A magnificente metaforização do poema: poesia marroquina contemporânea escrita por mulheres.

Não obstante a proximidade geográfica de Marrocos − país que ascendeu à independência a 2 de Março de 1956, libertando-se de uma França desconjuntada no seu chauvinismo e já sem terra firme debaixo do seu colonial império, com a eclosão da guerra na Argélia, e do protectorado espanhol, instaurado a 27 de Novembro de 1912 −, não obstante a proximidade geográfica, dizia, e as suas riquíssimas cultura e literatura, resultantes de uma mescla antiquíssima, em cujo mosaico se impõem as culturas e literaturas árabes, berberes, africanas e também europeias (particularmente de  Espanha e de França), pouco ou nada, em Portugal, se conhece da sua poesia, e, menos ainda, da poesia marroquina escrita por mulheres. 

A presente antologia, que se não pretende exaustiva de quanto mulheres escreveram e publicaram, mas que em si congrega o que sói chamar-se quatro gerações de poetas, sendo a mais velha, Malika el Assimi, nascida em 1946, e a mais jovem, Lamiae el Amrani, nascida em 1990 − todas elas com obra publicada após a independência nacional do país −, é uma proposta para tornar menos gritante o desconhecimento de uma poesia absolutamente desembaraçada de exotismos (para os quais o palato ocidental é sempre de uma generosidade paternalista desenfreada, quando não mesmo de uma avidez insaciável) e de pitorescos neo-realísticos ou quejandos − sempre tão tentadores e fatais a candidaturas poéticas que jamais almejaram chegar ao Poema −, apresentando-se, pelo contrário, com uma vitalidade, uma diversidade de temas e motivos, uma multiplicidade de vozes, uma frescura e uma liberdade notáveis, impondo-se, pela sua qualidade estética inequívoca, pelo seu fulgor poético inquestionável − que é tudo quanto verdadeiramente importa, quando de Poesia se trata.

Cumprida a função da poesia que em seu empenhamento político foi um modo de consciencialização, de resistência contra o colonialismo, e de luta pela independência de Marrocos, uma nova expressão poética, com o advento da independência, começa a tomar forma, criando o seu próprio espaço no panorama da poesia árabe. É neste contexto que se inserem as poetas que aqui se dão a ler, em pé de igualdade com a poesia escrita por homens, a qual, desde há séculos, detém uma preponderância incomensuravelmente maior. 

Com um mercado editorial precário e a pouca importância dada à literatura em geral, e à poesia em particular – ao contrário de outros países árabes, como o Líbano e o Egipto, por exemplo, que tanta influência haveriam de exercer nos finais do século XIX e durante a primeira metade do século XX na formação de uma literatura e poesia inequivocamente marroquinas, mormente escrita por mulheres −, tem sido através de jornais e de revistas que, desde os anos de 1960 e 1970, a poesia marroquina se tem feito divulgar. Entre essas publicações, abertas à modernidade e à inovação criadora, é justo salientar a revista Souffles (Respirações), publicada entre 1966 e 1972; Afâq (Horizontes), criada pelo pensador do personalismo filosófico árabe, Muhammad Azíz Lahbabi, em 1963; Aqlâm (Plumas), de 1964; Cinema 3, de 1970; Al-thaqafa al-yadída (A Nova Cultura), criada pelo poeta Muhamad Bennis, em 1974, entre outras. 

Perante este desolador cenário editorial, recorrem, na sua esmagadora maioria, poetas e escritores, à edição de autor, a quem cabe ainda a difícil colocação das respectivas obras no mercado, sem, por um lado, um imediato retorno material do investimento feito, e, por outro, a realidade de uma quase nula divulgação crítica dessas mesmas obras. 

O tardio acesso das mulheres à educação e à cultura durante o ressurgimento árabe iniciado no século XIX (de que o Egipto foi o país líder) é o factor que leva a que pouquíssimos nomes femininos sejam dignos de menção na moderna literatura árabe, entre finais do século XIX e princípios do século XX, onde se poderá destacar como pioneira das primeiras manifestações da sensibilidade feminina a poeta egípcia Á’icha al-Taymúriyya (1840-1902), não obstante a sua lírica estar imbuída de conservadorismo político e moral. 

Neste contexto, não é de estranhar terem sido as egípcias as fundadoras de uma literatura árabe escrita por mulheres, uma vez que já no século XX, muitas delas surgiram ligadas ao movimento feminista egípcio, precursor no mundo árabe, onde, entre outras, se destaca pela sua activa participação como mulher no universo cultural, a escritora cristã Mayy Ziyáda (1886-1941), nascida em Nazaré, filha de pai libanês e mãe palestina, que em 1904, com a família, se estabeleceu definitivamente no Egipto. A sua obra criadora, que abarca a ficção, o jornalismo e a crítica literária, aliada à sua acção cívica e à influência que exerceu na formação de outras poetas e escritoras, contribuíram decisivamente para a criação de uma tradição literária feminina no mundo árabe. São célebres as tertúlias dos salões literários (ao estilo dos salões franceses), que organizava na sua própria casa, entre os anos de 1913 e 1933, onde pontuavam as mais relevantes personalidades das letras árabes. Com estes salões, Mayy Ziyáda recuperava uma antiquíssima tradição árabe, que remonta aos primeiros tempos do Islão e à princesa andaluza Walláda, na cidade de Córdova, no século XI. 

