A ocupação do tempo no espaço de Maria Mello Giraldes
Conheci Maria Mello Giraldes (1943-2020), pela mão do poeta E.M. de Melo e Castro (1932-2020), em meados de Abril de 1981. Na noite desse dia (que acabaria às oito da manhã seguinte), sentados na Dyane branca com capota vermelha, estacionada em frente ao Museu de São Roque, em Lisboa, ouvi Maria Mello Giraldes ler-me à luz mínima do tejadilho do carro, o original dactilografado, ainda em fase de apuramento oficinal, com várias dúvidas e bastas emendas manuscritas, do que viria a ser o seu livro de estreia, 5 Espaços.
Maria tinha uma voz nasalada, encantatória, serena, de uma sedução contagiante, e lia maravilhosamente os seus poemas, facto que me fez levantar a velha questão de um mau poema dito em voz alta de uma certa maneira o fazer parecer um excelente poema, e vice-versa, e pedi-lhe a gentileza de me fornecer uma cópia do livro, para uma leitura minha mais atenta, com o compromisso de lhe apontar o que me parecesse digno de ser melhorado. Ou, literalmente, a cortar e deitar para o caixote do lixo.
Dois ou três dias depois, devolvia-lhe por correio o dactiloescrito com muito poucas observações da minha lavra. E o livro acabou por sair no ano de 1983, sugerido para publicação ao editor da & etc Vitor Silva Tavares (1937-2015) por Melo e Castro, que ali havia publicado em 1982 o seu belíssimo Corpos Radiantes.
5 Espaços é um desses raríssimos livros de estreia sem um verso bambo, frouxo, ou uma palavra a menos, revelador de uma poderosíssima voz pessoal, visceralmente radical, sem dívidas nem epígonos, geradora de vocabulários inaugurais, de uma atentíssima e exaustivamente trabalhada oficina poética na consumação de uma linguagem que se não conturba, criadora da sua própria tradição, cuja fulguração só encontro paralelo entre as suas coetâneas Luiza Neto Jorge (1939-1989) e Maria Velho da Costa (1938-2020) de Da Rosa Fixa e Corpo Verde, o que há-de querer dizer alguma coisa num mundo de desatenções fulminantes e videirinhas celebrações impantes da mediocridade vigente e ululante.
«[O] redemoinho do assombro» que é esta poesia, onde «a fala ia reaprendendo a fala», de «uma mulher deitada / e eu dentro desse corpo / respirando», move-se por círculos de Tempo numa atemporalidade de espaços metaforicamente vivos, pulsantes, onde o erotismo, a paixão, a plenitude e a perda, o encontro, a partida e o reencontro, se nos deparam numa delicadeza extrema de concisão irradiante no fluir original do ritmo criador do poema, numa por vezes ironia visionária e cortante: «a glória de não ser ouvida / abre-me a boca de espanto».
Em 1988, publicou a Autora na Imprensa Nacional-Casa da Moeda, o seu segundo e último livro em vida, Seis Momentos, cujo destino de silêncio pela chamada crítica literária se repetiu com as mesmas pompa e circunstância. Que fortes razões ou desencantos levaram Maria Mello Giraldes a não dar à estampa mais nenhuma obra, das duas que em boa hora nesta Obra Reunida agora se dão a ler, Milénios e Memória da Matéria, é mistério para o qual não encontro resposta, não obstante, como a Autora, também eu «aprendi a ouvir o rasto do universo / para lá da água e dentro da pele.»
Seis Momentos confirma e sobrepassa a auspiciosa aventura poemática encetada e patente em 5 Espaços, não só pela potenciação metafórica que os temas e os motivos impõem à Autora, que se reinventa no seu fazer dizer poemático através da criação de uma espécie de alter-ego cuja leitura (sempre polifónica e multímoda) se pode fazer através de um monólogo a duas vozes, ou um diálogo pessoalíssimo e muito íntimo, entre a Mulher que é Maria Mello Giraldes («mulher, teu-meu corpo é um instante tecendo / momentos»; «tuas mãos são só tuas no acto da escrita») e a Poeta que Maria Mello Giraldes também é: «as palavras já não me chegam / que fazer com as letras que aprendi?». Ou, como nos diz na medida mais justa e se nos desvenda a própria Poeta, «solitária entre os meus duplos, / desfazia o azul e a voz.»
