O futuro foi ontem: os chineses continuam a treinar pombos-correios

«As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade que é capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso próprio semelhante.» Certamente que muitos de vós não recordarão já estas palavras, que muito sabiamente resumem o tema que aqui abordamos sobre as novas tecnologias, e que foram proferidas por José Saramago, no seu discurso do banquete Nobel, a 10 de Dezembro de 1998.

Valem aqui como homenagem à lucidez de uma voz que cada vez mais falta faz a este descarrilado mundo em que nos cabe a responsabilidade crítica de o tentar levar a um modo mais humano de nele se estar, viver, habitar e fruir. Não me parece que o afastamento da grande Mãe Terra, da voz humana escutada e pronunciada de olhos nos olhos, como este a que assistimos com uma proficiência impositiva, dia a dia mais feroz e mais canibal na sua tão propalada competitividade produtiva traga algum benefício maior ao ser humano, que, de humano a cada instante o é menos.

Em África, e mais particularmente em Angola, porque melhor a conheço, lembro que a maior parte do território não tem luz eléctrica nem água potável canalizada. Não existem escolas nem hospitais condignos, a educação é terrivelmente deficiente, não obstante as culturas das tradições orais, transmitidas de boca a orelha, de geração em geração, sejam absolutamente fabulosas, porque são o verdadeiro rosto de cada povo, a sua dignidade, a sua ligação com a Terra, essa grande Mãe que «caberia para todos nós», como cantou o grande compositor e músico angolano Alberto Tetalando. Logo, será uma ironia de certo modo cruel ali se colocar hoje a questão de «qual o papel das novas tecnologias no presente e no futuro do continente?»

Sou particularmente céptico em relação às novas tecnologias, as quais nos colocam problemas a nível universal. O que deveria ser aproveitado para tornar a vida humana mais digna e aprazível, sobretudo nos ramos da medicina e do trabalho, da cultura e do lazer, toma justamente o sentido contrário, transformando em autênticos escravos as vítimas das suas funcionalidades, como os funcionários de centros de vendas (vulgarmente chamados call centers), os condutores de transportes descaracterizados ou os entregadores de encomendas ao domicílio, entre tantos outros ofícios. 

Por outro lado, as novas tecnologias são responsáveis directas pela criação de uma solidão que não é propriamente a solidão a que o ser humano se entrega, naturalmente, para de quando em quando melhor estar de si consigo mesmo. É um delírio espantoso estar-se num restaurante, e, na mesa ao lado, olhar-se para uma família, em que da bisavó ao bisneto mais fedelho e ainda de fraldas (eu vi, ninguém me contou), não há ninguém que converse entre si, com todos, cada qual afocinhado no seu muito particular amigo ou amiga virtual, esquecidos dos pratos que há muito lhes foram colocados à frente do nariz. E a poluição sonora que tudo isso provoca? Um descalabro apoteótico, no mínimo. Mas o mais lindo, notável espectáculo digno de filmes de Fellini ou João César Monteiro, é quando acaso falha a internet: o desespero quase suicida, se não mesmo facínora e homicida, que se apossa dos fundamentalistas do pequenino ecrã, que ficam sem saber que fazer das suas mãos, já de si tão desajeitadas para o afecto.

A memória, pessoal, colectiva ou cultural, nestes tempos hediondos que vivemos e aos quais ninguém é imune  ̶  década segunda do século XXI, que deveria ser o século da mais consumada e prazerosa felicidade humana  ̶ porém, tempos de inequívoca e perfeitíssima Idade da Pedra lascada “futurista”  ̶ , onde a sua rasura (da memória, bem entendido), adulteração, apagamento e extermínio são milimetricamente calculados e mui democraticamente impostos e acriticamente aceites como «o novo normal»  ̶ , é outra das questões fulcrais que se nos colocam. E, se é verdade que as novas tecnologias servem para fabricar em laboratório carne de frango ou outra, produzir frutos e legumes transgénicos, o que significa o crescimento de cancros que sofremos, a par de outras doenças como Parkinson e Alzheimer, não contando já com as cada vez mais tenebrosas armas biológicas e químicas, também é verdade que são as primeiras a falhar perante uma catástrofe dessas ditas naturais, amputando comunicações e consequentemente a hipótese de salvamento de vítimas.

Não por acaso os chineses, que têm uma cultura milenar, muito anterior à cultura judaico-cristã, e uma assombrosa Poesia com mais de três mil anos, continuam a treinar pombos-correios, para a eventualidade de uma guerra e a infuncionalidade de satélites e outras novas tecnologias de comunicação do mesmo jaez. Isto me parece querer significar alguma coisa. 

(Valerá a pena sublinhar aqui a prodigiosa importância que a poesia tem na cultura e na vida chinesas. Remontando, segundo alguns estudiosos, ao século XIV a.C., com Ling Muzi, a primeira compilação, Shi Jing (Livro de Poemas Modelo), surge no século VI a.C., reunindo 305 poemas. E de tal forma a poesia é uma arte venerada que, desde a dinastia Tang, no século VIII, a composição poética se tornou uma prova obrigatória nos exames imperiais para os candidatos às mais diversas funções e empregos. Também os pais escolhiam e decidiam mais facilmente os candidatos a noivos para as suas filhas se estes apresentassem versos de boa qualidade. E ainda os presos, independentemente do delito cometido, poderiam reconquistar a liberdade se tivessem aptidão para escrever dois ou três poemas que agradassem aos homens de poder. E desde sempre, não obstante a sua secundarização em relação aos homens, houve na poesia chinesa fabulosas poetas mulheres, como Xu Shu (séc. II), Li Wan (séc. III), Liu Lingxian (séc. VI), Li Ye (Séc. VIII), Chao Chai (meados do séc. VIII), Xue Tao (768- 832), Xen Yulan (meados do séc. IX), Xu Xuanji (844-871), Liu Chaichun (meados do séc. IX), Du Qiuliang (séc- IX), Wei Wan (?-1078), Li Qingzhao (1081-1154), Zhu Shuzhen (séc. XI-XII), Le Wan (Séc. XI-XII) ou He Huisheng (séc. XIX). De resto, não têm conta os versos célebres que entraram como parte integrante do próprio idioma e do seu coloquial padrão, de tal forma a poesia se incrustou na vida social quotidiana do país de Confúcio.)

Por fim, chamo a vossa atenção para o lugar em que nos encontramos e os livros que nos rodeiam: nenhum deles foi alguma vez concebido e escrito que não pela imaginação sensível, pela memória criadora, pelo talento e pelo trabalho implacável do seu autor, que, deixem-me lembrá-lo, foi um quase escravo das Letras e um autêntico operário da palavra luminosa, quer em criação pessoal, quer em edição, quer em tradução. 

Viva José Saramago! 

por Zetho Cunha Gonçalves
A ler | 4 Março 2025 | China, comunicação, José Saramago, poesia, sociedade, tecnologia