“Até que tudo caiu no esquecimento”. Falar de Luís Romano à mesa.

Para falarmos da génese crioula e da nossa identidade fragmentada, provavelmente teremos que voltar ao “interior”, às gargalhadas e murmúrios das mesas da cozinha, quartos e casas dos nossos familiares onde crescemos observando.

 No meu percurso como cineasta cabo-verdiano posso afirmar que é devido a esse constante latejar de lembranças que nasce a curiosidade de arranhar as paredes das nossas memórias genéticas perguntando, observando, conectando os pontos através de questões aos meus familiares, e também lendo. É ao ler “Famintos”, de Luís Romano que percebo o quanto uma simples ação de comer à mesa da cozinha era, na verdade, um ato de resistência face à existência improvável do cabo-verdiano.

“Famintos” é, na minha opinião, a obra-prima cabo-verdiana. Escrito na década de 1940, contrabandeado e posteriormente publicado no Brasil em 1962, o livro foi censurado pelo regime português e, ainda assim, resistiu, e viu a luz do dia como um grito de revolta, uma contemplação humana, dolorosa e deslumbrante do povo das ilhas. 

Henrique Silva, compositor e músico cabo-verdiano foto de Nuno MirandaHenrique Silva, compositor e músico cabo-verdiano foto de Nuno Miranda

A narrativa grotesca e ao mesmo tempo lírica de Luís Romano nasce no “pós-Claridade” onde se nota a afirmação do povo das ilhas enquanto africano. Isto observa-se através da escrita de Romano que transcende os episódios da fome, na qual ele argumenta a atual condição do povo cabo-verdiano como sendo uma repetição, semelhante aos tempos da escravidão, como ele descreve por exemplo no trecho deste poema: 

“vosso nome recorda a violência de outras épocas

cada sofrimento um louro para vossa coroa.

Cada lista do Gado-Humano um monumento de sangue

no cemitério dos crimes que praticaste a cantar.”

O livro é de difícil classificação pela sua combinação de elementos diferentes como a reportagem-documentário, evocações líricas, narrações subjectivas e lendas populares, que resulta numa compilação de histórias e relatos desprendidos e unidos como testemunho.

Um dos contos no livro é o de Paulino, um emigrante cabo-verdiano recém-chegado à sua ilha…

“Na casa, a satisfação reinava. As malas estavam na sala para os amigos admirar, que Paulino viera bem arrumado.”

Ao ler essa história, vejo sem dúvida a minha mãe cabo-verdiana carregando maletas pelo aeroporto, vejo também meu avô, que tinha uma estante vidrada em Figueiral, Santo Antão, na qual colocava as lembranças do “mundo lá fora” que trazia nas suas viagens de vapor. A lembrança do “mundo lá fora” é o mais humilde símbolo da opulência crioula. 

A história da minha mãe e do meu avô não terminam tragicamente, como a de Paulino, que se viu obrigado a penhorar todos os bens, deixando a sua casa oca de lembranças e memórias para sobreviver à fome. 

“E assim as “coisinhas” que trouxeram de Lá-Fora desapareciam a pouco e pouco, sem outro remédio para sustar esse vazio que se fazia sentir em casa, quando olhava para os quartos desertos e para as paredes onde os pregos isolados lembraram tantas cenas da vida em que ele se esforçou para merecer a paz de uma existência sem preocupações.”

Esta ligação serve somente para contextualizar que muitas das nossas histórias escritas, são autobiografias da condição de ilha crioula e da nossa memória genética, e são elementos que ajudam todos nós a explorar e compreender as raízes e o desenvolvimento da identidade.

Luís Romano dizia, já na velhice: “Um brinde a estarmos juntos, celebrando um momento de esquecimento”. 

Esta expressão encerra vários significados e ganha uma monumental importância ao entendermos que muitos dos relatos do livro foram testemunhados pelo próprio escritor. E é nesta condição de observador pelos nossos “interiores” que pergunto: 

Quanto de nós mesmos conhecemos para  nos afirmarmos detentores do direito de “esquecer”? Temos sequer esse luxo? No caso da educação oferecida hoje em dia aos nossos jovens e crianças cabo-verdianas, será que foi uma decisão consciente em omitir algumas partes da nossa história tenebrosas demais para lembrar? 

O nosso instinto de sobrevivência como povo, as nossas construções sociais modernas, a forma como pensamos estão intrinsecamente conectados ao nosso passado, e ao ler “Famintos”, por exemplo, entendemos que uma visão coletiva utópica do amanhã, certamente não pode nascer se certas ansiedades, traumas e omissões sobre o nosso passado continuam presentes como uma espécie de “síndrome de membro fantasma”.

Isto a meu ver resulta sem dúvida, num caminhar para um futuro incerto, enraizado num solo vazio de memórias, onde penhoramos as nossas lembranças, quiçá, o futuro. 