Novos vocabulários arrancados aos anódinos sentidos gramaticais e dicionaristas, mas também sintácticos, alimentam um mais amplo ritmo dos versos numa transfiguração da linguagem tornando-a uma força de encantamento absolutamente eficaz na construção de símbolos, revelando uma singularidade inconteste no panorama da poesia portuguesa contemporânea e um dos mais belos livros de poesia erótica escritos por mulheres em língua portuguesa. Se necessário fosse justificá-lo, bastar-me-ia o poema «momento três» e seu exemplo:
bebi os centros das verdades.
vi forças de braços quebrarem-se como vidro
ela
as palavras já não me chegam.
que fazer com as letras que aprendi?
eu
talvez a vertente de um outro não
o risco no papel ou ainda o desejo correndo
sede do teu corpo água.
quem poderá dizer o som a força
a solidão do silêncio de vozes
escrita feita de palavras desenhadas no meu corpo
mulher, teu-meu corpo é um instante tecendo
momentos.
esqueci a definição
e dei um outro significado ao texto.
o sabor do nada reescrito em longas linhas
momentos sós.
o despojar das vestes,
o nu sobre o papel.
ela e eu encontramo-nos sem caminho.
o nosso território é a incerteza desejo
amar.
ela encontra-se em si própria.
amante do seu eu, liberta-se no corpo frágil,
lábios abertos.
eu jogo com ela e com os outros que amo, amei
ou amarei. festa de fogo. renovar contínuo.
noite e manhã.
abri o diálogo como quem abre uma laranja
e deixa o sumo escorrer-lhe pelo corpo.
guardo há muito o encontro sobre as folhas
ela eu
um face a face às figuras brancas que criámos.
oiço o possível quebrar da ausência,
breves falas semicortadas.
eu
era uma ante visão.
insistentemente aguardamos o teu regresso.
ela
quebram-me com pedras nos dedos,
amam-me com palavras feitas de infinito.
eu
és figura incerta neste cenário certo,
fruto suspenso em manhãs de bruma.
ela
queria um tempo novo e vazio,
lugar esquecido em dias idos,
distanciado dos anos de ardente amante,
longe da paisagem insegura onde brinquei.
eu
teu espaço não é o irreal onde te escondes.
teus olhos não te pertencem.
precisamos teus dedos sobre os nossos cabelos.
ela
tenho medo das folhas
caindo
eu
amamos a fragilidade e o som de tuas palavras.
ela
quero fugir e ficar imóvel
esperando.
quando em meus olhos não houver mais olhar,
talvez me encontre
eu
nunca te deixaremos imóvel.
serás sombra movimento,
círculo de água.
ela
desejo folhas para me confundir no esquecimento
deixar meu corpo envelhecer nas árvores
eu
no mesmo encontro com a terra
o renascer do amor.
descobriremos nossos sinais.
ela
tenho um grito de angústia sobre as mãos.
procuro uma fresta
e a vossa voz não desaparece.
eu
respira tranquilamente.
tuas mãos são só tuas no acto da escrita.
pertencem-nos como fonte de manhã circulando
no meio da multidão de detritos que nos envolve.
ela
não sei do meu encontro com a minha sombra.
na minha figura, figura o desejo do branco dormindo
calma de vultos gemendo gritos.
Como se fosse a prossecução do mesmo poema (longo poema fragmentário, bem entendido, que esta Obra Reunida nos dá a ler à saciedade, como se de uma tetralogia poética se tratasse), esse longo poema fragmentário iniciado em 5 Espaços tem em 6 Momentos o seu abrir-se em leque para as duas obras inéditas que se lhe seguem: Milénios («eu / pedes agora o sono dos abatidos / ou um inesgotável adiar de milénios?») e Memória da Matéria («eu / navegava no meu barco ambulante de ventos, / quando pintaste cores que não conheço.»).
Milénios é «a clara evidência da obscuridade. / metamorfose dos eus recriando dizeres. as ideias / mais nítidas ensombradas na procura do conhecer. a harmonia / gera a harmonia»; «o instantâneo de um movimento captado entre / os infinitos. isolamento vivo de uma imagem traduzida. essência. a palavra da pergunta. tentativa móvel permanecendo / inacessível», lá onde «o poema respira» e se encontra viva «a imagem / nítida da inversão ilimitada de anseios universais / ainda e sempre fragmentados pela urgência de não saber.»