Porém, a antecedê-la na prática de tertúlias literárias no Egipto contemporâneo, a princesa e também poeta, Nazli Fádil (1880-1914), sobrinha do quediva Isma’il, foi a primeira aristocrata, em 1909, a abrir as portas do seu palácio a poetas e escritores, e a muitas outras personalidades, quer do Oriente quer do Ocidente, acabando a sua biblioteca pessoal e familiar, após a sua morte, por se tornar o núcleo fundador da actual Biblioteca Nacional do Egipto. 

Não obstante a sua origem e pertença às classes sociais privilegiadas, às quais se deve acrescentar o nome da literata Malak Hifní (1886-1918), facto que terá contribuído para limitar a propagação mais célere dos seus ideais feministas, é inequívoca a sua importância, a valiosa contribuição do seu exemplo de mulheres comprometidas e cultas, para a formação e implementação dos movimentos reivindicativos posteriores, não só no Egipto, como um pouco por todo o mundo árabe. 

Herdeira destas pioneiras, é a literata e feminista Durriyya Chafiq, célebre pela sua luta em prol dos direitos da Mulher. Doutorada em Filosofia pela Universidade da Sorbonne, fundou em 1945 a revista Bint al-Nil (A Filha do Nilo), nome que deu a uma associação feminista, que criou três anos depois. Através da actuação desta associação, e depois de se persuadir de que com a sua actividade intelectual não iria a lado nenhum, optou por uma postura mais radical, encetando, para defender os seus ideais, não só manifestações como greves de fome. Tais atitudes redundaram em perseguições por parte do governo, que a condenou a prisão domiciliária, primeiro, atirando-a depois ao mais absoluto ostracismo social, obrigando inclusivamente o seu marido a divorciar-se dela. Não tendo sido capaz de superar tanta contrariedade, tanta dor e sofrimento, acabou por se suicidar em 1975.

Não será Durriyya Chafiq exemplo único de suicídio, entre as suas congéneres, muito embora as razões sejam as mais variadas, onde a marginalização, a perseguição e o cárcere, envenenando a sua saúde, física e psíquica, são as causas mais frequentes de suicídio entre estas batalhadoras incansáveis, comprometidas através da palavra criadora com os movimentos políticos de libertação dos seus países e povos, com as melhorias de condições de vida das suas sociedades, com os direitos cívicos das Mulheres, onde a sua libertação de uma dupla exploração (quer na intimidade, quer em sociedade), as leva à reivindicação de uma igualdade mais efectiva em relação aos homens. 

 Factor importante na afirmação e renovação da poesia árabe contemporânea, foi a introdução, nos anos de 1940, do verso livre na poesia, feito levado a cabo sobretudo por mulheres poetas libanesas, onde se destaca como sua introdutora a poeta Turaya Malhas (1925-2013), com o livro al-Nashid al ta’ih (O Hino Extraviado), publicado em 1949. No Iraque, a poeta Názik al-Malaika (1922-2007) e o poeta Abd al-Wahhab al-Bayyáti (1926-1999) foram os primeiros a dar a conhecer a nova forma poética, tendo Názik al-Malaika publicado em 1947 Ashiqat al-layl (Enamorada da Noite).

Porém, é a poesia palestina escrita por mulheres que irá consolidar o prestígio da poesia árabe dos nossos dias, totalmente liberta dos modelos clássicos e aberta à imaginação sensível, reflexiva, política e socialmente, como compete a uma poesia de combate, na qual se devem destacar os nomes de Fadwa Tuqan (1917-2003) e Salma Jayyusi (1926-2023). 

No contexto da poesia árabe, cada qual com suas especificidades históricas, seus factores económicos e sociais, sua situação geográfica, etc., a poesia marroquina distingue-se por surgir nos seus alvores directamente ligada à poesia síria e libanesa, de quem recebeu influência indelével e da qual é devedora, não tendo tido qualquer repercussão nela o ressurgimento cultural árabe (com seu epicentro no Egipto, como já foi referido), posto Marrocos ter-se mantido fora do bloco arabófono devido à sua submissão à hegemonia turca. Essa é a razão por que, não só pela situação geográfica do país, como também pelo seu devir histórico, se veio a criar em Marrocos uma literatura completamente distinta, porém sem o reconhecimento histórico e a importância, quer da literatura produzida pelos países do Próximo Oriente, como da literatura produzida pelo Al-Andaluz, não obstante registar nomes importantes nos séculos XII e XIII, como Ibn Habbous, Abou-l-Abbas al-Jiraoui, Ibn Khabbaza, Abou Ali al-Youssi, Ibn Zakour e Abou at-Tayib al-Alami. 

Acontece, porém, ter Marrocos uma antiquíssima e poderosa poesia popular de tradição oral, sendo Sidi Abderrahma_n el Mejdoub, no século XVI, um dos seus mais importantes reinventores, ao criar uma poesia densa de ironia e de fábula, cujos poemas constituem parte substancial do que a memória colectiva guardou e veio transmitindo de geração em geração. Mas durante o longo protectorado colonial, devido aos seus interesses políticos e coloniais, a literatura oral foi paulatinamente deixando de se manifestar, acabando por se destruir quase em absoluto todo este vasto e riquíssimo património, que praticamente caiu no olvido.

