqui também se faz. Uma luta onde todos têm um papel e uma missão. A cumprir ou a trair.
- 1. Estamos juntos na língua caboverdiana. Termo com fortes significados político-afetivos que mostra comprometimento, cumplicidade e honestidade na luta.
- 2. No título original « Les Blancs, les Juifs et nous. Vers une politique de l’amour révolutionnaire ».
- 3. Igualmente co-autora da obra coletiva La révolution en 2010? Les vrais enjeux de 2007, publicada pela Descartes & Cie editora, H. Bouteldja escreveu Nous sommes les indigènes de la République (2012) juntamente com Sadri Khiari (um dos seus mais citados autores) e uma série de artigos entre os quais “L’islamophobie est un racisme” (2013) e “Pouvoir politique et races sociales” (2016), publicado na revista Période.
- 4. O percurso político desta militante decolonial, remonta a 2003 no seio do coletivo feminista les Blédardes que ajuda a fundar, em oposição ao Movimento Ni pute ni soumises. Na mesma altura, Houria Bouletdja denuncia o Projeto de Lei sobre a proibição dos símbolos religiosos nas escolas (também conhecida como lei anti-foulard), o que levaria ao seu envolvimento no grande coletivo Une Ecole pour tous et toutes endossando assim o seu ativismo político.
- 5. Ver Sadri Khiari em “Pour une politique de la racaille. Immigré-e-s, indigènes et jeune de banlieue (2006).
- 6. A hostilização dos militantes do PIR em França vem tanto de movimentos da Esquerda como da Direita, apoiados por todo um aparato mediático de jornais como Mediapart ou Mariannes noires etc.
- 7. p139. A kesra é um tipo de pão argelino em forma de gallete, com origens bérbere confecionado à base de sêmola.
- 8. Fanon, Frantz (1961:197) Les Damnés de la terre.
- 9. Nesta entrevista publicada no BUALA http://www.buala.org/pt/cara-a-cara/os-anjos-de-deus-sao-brancos-ate-hoj...
- 10. Em referência ao Discurso de Dakar do ex-Presidente Francês Nicolas Sarkozy pronunciado na universidade Cheikh-Anta-Diop em 2007 “Le drame de l’Afrique, c’est que l’homme africain n’est pas assez entré dans l’Histoire”.
- 11. in Discurso sobre o colonialismo (1950)
- 12. Os 5 membros do CS.