A poesia desencaixada de Arménio Vieira
A poesia é a religião original da humanidade.
NOVALIS
Vozes autorizadas e sem notícia de alguma vez terem sido postas em causa, ou contraditadas por acusação de falsa-fé ou mexeriquice toleja, como as vozes do hermético e sorumbático poeta do Índico Luís Carlos Patraquim, ou a do irrequieto Camões das Ilhas, José Luiz Tavares, dizem-me que Arménio Vieira escreve os seus poemas no telemóvel. E eu, que nunca escrevi um poema sequer directamente no computador, ou fui alguma vez capaz (por absoluto analfabetismo tecnológico, humildemente o confesso) de anotar ou gravar uma simples frase no telemóvel, acredito. Piamente acredito. Muito embora, completamente banzado com tal proeza armeniana.
Imagino então um bando de micro-chinesinhos, obreiros e espevitados, zurzidos letra a letra, a poder de muito chicotado clique, alombando às costas (salvo seja!), ou puxando por ínvios cangulos e sensitivas roldanas os versos do Arménio, cavoucando-lhe o poema a contento e preceito, de patrão da obra.
Portentoso cartapaço de 416 páginas, Safras de um triste Outono é um livro de esconjuro e de catarse, arquitectado sobre uma vasta panóplia de motivos, ritmos, imagens e recorrências estilísticas, num jogo polifónico de meditação inquiridora sobre a finitude e a morte, ou os desvairados processos da própria criação poética, mas também de celebração da Vida e suas contingências em permanente estado de Humor rejubilante e libertário, nos seus múltiplos cambiantes. Socorrendo-se A.V. da fábula, da parábola, do poema dramático, do epicédio, da sátira e do poema lírico, onírico ou fescenino, num rigoroso equilíbrio harmónico − posto que, como assevera o próprio poeta, «entre o veneno e o remédio / a dose faz toda a diferença» −, é de sublinhar e saudar o facto nada despiciendo de se não encontrar um poema bambo, excrescente, excessivo ou a embotar este longo e monumental poema fragmentário, verdadeira epopeia do Riso inteligente e transgressor.
A voz de Arménio Vieira é um furacão vulcânico em permanente actividade, absolutamente singular no panorama da poesia contemporânea de língua portuguesa, sem lugar a epígonos nem a imitativas macacadas estilísticas, capaz de, só por si, criar toda uma Poesia e sua tradição, cujo universo íntimo de dicção e desconcerto criador só encontra paralelo, em português, num Fernando Assis Pacheco, na religiosidade escatológica de um José Emílio-Nelson e nalgum Mário Cesariny (sobretudo o Cesariny de O Virgem negra), no maestro chileno Nicanor Parra, no fabuloso catalão Joan Brossa, e nalgum Malcolm de Chazal, o inaudito poeta das Ilhas Maurícias que assombrou o temível papa do surrealismo, André Breton. E dizer isto não é dizer pouco sobre uma poesia que faz do Humor a sua mais irradiante constelação. Ou seja, «Entre mortos e feridos, às vezes / há quem ganhe a lotaria», como se pode ler a páginas 378 desta Bíblia armeniana.
Poética falsamente narrativa, invocadora e congregadora das poesias e culturas do mundo, a pessoalíssima poética de Arménio Vieira produz sempre um surpreendente desconcerto pela frescura e novidade que acarreta, trazendo ao poema a audácia da irreverência e da subversão da matéria invocada, ao contrário, por exemplo, da poética exuberante, «discursiva e solene» de um João Vário (de quem, no poema que lhe dedica, a páginas 274, A.V. faz questão de sublinhar: «Como todos sabemos, / Vário jamais gastou uma bala / em prol da libertação das colónias / sob domínio luso»), cuja convocação e invocação, na esteia da lição de Ezra Pound, é a da procura de uma mais ampla totalidade criadora, num diálogo intertextual através da sobreposição e da montagem por via da citação.