Devido à distância física entre Marrocos e o Próximo Oriente, berço da literatura árabe e marca indelével do seu renascimento cultural, como já foi referido, para além de questões históricas, como Marrocos ser o único país que não fazia parte do império otomano, e, por conseguinte, não lhe ter sido possível usufruir da evolução e intercâmbio culturais que se registaram sob a sua égide, a poesia marroquina, sofrendo uma profunda resistência à novidade e estribada na tradição e na religião (em que os ares vindos do Ocidente não colhiam bem no pensamento da época, entre meados do século XIX e princípios do século XX), não registou uma evolução nem mudanças de afirmação significativas ao longo dos últimos séculos.

Já no século XX, e durante o protectorado espanhol, com a tardia introdução da imprensa, a criação de debates que permitiram aos intelectuais participar directamente nos acontecimentos históricos, e na sequência do renascimento cultural árabe moderno, surge o movimento reformista de Marrocos, que impulsionou não só o nacionalismo no país magrebino, como espoletou uma grande actividade sociocultural, centrando-se esta sobretudo na publicação de trabalhos sobre a cultura islâmica, de características eminentemente conservadoras e pouco vocacionadas para formas de realização de sentimentos e de visões líricas do mundo. Contudo, alguns nomes se impuseram, como o de Muhammad al-Sabbag (1929-2013), e o de Mustafá al-Mi’dawi (1937-1961), que foi o mais importante poeta marroquino durante o período do protectorado espanhol. 

É durante este período que vai surgir uma literatura de consciencialização política e social sobre as condições em que o povo magrebino vivia, tornando-se numa literatura de resistência ao colonialismo, especialmente durante a época de Abdelkrim e da guerra de Rife, e que se divide em dois períodos: o primeiro, desde o início do protectorado até à proclamação do Dahir Berbere (decreto assinado em 16 de Março de 1930 pelo sultão marroquino Muhammad ben Yusef, na época do protectorado), e o segundo período, marcado pelo crescente fortalecimento do movimento nacionalista, a partir de 1940, até à consumação da total independência do país. 

Com a conquista da independência, chega finalmente a Marrocos o já referido movimento do ressurgimento cultural árabe, mesclado com influências ocidentais e novas referências culturais trazidas pelo regresso das elites formadas em universidades espanholas e francesas, sofrendo assim a poesia marroquina (e a sua literatura em geral), a partir daí, uma mudança e uma evolução, quer na sensibilidade dos seus temas e motivos, quer na forma do seu tratamento, acompanhando e testemunhando o desenrolar dos acontecimentos históricos, bem como o surgimento de novas ideias e práticas sociais, começando a surgir e a afirmar-se um cada vez maior número de mulheres encetando o seu próprio caminho dentro do panorama da poesia e da literatura marroquinas. Mais do que uma literatura ou poesia feministas, no mais rigoroso sentido da palavra, é antes uma literatura e uma poesia escrita por mulheres o que se constata, sobretudo a partir dos anos de 1980, cada qual criando a sua voz a partir das suas muito pessoais e particulares especificidades, seus universos e mundividências, tornando-se assim o próprio sujeito do poema e não já apenas o objecto poético, não se constituindo nem uma escola nem um grupo propriamente ditos, mas uma pluralidade de vozes e sensibilidades, o que torna esta literatura e esta poesia uma das aventuras intelectuais mais estimulantes e mais surpreendentes da contemporaneidade em África.

O reconhecimento do seu trabalho, através do qual erguem a voz e reivindicam os seus mais elementares direitos, começou a surgir nos anos de 1990, ainda que fora de Marrocos, muito embora em países árabes como a Tunísia, a Síria e o Líbano, onde muitas das poetas magrebinas foram agraciadas com vários prémios, facto a que não é alheio o pouco apoio recebido no seu país de origem e o facto de se expressarem na língua árabe. Paulatinamente, esse reconhecimento da voz das mulheres marroquinas e da sua poesia tem vindo a encontrar um interesse cada vez mais consistente, sobretudo em Espanha e França, mas também na América Latina e nos EUA, particularmente em festivais internacionais de poesia e nas universidades.

Nos finais dos anos de 1990, surge uma renovação nesta poesia, com o surgimento de novas vozes, caracterizando-se estas por uma escrita completamente diferente. Trata-se de uma escrita centrada não só numa realidade outra, mais intimista, onde o desejo e a paixão, a sensualidade e o erotismo, mas também a solidão, a angústia, o abandono e a perda, as várias formas de opressão (familiares e sociais) de que são vítimas, a tragédia migratória da travessia do Estreito de Gibraltar e a morte inominável no Mediterrâneo, tomam um lugar fundamental na sua criação poética, numa potenciação metafórica absolutamente notável. E esta mutação, mormente a partir dos anos de 1980, quando se verifica uma ruptura com a tradição e uma busca de novas formas estéticas e poéticas, como o verso livre e o poema em prosa, produziu uma maior presença social da Mulher, não só na poesia, como na própria sociedade magrebina, com o seu acesso à educação e à inserção da Mulher no mercado de trabalho. 

Na verdade, deve-se à ruptura introduzida pela reforma do Código da Família de Marrocos, Al Moudawana, aprovada pelo parlamento em 2004, a conquista de direitos substanciais das mulheres, de que se destacam: a liberdade para a escolha do cônjuge, o fim da tutela (wilaya) do homem sobre a mulher, o aumento da idade para contrair matrimónio (dos quinze para os dezoito anos), e uma forte restrição à poligamia, ainda que seja autorizada apenas em determinadas circunstâncias nada fáceis de cumprir.