No entanto, eu não falo da posição de filho ingrato, reclamando da má conduta do passado, dos nossos avós, pais e do modo como eles estabeleceram a “casa” neste solo insular. 

1975 foi ontem e a criança/país ainda esperneia, mimada, sem entender muita coisa, Cabo Verde é sim uma criança ainda. 

O que é evidente é que os meus avós passaram por uma vida difícil, meus pais viveram um tempo de mudança e a minha geração recebeu um país de bandeja, com os seus traumas e segredos mal resolvidos, que contrlam a nossa conduta diária de forma invisível e intuitiva.

Também é importante dizer que, ao falar da importância de “Famintos”, análise de traumas históricos e da fome, não é uma tese sobre o “sofrimento exótico”, como diz James Baldwin sobre o sofrimento negro, neste caso para retratar o povo de Cabo Verde como sofredores. 

O povo cabo-verdiano é muito mais que a soma de todo o seu sofrimento e podemos ver isso claramente no discurso do último conto do livro “Até que tudo caiu no esquecimento”, onde Luís Romano escreve:

“Sê alegre. Teus pequeninos sonhos sobem pelo ar, morrendo depois. Não faz mal. Outros sairão e vão ultrapassar os que ficaram desfeitos. E, daqueles que se sumirem no espaço livre alguns manter-se-ão por mais tempo, artista menino.

Olha, mesmo que isso não se realize, ficará teu sonho, tua inspiração a vaguear, o teu gesto íntimo como degrau, na ascensão de uma ideia, aumentando devagarinho no sentir de milhões de pequeninos artistas que formarão o Mundo Livre, como tu.”

Qualquer povo, qualquer pessoa é muito maior do que o trauma ou passado que aparentemente o define.

Cabo Verde precisa, urgentemente, de um “poema diferente”. Ainda não nos lembramos o suficiente do nosso passado para decidir o que queremos esquecer, o que queremos transmitir ou o que queremos mudar. 

A nossa identidade é, toda ela, traçada com o passado. Seria então muito imprudente retirar ou apagar um momento histórico dessa mesma matriz genética, como as nossas fomes cíclicas e as murmuradas histórias de canibalismo, as ideologias e divisões feudais ainda muito presentes em Cabo Verde, Amílcar Cabral e toda a história da luta pela independência, a nossa condição africana, as atrocidades feitas a nós próprios, ou aos nossos irmãos africanos, ou qualquer outro elemento que possa ter contribuído de alguma forma para aquilo que somos hoje.

É muito fácil e preguiçoso olhar para trás e desconstruir o que deveria na verdade ter sido a conduta dos nossos antepassados, como deveria ser o pós-Independência, ou se certas figuras da nossa história são ou não merecedoras do reconhecimento enquanto peças importantes no desenvolvimento da nossa sociedade moderna. 

O processo de resolução de um trauma passa, normalmente, por duas etapas. A primeira é o perdão, um auto-reconhecimento de cada canto da casa e também pelo ato de perdoar o passado, seja ele nossa responsabilidade ou não. A segunda fase, no entanto, passa pelo reconhecimento e responsabilização pelas nossas ações no presente. O que somos hoje vive e acontece independentemente do nosso passado e é todo ele culpa nossa.

A meu ver, essa mesma incapacidade de sermos nós por nós próprios está diretamente relacionada à incapacidade de reconhecermos Cabo Verde como algo que existe, persiste, vence e erra por si só, sem a necessidade de se explicar ou de se afirmar como sendo uma coisa, outra coisa ou toda a coisa. 

E agora pergunto, se Cabo Verde é hoje um conjunto de contradições em relação ao que somos, como somos e como fomos, qual será a verdade que melhor servirá o nosso futuro, os futuros jovens e crianças, que não terão discernimento de entender que eles são um conjunto de peças soltas e cinzas de verdades apagadas por nós mesmos?

Lendo “Famintos” podemos observar com clareza que, depois de tanta fome, as incertezas e o pavor de ser ilha sozinha apavorava a mente de muitos.

— O que farei quando tiver fome?

A escolha seria SER na sua plenitude e sofrer, ou fingir ser e sofrer as consequências de uma mentira contada por nós próprios. 

Para falarmos da génese crioula e da nossa identidade fragmentada, provavelmente teremos que voltar ao “interior”, por entre as gargalhadas e murmúrios das mesas da cozinha, quartos e casas dos nossos familiares onde crescemos observando. Deus queira que a língua solte com grogue à mistura neste convívio familiar e que apressemos a ressaca do nosso autoconhecimento que anseia em ser passado. 

por Nuno Miranda
A ler | 29 Outubro 2024 | Cabo Verde, identidade, Luís Romano