Há, porém, um pressuposto programático neste livro (ou, pelo menos, é assim que eu o leio), no poema sem título da p. 403:
Para que se desconstrua o real
e se tente a sua conversão no
absurdo
É preciso, antes de mais, definir
os géneros em que tanto o sonho
como a loucura se manifestam
De forma a evitar a confusão entre
o sonhador que inventa os sonhos
e o que sonha à maneira de qualquer animal sonolento
De modo a não internar no mesmo
hospício o doido que julga ser o rei
de todos os malucos e o que,
por uma razão que só ele conhece,
finge que é louco
Safras de um triste Outono, título já de si irónico e despistante perante a leitura da obra nomeada, que, não obstante começar por «Um triste haiku» (haiku tipicamente armeniano, com seus quatro versos − mas não uma quadra, fosse ela de pé quebrado ou de pé pontapeador ou escoiceador − e mais sílabas que as dezassete e os três versos do canónico haiku japonês), «triste haiku» onde se lê que «da láurea do poeta / cai a última folha», o que logo remete para a humana condição da finitude e da «morte, que é de todos e virá», como nos lembra Jorge de Sena. Porém, estas Safras afrontam sobremaneira esse «mau passo» (como à morte chamou Fernando Assis Pacheco), de que é exemplo a meditação e esconjuro do poema da p. 372, cujo título, em dúvida metódica, é:
NO FIM A MORTE GANHA?
Ganha sim. Todavia, em sentido
puramente metafórico, posto que
a Morte é apenas uma consequência
de coisas que a precedem – plantas
e animais
Sendo assim, em tal peleja, entre
o antecedente e o consequente,
não existe um vencedor, mas sim
um perdedor, cujo nome é a Vida
Em termos, mais ou menos filosóficos,
é impossível que o Não-Ser ganhe
uma guerra, tampouco uma batalha
É o Ser que, ao cabo de um conflito,
por vezes longo e renhido, acaba
por sucumbir
Ou a terrível ironia em «As sete vidas de um gato» (p. 91):
Depois da morte, caso haja
algum suplemento de luz,
que os deuses me ofertem
um caderno de negras
páginas e uma pena de bico partido.
Olhando para tão abstrusas ferramentas,
talvez mude a rota do meu navio e vá em
busca da minha sétima vida, após ter
perdido as seis que entreguei à divindade
a quem os antigos vates, por crença e
devoção, tratavam por M…
Serás tu, que leste os livros todos, a
completar o nome da esquiva dama que
dita os versos, mas de quem nunca se viu
a face.
Ou, ainda, o humor desbordante em «Quatro homens e um caixão» (p. 112), dedicado «à memória de Alfred Hitchcock»:
Vi três homens em pé
olhando para um caixão.
Perguntei: − Quem morreu?
Um deles respondeu:
− Não lhe disseram que morreu a
linguagem?
− Então morremos todos.
Nós os quatro e o mundo inteiro somos
linguagem.
− Não é bem assim, nós estamos vivos.
− Provavelmente a sonhar. Uma vez que
estão vivos, para quê um caixão? Não me
digam que vão sepultar a linguagem?
− Esse caixão não é para o enterro de
ninguém. Contém uma viola, um pincel e
dois sapatos de balé. Percebeu?
− Percebi. Vamos a isso, toquemos,
pintemos
e dancemos. Ainda assim, ficamos na
mesma, a linguagem persiste.
− Pode ser, mas com uma ligeira
vantagem. A música, a dança e a pintura
cansam menos a cachimónia e as cordas
vocais.
− Quando toco, desafino. Quando pinto,
Borro a tela. Quando danço, erro o passo.
Estou de fora, não racho lenha. Ora, um de
Vós toca, outro dança, essoutro pinta e eu
bato palmas. Aplaudir também é
linguagem, com uma grande vantagem –
não cansa a cachimónia nem as cordas
vocais.
Da linguagem e suas variantes − a
verborrágica eloquência dos bonzos,
os triviais e quotidianos
dar à língua e maledicência
− ninguém tem como fugir. Vamos abrir
esse caixão?
O caixão foi aberto. Dentro jazia um
morto a quem tinham amputado a língua.
Após a autópsia, concluiu-se
que o defunto era um homem
que sabia e falava demais. Ninguém o
tinha matado. O homem suicidara-se.
Alguém lhe havia cortado a língua,
estando ele já morto − um simples caso
de profanação.
Mesmo em poemas dedicados à partida de pessoas chegadas, como o comovente epicédio «Poema escrito para uma amiga escritora, cuja filha morreu, vitimada pelo covid-19» (p. 409), A.V. exorciza a dor da perda tenebrosa com um humor subtilíssimo, carregado de Ternura: «“Vem comigo, vamos ver o nascer de mais um dia”» (p. 409).
Não sendo muitos os poemas de amor na obra do autor, também esses não se encontram ausentes deste livro. De entre eles, destaco este inquiridor «O que é o amor?» (p. 65):
Para Lúcia
O amor quase sempre é uma trama.