Outro importante factor para a afirmação e expansão da poesia marroquina (e também da prosa de ficção) escrita por mulheres é o facto de muitas das poetas utilizarem o bilinguismo, ou seja, a par da língua árabe, escreverem os seus poemas também em espanhol, catalão ou francês, quando não mesmo originariamente nestas línguas, procedendo posteriormente à sua tradução para árabe.

O que primeiramente se deve sublinhar nos exemplos patentes nesta breve antologia, é um inequívoco desmoronar, se de intrínsecas qualidades estéticas e poéticas se fala, das tão propaladas discussões sobre as questões de género, pois bastará apenas talento e ter o que dizer, dizendo-o e afirmando-o na voz mais alta, que é a voz da escrita, para que esta poesia escrita por mulheres em rigorosamente nada ser menor ou subalterna se comparada à poesia escrita por homens. É Poesia, no seu mais alto fulgor, o que nestas páginas se dá a ler: não há aqui nenhum versinho bonito, nenhum acamar de banalidades umas sobre as outras num irrepreensível gramaticalismo sentimental e pitoresco, como o que se vê, de Áfricas e Europas ou Américas dos Nortes e do Sul, hoje e de há muito a esta parte. E a razão é básica: a Poesia, a digna desse nome, só pode nascer da Vida, quando a Vida é vivida, com todas as suas tragédias e esplendores, e se nos cola à mais secreta voz das vísceras e ao pessoalíssimo ritmo do sangue que nos corre nas veias. E não há um único poema nesta antologia que não cumpra o rosto mais fiel, irreverente e encantado, inquiridor e dadivoso da sua autora, na poderosíssima metaforização multímoda das coisas do mundo.

 

Alguns poemas de SEREIA ADORMECIDA: poesia marroquina contemporânea escrita por mulheres 


MALIKA EL ASSIMI

MALIKA EL ASSIMIMALIKA EL ASSIMINascida em Marraquexe em 1946, é uma das primeiras mulheres a dedicar-se à criação poética na década de 1960, altura em que editou a revista Al-Ikhtiar (A Elecção). É professora na Faculdade de Letras de Marraquexe, membro da União de Escritores de Marrocos, activista política e investigadora no Institut Universitaire de la Recherche Scientifique de Rabat. Publicou os seguintes livros: Algo que tem nome, 1977; Escritos fora das muralhas do mundo, 1988; Vozes de uma garganta morta, 1989; A mulher e a problemática da democracia, 1992.  


O SANGUE DO SOL 

A fúnebre derrota assoma

a partir dos teus olhos,

a injusta derrota salta

de teus olhos

enquanto com a vela iluminas 

a noite

que te domina.

Mãos perversas 

convocam-te para o campo de batalha, e

pecam, transgridem

sem pudor,

erguem-se como serpentes

envenenadas,

assaltam o universo

e submergem num mar

de sangue.

As crianças

envelhecem

e derrama-se

o sangue do sol.

LAILA BELGHALI

Laila Belghali nasceu em Tetouan, em 1963. Estudou nos Colégios espanhóis Jacinto Benavente y Nuestra Señora del Pilar, e na Universidade Abdelmalik Saadi, em Tetouan. A sua poesia tem sido publicada em jornais e revistas, como L’Opinion, La Mañana e La Despeche, e figura na antologia Literatura Marroquíen Lengua Castellana, organizada por Mohamed Chakor e Sergio Macías, publicada em 1987.

HOJE REGRESSEI

Fui hoje ao lugar dos nossos beijos

recolher o que sobrava do teu cheiro;

o pequeno sorriso protelado,

a palavra derradeira

que flutuava no ar,

alguma sombra vaga do teu corpo,

um eco, um gesto, um ligeiro toque, um olhar.

Não voltei para apagar a última pegada

e que ninguém suspeite do que nos pertence.

Não, não. Que importa isso?

A minha avareza

de ti fez-me voltar,

para ver se entre o silêncio e a carícia

deixaste acaso esquecido algum desejo.

 

MAR NO INVERNO 

Não sei, mar, se és

meu amigo ou meu inimigo.

Em todo caso não és o mesmo perante os meus olhos.

Como podes, assim de repente, esquecer

tantas horas de paz que contigo passei? 

Para te contar as minhas penas, com a alma cansada

aproximo-me dos teus pés, tal como no verão.

E não encontro no teu rosto o olhar sereno.

E não me dizes «vem» nem me estendes a tua mão,

Alvoroçado e agreste.

Não sei, mar, se és

meu amigo ou meu inimigo.

Em todo caso, eu sou a mesma de ontem.

Voltei e não me vou embora sem falar contigo.

 

WIDAD BENMOUSSA

Nasceu em Alcácer Quibir em 1969. Para além de poeta, é artista plástica e trabalha como repórter do diário El Alam (O Mundo). Colabora regularmente em revistas culturais, quer em Marrocos quer no estrangeiro, e tem ainda participado em vários encontros e festivais de poesia, quer no seu país quer fora dele. Publicou os seguintes livros: Tenho uma raiz no vento, 2001; Entre duas nuvens, 2006; As janelas que abri sobre ti, Rabat, 2006; Tempestades do corpo, 2008.

 

TRISTEZA DAS JANELAS 

Em casa de minha avó

há janelas que fulguram.

Na minha infância

ensinei-as como festejar a chegada dos pássaros,

permanecerem abertas,

sobre o calor do sol

e a perversão das luas.

 

Uma a seguir à outra, 

dava-lhes aulas de memória.

 

Naquela casa

as janelas são tristes.