Há nestes poemas um tom especulativo mais acentuado, um inquirir da sageza das coisas da inteligência sensível do mundo, que nos sobressaltam pelo rigor imposto na construção dos versos, na sua limpidez irradiante, onde «a procura da palavra / articula o silêncio» num «ritmo alucinante na espera» para «o questionar subindo degraus inexistentes» em direcção a um «túnel aberto à ignorância.»
Poesia sábia, carregada de metáfora como convém a toda a Poesia capaz de criar todo um universo, posto que, segundo Octavio Paz, «a palavra poética é ritmo, temporalidade emanando e engendrando-se incessantemente. E, sendo ritmo, é imagem que abraça os opostos, vida e morte num único dizer»1, consumando a significação plena do acto poético, em que o poeta cria poemas que o leitor recriará com a sua pessoalíssima memória e inteligência sensível, tornando-se deste modo o leitor o verdadeiro e derradeiro poeta de cada um dos poemas que ler, através desses «artifícios metafóricos de um inédito real» e desses «símbolos conduzindo destinos» onde «os sóis desfilam na nudez do tempo» e «a luz é uma pedra intemporal», não obstante «o desespero inscrito nos arquétipos» e «o medo do salto ou a insegurança do saber.»
Muito embora Memória da Matéria possa sugerir, a uma primeira leitura, quer pelo tema quer pelo modo como esse tema é tratado pela Autora, «uma releitura de O Marinheiro de Fernando Pessoa», como notam Cátia Terrinca e Ricardo Boléo no «Prefácio» a esta obra ̶ , seguindo os preceitos teóricos do próprio Pessoa sobre o «teatro estático», onde afirma:
Chamo teatro estático aquele cujo enredo dramático não constitui acção – isto é, onde as figuras (postadas) não só não agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre deslocarem-se, mas nem sequer têm sentidos capazes de produzir uma acção; onde não há conflito nem propriamente enredo.2
afigura-se-me Memória da Matéria um texto incabível em tal teorema. E também o não leio como um conto («porque um conto é, ao contrário de uma novela, uma narrativa momentânea, uma suspensão no tempo; e porque um conto é, ao contrário de um romance, menos uma meditação animada sobre a vida, que uma contemplação sonhadora desta»3, na bela definição que dele nos dá Jorge de Sena), e, menos ainda o leio como «[u]m conto surrealista», não obstante a carga de onirismo e a presença de elementos e símbolos esotéricos, mananciais tão caros aos surrealistas, que Maria Mello Giraldes mais declaradamente aqui convoca numa mais expansiva e cosmogónica leitura do mundo e do seu instante inaugural, tornando Memória da Matéria não apenas o fecho de um ciclo pessoal de criação poética, mas sobretudo criando uma verdadeira epopeia erótica polifónica, na esteia de um Saint-John Perse ou de uma Marguerite Duras de Textos Secretos, por exemplo.
A dessacralização do Tempo, num «retorno à virgindade inicial, numa sedução de memórias»; a forte e poderosa tensão da escrita, onde «inconformismo e acaso é a energia que lhe move o desejo» e onde «a sabedoria era o ventre da nascente do saber», apossando-se da imagem do labirinto como metáfora de contingência da própria vida e do consumar o texto como seu ritual transformado em Poema, vão conduzindo como que hipnoticamente o leitor para um espaço cada vez mais rarefeito, claustrofóbico, ao qual o leitor é incapaz de resistir, mesmo que de respiração suspensa ou ofegante, em prosseguir leitura na fruição encantada e mágica do texto, porque aí reside o seu poder de sedução mais feroz e mais doce, a sabedoria fabulosa da «sacerdotisa que vai iniciar o ritual»: «Ela sabia que se nada dissesse, tudo lhe seria dito.»
- 1. Octavio Paz, O Arco e a Lira, tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht, São Paulo, Cosac Naify, 2013, p. 155.
- 2. Fernando Pessoa, Prosa Publicada em Vida, edição de Richard Zenith, Lisboa:, Círculo de Leitores, 2006, p. 31.
- 3. Jorge de Sena, «Andanças do Demónio. O elucidativo prefácio (1960)», in As Antigas e Novas Andanças do Demónio, Sintra, Focus, 2003, 4.ª ed., p. 233.