Contudo, nunca tentes medi-lo,
o amor não é pano.
Se tiveres uma balança, exime-te de o pesar,
não tem peso o amor, é mais
leve que uma pena a voar.
Nunca olhes para um relógio
enquanto amas. O amor não é tempo,
é a tua única chance de viajar no eterno.
Escusa-te de tocar o alarme enquanto arde uma floresta.
Por mais que tentes, o amor é uma chama que não tens
como apagar.
21/setembro/2019
E, também, pelo seu tom irónico, «A rainha Barba Azul» (p. 64):
No mais profundo
de uma gruta
desde sempre
uma rainha
sete vezes
viúva
espera-te
com dois
anéis
e um par
de facas
Uma para
cortar
o bolo
e outra
para te
matar
Arménio Vieira é um poeta que gosta de perguntar. E, sobre a arte de perguntar (porque saber perguntar implica uma arte), afirma ele no poema sem título da p. 402:
E todavia o filósofo
não escreve poemas, ao passo
que o poeta interroga
Não mais que perguntas
pois o poeta sabe que nenhuma
resposta é dada a quem, só e cego,
se perdeu buscando, pela metáfora
e pela música dos versos,
o que exige outras ferramentas
e outra forma de
buscar
As respostas que se dá e nos dá são amorais (como convém), hilariantes, estuporadamente absurdas e certeiras, revivificadoras de uma realidade acabada de extirpar para de novo a criar de raiz, inaugural e humana, como só um grande poeta é capaz. Atentemos no poema «Lançando perguntas ao vento» (p. 94):
Para o Tchalê Figueira
Quem somos?
Macacos falantes que
os deuses rejeitaram?
Símios desnudos
destinados a dominar o
s congéneres pela violência
e por maliciosos sofismas
de raposa?
Animais viajando entre o peso do egoísmo
e a leveza dos gestos?
Dúbio destino que nenhuma política,
revolucionários discursos carregados
d’altruísmo, utópicas promessas, a
vibrante oratória dos clérigos, tão-pouco
a palavra dos poetas conseguiram mudar
Quem és tu, Estrangeiro?
Fazendo minha a voz
da suplicante mulher,
interrogo: de quem é a mão, que ora te
aponta as noites sem estrelas e ora as
brancas luzes do alvor?
Porventura existe alguma escritura de
sapientes versos que possa responder a
tais perguntas?
Em que praia, floresta ou deserto se
encontra o fio
com que Teseu venceu
as ínvias saídas do labirinto?
Enquanto deambulas,
lançando perguntas ao vento,
um gato vadio, imune aos venenos da alma,
aquece ao sol da manhã, alheio aos avanços e
retrocessos
do mundo. Só lhe falta sorrir, a menos
que o sorriso dos gatos seja feito de cores
que escapam aos teus olhos, cansados por
inúteis leituras.
Sobre o seu ofício, bastas vezes medita, discorre, questiona, teoriza. Questiona-se a si mesmo, ou deambula através de alheias obras e vozes, numa leitura crítica implacável, desconstrutora e de desfecho sempre inesperado, violentando cânones e pondo em causa todos os alicerces dados como intocáveis, inamovíveis, formulando uma visão muito peculiar e pessoalíssima (seria fastidioso enumerar os poetas, escritores, actores, cineastas, cientistas que lhe servem de matéria poemática, ou os próprios deuses, gregos e afins profetas bíblicos, que zurze com particular eficiência e sageza), criando poemas como se fossem artes poéticas elaboradas pelo avesso dos motivos que convoca em suas formulações, sendo os resultados a que chega e nos propõe à leitura um autêntico libelo onde a ironia, o sarcasmo e um despudorado humor são a sua marca fulminante. Se não, vejamos, o poema sem título, a páginas 253:
Provavelmente, os melhores
leitores de textos poéticos
não são os poetas, dominados por um natural
egotismo, que os leva a apreciar somente
o que eles mesmos escrevem.
poucos poetas haverá
que não funcionam desse
modo. Não apenas os poetas,
mas os artistas em geral.
sem que haja culpa nisso,
é a natureza humana
funcionando.
Cambiando de registo e baralhando as premissas para tudo fulgurar ainda mais esdruxulamente, «Po & Fu» (p. 194):
Há quem pense e diga
que escrever um poema
é como jogar uma bola
de futebol. Só que onze vates
é demais para um soneto,
além de que ninguém paga
para ver um poeta
enquanto escreve.