Não havia ali mais

que as flores da minha avó

e um pouco da sua vida

suspenso da parede…

 

LIÇÃO

A minha vizinha no amor

disse-me:

Por que há tanta janela iluminada

no teu corpo?

Por que tantas flores as envolvem?

Que são essas numerosas luas?

Quem te ofereceu esses céus?

 

A minha vizinha no amor

ignora

o amor. 

 

AÏCHA BASSRY 

AÏCHA BASSRY AÏCHA BASSRY Nasceu na cidade de Settat em 1960. Licenciada em Filologia Árabe pela Universidade de Mohamed V de Rabat, é membro da Casa da Poesia e da União de Escritores de Marrocos. Colabora regularmente na imprensa escrita do seu país, onde, para além de poemas, tem publicado artigos sobre artes plásticas. Tendo sido a primeira poeta marroquina a publicar os seus poemas em espanhol, a sua obra encontra-se traduzida para francês, catalão, italiano, turco e (agora) português. Tem participado em vários festivais literários na Holanda, França, Jordânia, Egipto, Espanha e Sudão. Publicou os seguintes livros: Tardes, 2001; Insónia dos anjos, 2003; Uma varanda ensombrada, 2004; A candeia do poeta, 2006; A solidão da areia, 2006; Solto as minhas asas, 2009.

 

SE NÃO FOSSE POR PUDOR

Quando te encontrei pela última vez,

sussurraste a uns transeuntes:

todos os homens me invejam;

sinto-me livre de tal forma,

que me irrito.

Que farei agora com os meus instantes,

com um leito vazio,

e uma longa noite entediante? 

Se não fosse por pudor,

ter-te-ia pedido dois minutos,

apenas dois,

durante os quais te haveria amado a vida inteira

para partir logo depois. 

 

FATIHA MORCHID

FATIHA MORCHIDFATIHA MORCHIDNasceu em Benslimane em 1958. É médica pediatra, tendo-se doutorado em 1985. É membro da União de Escritores de Marrocos e uma das poetas marroquinas mais divulgadas no estrangeiro, tendo participado em inúmeros encontros e festivais de poesia, tanto no seu país, como na Tunísia, Argélia, Bahrain, Egipto, França, Panamá e Dinamarca. Poemas seus encontram-se traduzidos para espanhol, francês, inglês, italiano, turco, dinamarquês, e (agora) português. Dirigiu ainda, durante vários anos, um programa sobre educação sanitária na segunda cadeia de televisão de Marrocos. Publicou os seguintes livros: Sinais, 2002; Folhas enamoradas, 2003; Folhas enamoradas, com um estojo artístico do pintor Ahmed Jarid, 2003; Vem para que sejamos chuva, 2005; Que obscuridade oculta o arco-íris?, 2006; Apenas momentos, 2007, e o romance Instantes e nada mais, 2007.


LÁ, ONDE AS CASUALIDADES SÃO DATAS

1

Éramos dois feridos 

e ciosos de uma noite

que tanto havíamos esperado

uma noite mais curta que uma delícia.

Os seus minutos debicam

o nosso cansaço

como uma ilusão de sossego

foi um sonho nosso

era a promessa de um clamor.

2

Éramos dois feridos

a escuridão para a luz

é um olvido

e dois lábios

que humedecem as brasas da advertência

com o sabor da terra.

3

No caminho que a ti me leva 

em pé me detiveste

como uma palmeira

que não admite submissão.

4

Em direcção ao céu

em direcção aos meus abismos

levanto os meus ramos.

5

Éramos dois feridos

enquanto esta noite assombrava tanto

como um pecado

aberto ao céu

e mãos que não têm qualquer motivo

para saudar a lua.

6

Éramos dois feridos

Enquanto taças zumbiam

como desilusão de uma dúvida

num equívoco majestoso

este calor refrigerava os sentidos

e num desaconchego

os órgãos desamarram-se.

7

Do manancial do tempo bebemos

como crianças de uma alvorada recém-nascida

com lábios endurecidos

de tanto beijar

acariciamos as gargalhadas do vento.

8

Assim…

como o arco-íris

abandona a cintura do céu

abandonei

durante um dilúvio

os meus rios

eterna é a tua sede

Quanta chuva necessito

para baptizar este amor!

9

Quantas vezes

pisámos a monotonia

dos nossos dias!

Com a agilidade de uma borboleta,

refugiámo-nos

nas sombras dos instantes

precedendo os nossos sonhos.

 

DOUTRO TEMPO

Sou mulher

doutro tempo,

apoio o estetoscópio 

sobre o coração do mundo

que me não escuta.

 

E cada vez que a pedra 

quebra o meu fluxo,

às areias o entrego.

 

O furor do vento

arranca os ramos.

Os que sobraram

consagrei-os

ao nada.

 

Beberei o brinde

da tempestade.

Talvez possa

morrer

de amor

por dose excessiva. 

 

RAJAE TALBI

RAJAE TALBIRAJAE TALBINasceu em Casablanca. Escritora, poeta e tradutora, é licenciada em Literatura Árabe pela Universidade Hassan II de Casablanca, tendo obtido o Diploma de Estudos Avançados no Departamento de Poesia Moderna da Universidade Mohamed V de Rabat. Trabalha como administradora na Direcção do Livro, Bibliotecas e Arquivos, exercendo ainda a função de directora do Departamento de Museus Nacionais e Regionais. Entre 2001 e 2007 foi directora do Departamento de Apoio ao Livro. É membro da União de Escritores de Marrocos e de várias outras instituições. A sua obra foi já traduzida para turco, alemão, espanhol, e (agora) português. Figura em várias antologias. Publicou os seguintes livros: Sóis da identidade, 2000; Olho emigrante, 2004, e Frio ligeiro, 2009.

 

LUA, ASTRO AMIGO

Apago as luzes,

deixo a escuridão

encher o quarto,

abro a janela,

atiro-me para cima da cama,

permito ao astro entrar no meu quarto,

acariciar o meu corpo.

Embriago-me, enquanto os seus dedos de prata

soletram a minha brancura.

Fecho os meus olhos

e deixo os meus gemidos,

os meus sonhos,

acender as suas flores,

soltar as suas línguas,

arder no seu fogo.

 

Astro voraz,

astro ávido

com sombra,

aflora fogos

indómitos que queimam.

 

Lua, astro amigo.

 

ESPERO… PELO TEU FOGO

Não é homem para essas mulheres

que cedem ao desejo do corpo

(E como grita o desejo).

Ele é para a mulher

que se senta junto à luz,

fala com flores,

ilumina profundamente o fogo das suas entranhas

e não se sacia mais que da palma do amor.

Vem,

semeia jardins,

ilumina a noite

e desperta os fantasmas do lar

(Seus companheiros),

para incendiar os fogos da noite e da festa

que se completa

com o abraço da sua chama desejada.

 

AMAL AL AJDA

Nasceu em Alcácer Quibir em 1967. Licenciada em Literatura Árabe pela Faculdade de Letras da Universidade de Tetouan, onde obteve o grau de Estudos Avançados. É professora. É membro da Associação de Escritores de Marrocos, e foi galardoada com o Prémio para Criação Feminina de Fez. Publicou, em 2007, Restos de palavras.

CALMA

Esta calma é tão antiga e tão inquietante;

estão embriagadas as mãos das candeias;

extravagantes, anseiam o rosto do céu;

crucificadas as cortinas,

lentos os passos,

mudos os olhos

e selados com areia os corações,

corpos merecedores,

faróis que, desdenhosos, limpam a noite,

e nada estremece, a não ser eu… e a lua.

 

FÁTIMA ZAHRA BENNIS

Nasceu em Tetouan em 1973. Começou a publicar os seus poemas a partir dos anos 1990, em diversos jornais e revistas literárias árabes. É membro da União de Escritores de Marrocos, da União de Escritores em Rede, e do movimento “Poetas del Mundo”, do Chile. A sua obra tem sido traduzida para espanhol, francês, inglês, e (agora) português. Participou em vários encontros poéticos e literários. Em 2006 foi-lhe atribuído o Prémio de Criação do Centro La Luz, na Suécia. Publicou A paixão de fuga, em 2004, e Nos braços de uma lua, em 2008.

PARAÍSO DE FOGO

Prazer amante!

Que dolorosa é a tua brancura!

Lanças de muito alto

os teus gemidos,

navegando em meu redor.

Paraíso de fogo

por cujo fundo

fluem

rios.

À margem da dispersão

acompanho o teu desprendimento,

dobro-me

sobre mim

e faço crer

à minha taça vazia,

que a tua espera

é mais apetecível

que a fortuna da abundância.

 

DELÍRIO

No oculto da separação

me refugio.

A minha paixão multiplica-se

com o desconhecido,

toda a base interna do meu corpo se desmorona

para que eu não me debilite mais.

Criarei uma cascata de água

para me meter dentro dela,

quando a secura se intensificar em mim.

Fumarei o perfume do mar,

conservarei as ervas da primavera,

farei, com o sussurro das árvores, o meu idioma,

tentarei existir.

Murmúrios

aqui e ali

assinalam que sou desobediente da noite,

afeiçoada à fuga.

Porém sou inocente da minha fantasia

que me leva

ao prazer da ausência

por um surpreendente abraço.

Absorvo a arte do impossível,

peço a chuva de meu ventre

sem me aperceber

do meu tremor

no corredor deste meu delírio.

E que destino tenho!

Sonho

e acomodo-me ao meu desalento.

Vou errando

até me conformar. 

De mim se exala o aroma da sede,

e com as minhas anotações

se apagam os sedentos.

Que pena!…

Estou a sofrer com os meus desejos,

estou a envolver-me com os meus sopros,

errando pelos desertos.

Na minha vagabundagem reside a minha queimadura,

e na minha queimadura reside o meu definhamento, e no meu 

definhamento reside a anunciação de outra vida.

 

LAMIAE EL AMRANI

LAMIAE EL AMRANILAMIAE EL AMRANINasceu em Tetouan em 1990. Licenciada em Língua e Literatura Hispânica pela Universidade Abdelmalek Essaadi, de Tetouan, é doutorada em Comunicação pela Universidade de Sevilha. Colaborou na rádio intercultural Wahatu Al Andalus, em Sevilha. Participou em recitais poéticos em Cartagena, Granada, Los Alcázares (Múrcia), Huesca, Saragoça, Madrid, e em Coquimbo e Santiago do Chile, no Chile. Publicou poemas e artigos em várias revistas, e deu conferências em várias universidades espanholas e chilenas. A sua obra escrita originalmente em espanhol foi traduzida para árabe. Dentre os seus livros, destacam-se: Verde mar sem asas, 2007; Um suspiro inapreciável de uma noite qualquer, 2007; Lanças a partir de uma margem da alma, 2008; A paixão intimista, 2009; Tempestade de especiarias, 2010; Poesia feminina e sociedade: Antologia poética marroquina, 2010; Veias do deserto, 2018.