No futebol, mesmo quando
se erra no passe ou se falha
o golo, ganham-se milhões.
Se culpa houver, culpada é a
bola, que se escusou de entrar.
Na poesia, quando calha
cortar a meta e vencer a prova
o que se ganha nem dá
para comprar um mísero osso
a ver se o cão se alegra
e deixa o gato em paz.
No futebol, seguram-se
joelhos, canelas e coxas.
Na poesia, que seguradora
arriscaria um cêntimo
por duas pestanas queimadas?
Entre o remo e a rima,
parecença nenhuma.
Entre a bola e a poesia
uma ténue analogia.
O futebol não é um hino
que se canta a solo.
É por excessivos dribles
que se perde o lance.
E por flamejantes gingas
que se finta a relva.
Antes que o azul com que
escreves pouse no branco
da folha, começa a contar
e continua contando até 666.
Posto isso, espera que o lobo
acabe de uivar. No minuto
seguinte, afina os ouvidos
e ouve: bzz! bzz! bzz! bzz!
Puxa! Que vem a ser isso?
Uma vespa a zumbir?
Uma serpente a chiar?
Uma torneira a pingar?
Finalmente o silêncio.
Tem calma, isto acaba
já. Atenção! Escuta:
É por enfeitar os versos
com luxuosos brincos
que se borra a escrita.
E por vestir a musa
com preciosas sedas
que se mata o poema.
Outro exemplo, o poema que começa com o verso «“A Sua vontade é a nossa Paz”» (p. 235):
“A Sua vontade é a nossa Paz”.
(Dante, citado por Eliot)
“Como moscas para garotos
travessos, somos nós para
os deuses; matam-nos para seu divertimento”.
(Shakespeare, citado por Eliot)
O poeta-ensaísta afirma
que os dois fragmentos
que ele cita são “grande poesia”.
Discordo completamente.
No excerto de Shakespeare,
embora seja um mero “achismo”
do poeta isabelino,
vejo a expressão (por via poética)
de uma “filosofia”
niilista. Influência de Montaigne?
Pouco importa.
É um trecho poético.
No pequenino excerto colhido
no “Paraíso” de Dante não
enxergo poesia alguma
nem filosofia.
É simplesmente a frase de
um crente, tão nua e banal,
que nem chega a ser um verso.
Com isto não estou a
denegrir Dante nem a enaltecer Shakespeare.
Para mim, a vertente formal
da poética dantesca
é insuperável, datada, contudo,
em termos de substância.
A minha natureza
foi sempre avessa à poesia de conteúdo religioso.
Os poetas místicos jamais escreveram poesia satírica,
ignoram o efeito curativo de uma sonora gargalhada.
Para um debutante em
poesia, a leitura de Dante pode ser valiosa.
Para um macaco velho
como eu, o prazo da poesia
de Shakespeare continua válido.
Ainda dentro deste registo de crítica leitura inventiva e criadora, pode ler-se uma sequência de poemas que tem como personagens poetas cabo-verdianos, como José Luiz Tavares, João Carlos Fonseca, Mário Fonseca, Corsino Fortes, João Vário, Osvaldo Osório, Filinto Silva e Tchalê Figueira.
Comecemos por esta «Breve nota acerca de três poetas cabo-verdianos» (p.264):
Endereçada a Jorge Carlos Fonseca
Reli alguns poemas teus, alguns também do Vário
e outros do JLT, e pus os três
em confronto. Nenhuma semelhança notei entre
essas três poéticas.
Na tua, a “lógica do sonho”,
a função mágica da poesia,
a plena liberdade da escrita,
o humor e a ironia − heranças
do surrealismo.
Em Vário, a torrente discursiva e solene,
um pouco ao jeito
dos profetas da Bíblia,
bebida, porém, na poesia
de S.J. Perse, se bem que
a leste dos voos evasionistas
e da encantatória cadência dos erráticos versos
do poeta francês.
No que toca a JLT, não pude
descortinar as suas influências poéticas, já que
ele me parece beber em múltiplas fontes,
preferencialmente
nas pré-modernistas, tanto
mais que, dos três poetas aqui mencionados,
ele é o único que, muitas vezes,
rima os versos e constrói sonetos.
Não achei uma estrada que fosse
a mesma para os três.