AO LONGE

Em memória das vítimas dos sonhos do estreito

À superfície aparece uma mancha

é uma alma adormecida, exausta,

as estrelas-do-mar acompanham-na

até à sepultura,

as nuvens estão de luto,

já não choram, já não dormem.

O céu apaga-se.

E à cerimónia cobre-a o mar 

com um lençol branco.

 

ALMA DESVENTURADA

Amarrei-me a um vento traidor

Que me atou ao ventre do mar

E me tapou a boca

Com bolhas salgadas

Lágrimas que o mar derramava.

 

Gritei ao vento que parasse

Mas ele continuou a enforcar-me

Com as suas mãos de água

Até que me entreguei ao nada.

 

COM AS FRONTEIRAS ÀS COSTAS

Uma pátria de cartão. 

Umas fronteiras de ferro.

Uma cor escura que tinge

o odor a brisa queimada.

Uns olhos de gelo fundido,

um solo regado com secura, 

o ventre vazio e a esperança

como uma vela eterna

que não acaba, que não se apaga,

cruza um mar de areia

para se encontrar

de novo com a miséria,

com a pátria desejada,

com a detestada fronteira.

Sonhos de um flamenco africano

com o sinal na testa

de proibida a passagem

para uma nova vida,

para uma dignidade ignorada.

 

LATIFA MESKINI

Nasceu em Fez em 1970. Começou a publicar os seus poemas em jornais. Em 2004 foi-lhe atribuído, pelo seu primeiro livro, A viagem esquecida, de 2003, o Prémio da Casa da Poesia de Marrocos, e, em 2009, o Prix du Maroc du Livre, pelo seu livro A garganta cega, publicado nesse mesmo ano. Publicou ainda, em 2007, Esboços das telas da paixão.

 

COMPANHEIRISMO

São cegas as suas laringes 

nunca chorou uma pomba ou cantou

estava a seduzir o gemido das entranhas.

Tudo quanto viu nunca pôde instigá-la com o gemido,

o nascer ou o pôr-do-sol

seria o mesmo para ela.

O meu gemido é visionário

só se contenta com a saída do sol.

O gemido dispersou o véu do silêncio

debaixo da asa da mosca encontrarias a voz,

e debaixo da asa do corvo descobririas o gemido.

O gemido clamou:

Não me ocultes como o corvo debaixo da tua asa

solitário explodiu o meu gemido, extraviou-se, perdeu a voz.

A eminência é uma emanação da profundidade

sobre ela se derrama a voz e assim conseguiu gritar.

De mim, e não para mim escapou o gemido

Que nunca me atingiu, mas com a minha alma pôde alcançar

os seus confins.

O meu gemido

não me reconheceu quando saiu de mim.

O meu gemido

não me reconheceu quando saiu de mim!

O meu gemido,

Oh, traído pelo eco e pelo vazio!

Nunca deixou de voar o pássaro do gemido no teu céu.

O seu céu abraça o vazio.

RESIDÊNCIA

O gemido é um canto que se cobre com o transe.

Se o gemido fosse uma casa alojar-me-ia nela,

pintaria o seu interior e o seu exterior

com as cores do seu transe.

Penetrei inteira

naquele gemido,

saiu de mim inteira,

calou-se para sempre.

O sangue geme na artéria

revela a sua expressão quando atinge o coração

calou-se quando chega ao cérebro.

O gemido da memória é uma revelação sem palavras

quando escutas a sua voz

amarra as tuas orelhas, ignora as suas anotações.

Nenhuma travessia conseguiu limitar o gemido

que se perdeu solitário,

ressoou pelo eco, sucedeu-se pelo silêncio.

Delimita o limite entre o gemido e o silêncio

Para que não percas a voz!

O gemido desafia a expressão.

 

NISRIN IBN LARBI

Nisrin Ibn Larbi nasceu em Tetouan em 1981. Poeta e professora de língua espanhola e literatura na Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade Abdelmalek Essaadi de Tetouan. É doutorada pela Universidade de Granada com uma tese sobre La Dualidad Cervantina. Historia, literatura y moriscos en el Siglo de Oro. Membro de vários comités, tanto em Marrocos como em Espanha, tem proferido várias conferências. Ao poema que aqui se publica, foi atribuído, em 2013, o XII Premio Rafael Alberti de Poesía, promovido pela Consejería de Educación Embajada de España en Rabat. Os seus poemas têm aparecido nas revistas Aljamía, da Consejería de Educación en Marrocos, e na revista Dos Orillas, de Algeciras. Publicou o poemário A Fuga na antologia poética Estrecheños, em 2015, e figura na antologia Encuentro Rencontre, publicada em 2017.

 

UM VENTO DE AMOR E MARÉS

Há sapos na rua das trevas,

o ruído é estridente e constrangedor.

Há sapos com beijos agora no esquecimento,

as palavras leva-as o silêncio.

O vento faz-se eco de novos ares,

já sem sapos. Já sem beijos. Já sem palavras.

 

Que o matagal me não impeça de ver as árvores em tuas veias.

Que o matagal me não extermine os latidos do ar cálido

Que o matagal seja rumor, seja pó, seja nada.  

 

Rei sol, ilumina meus pensamentos,

agrada aos meus prazeres em tua erupção,

afasta o frio abrasador em teu esquecimento.