Cada um de vós encontrou
a sua, de sorte que não vi nenhuma senda
que bifurque ou trifurque.
Nenhumas afinidades quanto à forma
ou conteúdo. Cada um seguiu
seu próprio caminho.
Diferentes, mas todos
vós excelentes poetas.
Essa tem sido a opinião
dos críticos.
Deixando «a opinião dos críticos» de lado, passemos agora ao poema «Osório» (p. 276):
Bem antes que a noite
escura visse raiar a
madrugada, Osório ia disparando
contra os torpes “megacães”,
sem que as incendiárias
línguas de napalm
(lá longe, embora as
sentisse sobre a pele),
o inibissem de compor
aladas trovas aos amores
que ele, sem fingimento,
orgulhosamente plebeu,
chamava “amores de rua”.
Num comboio do inferno,
qual se com ele fosse
um povo todo, chegou
às portas de Roterdão.
Estou em crer que a alma
de centauro que nele
habita jamais aceitaria
ser confundida com a
de um vulgar touro
doméstico.
A viagem termina aqui.
para concluirmos estes exemplos com o poema «Filinto» (p. 277):
Um pouco ao jeito de Trevisan, Filinto atirou-se
às longas pernas da eloquência e reduziu-as
ao tamanho dos pés
da Cinderella.
Nas empoladas frases
com que os preciosos
se enfeitavam, olvidando
o poema, Filinto meteu afiadíssima tesoura.
Para quê alongar
o que se pode dizer
em poucas linhas?
Num haikai podem caber
as sete cores do arco-íris.
Num epigrama,
todas as radiações
de um relâmpago.
Nos quatro versos,
a partir dos quais
um soneto diz que
tem fôlego para correr,
as múltiplas sensações
de um instante.
Filinto entendeu-o bem
e melhor o traduziu.
O humor, enquanto a mais alta forma de manifestação e exercício da inteligência humana em suas desbordantes cambiantes, é a linha do horizonte mais constante desta poesia. Eis alguns exemplos:
«Os anjos não têm costas, razão pela qual…» (p. 359):
Os anjos não têm costas, razão pela qual
nunca dormem em decúbito dorsal.
Numa costa vê-se o mar e jamais um jacaré.
Ter costas largas é muito bom.
O azar dos azares é cair de costas
e partir o caralho.
Encostar-se a uma árvore, enquanto chove,
pode ser a morte do artista.
As costas da vítima
e a mão que segura o chicote
são palavras impossíveis de rimar.
Encostar-se aos poderosos,
quase sempre traz vantagens.
Se tens medo, compra um cão ou contrata
um guarda-costas.
Uma comichão nas costas não dói mas chateia.
Quando estiveres cansado,
re(costa)-te num sofá e repousa.
Ter dores nas costas pode ser um mau sinal,
cuidado!
Ter um inimigo pelas costas, nunca é bom.
Também é mau
ser encostado à parede.
Costa é nome de muita gente.
Dos fracos não reza a história.
Sejam nomeados os fortes:
António Pedro Costa
(poeta, encenador, pintor de arte),
Maria Velho da Costa, uma das três Marias
(escritora, prémio Camões),
Costa e Silva (escritor, prémio Camões),
Beatriz Costa (atriz sem papas na língua),
Costa Pereira, Rui Costa,
Jorge Costa (futebolistas),
Augusto Costa (comediante),
Costa Pinheiro (artista),
António Costa (político), Costa do Castelo,
ou seja, António Silva (ator),
por fim, Afonso Costa, um dos gurus
da República Portuguesa.
Por um triz não mandou prender
o Fernando Pessoa,
e só não o fez porque foi informado
que se tratava de um poeta excêntrico
que escrevia esquisitos versos e andava
a matar-se com vinho e cigarro.
São horas de almoçar. Sendo assim,
uma costeleta e bom apetite!
«Os fantasmas da revolução…» (p. 286):
Os fantasmas da revolução
corroíam a mente de uma
geração de estúpidos
vendedores de chocolate
e meias de seda.
Primeiro foi a guerra
das trincheiras.
De seguida veio o jazz
o whisky e a coca-cola.
Alguns se tornaram
os reis da gravata
às riscas e sapatos
alvinegros.
Outros mudaram
de penteado
e se converteram
ao chiclete
e à bombazine
Os que fumavam
colaram filtro
nos cigarros
e trocaram a lambreta
por umas tantas
viagens d’autocarro.