Rei sol, não escureças o meu destino.

Pega nas minhas ideias e afasta os fantasmas vazios.

 

Dor de folhas secas, pressentimento em meu olvidado músculo,

pensamento: razão obscura

dor: alívio passageiro

amor: palavra antiga.

Dor de folhas secas é o que sinto pelo esquecimento. 

 

A verdade dos céus esconde o segredo da tua boca.

A verdade dos mares cala a tempestade do teu silêncio.

A verdade dos amantes silencia o desejo carnal de Vénus.

A verdade dos olhares cegos esconde o tesouro que tanto calas. 

 

Companheiro de viagem, proprietário do caminho do viver.

Companheiro da memória, sonho de papoilas e girassóis. 

Companheiro de viagem. Sempre tu, sempre eu.

Sempre nós. Companheiro de viagem.

 

E tu dizes-me um «quero-te».

Para além do âmago do cristal.

Para além do bem e das tormentas.

Para além do fio infinito da tua voz.

E eu digo-te um instante eterno.

Para cá das minhas veias.

Para cá da minha razão.

E para cá do tu e do eu.

 

Dança em mim a água e sente os meus beijos na tua pele.

Recorda as minhas carícias. Não as esqueças.

Protege as minhas carícias na tua pele.

Dança em mim e sente os meus suspiros em tua boca.  

Lembra os meus lábios. Não os esqueças.

Beija-os até me deixares sem alento.

Dança em mim e deixa-me morrer em teus braços.

 

O beijo no pescoço,

o suave toque dos lábios no frágil pescoço,

fez de mim um cisne com penas de cristal:

Fénix renascida do Amor.

Enredo de conto de fadas.

Tule vaporoso e de sopros azuis.

Enredo de sonho dourado.

Brilho de luz água-marinha e leito apaixonado.

 

Para além do âmago do cristal.

Para além do eco débil das veias.

Para além do oceano das pupilas.

Para além do olhar: Um amor para além de ti:

Um silêncio quebrado.

 

Para além de ti. A vida e a morte.

Gotas de água gelada percorrem as minhas veias,

são a cristalização das memórias,

dormem na litania dos meus sonhos,

são a bruma branca,

são a respiração na imensidão do meu frio.

A vida e a morte. São tu e eu, talvez.

 

Um amor arrogante e poderoso. Sem a despedida.

Um amor de vento e de marés. Sem o alento.

Um amor com margens. Sem escrituras.

Um amor de preâmbulos vazios. E finais sem saber o que dizer.

 

Em mim te descubro. Vivo-te, sinto-te.

Mesmo que exista um mar mais ou menos estreito.

Ainda que passem os anos. Nem tu perdes a beleza,

Nem eu a esperança de te recuperar.

 

Tu, minha cidade, íntima e maravilhosa.

Contigo volto a nascer, ao abrigo de muralhas e de nevões.

Tu, minha cidade, fria e distante.

Contigo volto a nascer, ao som do Amor e da Sabedoria.

Tu, minha cidade, Tu, minha dor e meu pranto,

Tu, agora distante. Tu, ainda ontem tão próxima.

 

Já vivemos todos os sonhos,

«Se uma vida, como tudo, é uma questão de histórias,

Aproximar-me das tuas ruas foi criar um destino».

Sente a minha falta.

Manda-me luz e amor cada vez que pensares em mim,

cada vez que anoitece no teu íntimo.

Sente a minha falta, ou não.

E fiquemo-nos por aí. Não será para sempre. Nada é para sempre.

 

O último vagão de sombras

sulca imparável o meu mar ferruginoso.

Leva as minhas ânsias e as minhas nostalgias.

Leva o tu e o eu e a minha cidade incessantemente.

O último vagão vazio de ausências

detém-se na minha história solitária.

Leva os meus olhares para outro sítio.

Leva o meu último adeus e fico sem nada.

 

Com a palavra me rebelo.

Sonho a manhã com as veias.

E, no entanto, caminho longa e demoradamente.

Sempre em tapete vermelho.

E, no entanto, estremece o meu destino.

Com recortes da minha palavra.

Sempre em tapete vermelho.

 

Cravo-me no mês dos assombros.

Cavalo branco e bosque verde.

Fixo-me nos olhos do meu destino.

Pluma branca e terra molhada.

Fixo-me nos escritos.

Página em branco e ponto e final.

 

IMANE EL KHATTABI 

Nasceu em Tetouan em 1974. Doutorada em Língua e Literatura Árabe, é funcionária do Ministério da Cultura e Comunicação de Marrocos. É membro da União de Escritores de Marrocos e da Casa da Poesia de Marrocos. Os seus poemas têm sido publicados em jornais e revistas, tendo dado à estampa em 2001, O mar no princípio da maré, e, em 2014, Operadora do corpo, traduzida para espanhol em 2016, e publicada no Chile. Os seus poemas encontram-se traduzidos para espanhol, francês, inglês e curdo.

 

DESCULPA

Como um príncipe, a primavera avançou para ela 

inclinando-se com a educação dos nobres:

Concede-me esta moeda, minha senhora?

Ela desculpou-se com amargura:

O padrão monetário da minha alegria morreu

e no corpo que levo na bolsa

murcharam as rosas.

por Zetho Cunha Gonçalves
Mukanda | 8 Novembro 2023 | Aicha Bassry, Laila Belghali, Malika el Assimi, Marrocos, mulheres, poesia