Nenhuma transformação
de peso.
Continuaram sendo
o que sempre foram.
Tinham caído a rima
a vírgula e a pontuação.
Mesmo assim, nenhum
deles tentou a nobre arte
de poetar.
(Ainda bem − um livro de poemas
custava menos que duas cervejas
e um pratinho de tremoços).
()s que rabiscavam
menos mal alugaram
uma “azert” e puseram-se
a encher linguiça
com muitos etcéteras
e alguma prosa dos jornais.
«Os gatos» (p. 289):
De uma dezena de coisas
que os gatos odeiam,
a água detém a primazia.
Enquanto limpas o teu gato
com álcool ou gasolina
− cuidado! Não acendas
um cigarro e nunca
o laves à luz duma vela,
tão-pouco olhando-o
olhos nos olhos.
Nenhum gato gosta de ser
encarado, sequer que lhe
sirvam uma refeição à base
de pepino e agrião.
A oitava coisa que ele mais
detesta é um maestro calvo
e sem bigodes, subindo
e baixando a batuta para
uma orquestra de apitos
e chocalhos.
Finalmente a décima
(a chave de ouro) p’ra
fechar o soneto: nunca
ofereças balões coloridos
ao teu gato, nem sardinhas com vinagre.
Seja agora dado um exemplo de poema de tom fescenino, «O adjetivo é como o arsénico» (p. 296-297):
O adjetivo é como o arsénico.
Serviu para matar Madame Bovary,
como poderia também
ajudar Monsieur Bovary a combater as cãibras
dos seus órgãos genitais, evitando,
ou pelo menos protelando, os assédios
do amante rival.
Idem aspas para Jorge,
o esposo de Luísa, seduzida
por Basílio, o galante primo dela,
cheirando a perfume
parisiense, além de um
bonito bigode.
Entre o veneno e o remédio,
a dose faz toda a diferença.
Esta, do Jaime Figueiredo,
o qual não entendia o escândalo
gerado pelo crime
do padre Amaro, ao passo
que tinham passado sem ruído
as “fodas” de Basílio,
um especialista, segundo
JF, em sexo oral e anal.
Ia esquecendo Madame
Karenina, a qual trocou
o insosso Aléxis de picha
fria pelo viril Conde Vronsky de piça quente.
Dessa vez, por não haver
veneno nas boticas
russas, Tolstoi resolveu castigar Anna, a mulher
adúltera, não à lapidação
(como manda a Bíblia),
mas empurrando a Senhora
para dentro de uma via férrea,
enquanto um trem berrava:
“Apertem o freio, senão mato a desgraçada”.
“Deus não dorme” − o terrível Conde
também morreu
dc morte macaca.
E, para terminar, «O poeta, vigia do mundo» (p. 413), poema cuja primeira estrofe, que aparece como poema autónomo a páginas 397, aqui se repete, quiçá como esconjuro da claustrofobia e do medo que o autor sente em viajar literalmente acima das nuvens numa maquineta em forma de passarola com asas que não batem como as dos pássaros:
Numa viagem aérea és obrigado
a estar sentado, com o cinto apertado,
durante a descolagem, a aterragem
e sempre que a aeronave entra
em zonas de turbulência.
Esse texto é uma expressão,
em linguagem metafórica, da coação
imposta pela natureza e também
pela existência em sociedade,
a que o ser humano está sujeito,
e seu “utópico” desejo de plena liberdade.
Estar deitado no pequeno assento
de um avião ou de pé, convenhamos
que incomoda, além de que pode
irritar o parceiro do lado.
O Poeta, a quem o Destino
atribuiu o ofício de ser
o ápice da mais elevada antena,
quando se lhe depara um olival
de podres azeitonas
entregues a famintos vermes
(qual se tais bichos fossem
um bando d’urubus em
volta dum cadáver)
e com as nojentas
cores de tal visão
pinta um deplorável quadro − não o faz
por um sádico prazer de transformar
a terra num infecto pantanal.
O Caminhante Solitário
(de quem o Poeta é
o olhar com que ele vigia
o mundo) não é um louco
que à noite vai contando
as estrelas e de manhã
fala para si mesmo.
Mas sempre «é bom lembrar / que o Poeta, / tanto ou mais / que o mago / e o feiticeiro, / não pode servir / a dois senhores» (p. 51).
Os meus votos de uma fabulosa leitura para um livro absolutamente fabuloso − no mais lato sentido do termo.