«Quem nunca foi à bruxa, que dance na torre do sino!»

Esta frase, aqui cooptada para título, ouvi-a eu há muitos anos numa pequena aldeia da Serra da Estrela, na Beira Alta, a uma septuagenária, Filomena Figueiredo de seu nome, e ilustra na perfeição, pela sua potenciação metafórica de adágio da sabedoria popular, não só as temáticas abordadas neste livro, como ainda a sua implícita ambiência, as suas cambiantes narrativas, os seus enredos e motivos.

Em rigor, tem a idade da consciência humana da existência ― e da sua proverbial fragilidade e finitude ― essa busca imemorial e incessante do ser humano pelos rituais do oráculo e seu prestimoso auxílio, quer para o chamado bem, quer para o seu contrário. Bastará atentarmos na poesia e nos contos, nos provérbios e adágios, nas rezas e benzeduras, nos rifões e adivinhas, nos esconjuros e pragas rogadas da riquíssima e sapientíssima tradição oral (comum a todos os povos da Terra, cada qual, como é óbvio, com as suas peculiaridades naturais), para nos darmos conta desse lado misterioso e onírico que tanto inquieta e fascina: o desconhecido de nós mesmos.

Se é verdade que as novas tecnologias e os novos modos de comunicação vieram alterar, se não mesmo perverter toda a vida em comunidade, tomando esses novos meios virtuais o lugar das bruxas e dos feiticeiros de antanho, com seus “modernos oficiantes” influenciando quem a eles se submete, tornando essa gente inequivocamente embruxada e enfeitiçada, num imenso bando de pequenos escravos aleivosamente espinoteantes e ferozmente intolerantes, absolutamente convictos da sua (in)questionável certeza opinativa, por outro lado, não deixa de não ser uma imensa alegria ver a quantidade de crianças mascaradas de bruxas e feiticeiros no Carnaval, agitando nos ares as suas pequeninas magias, ao fazerem dançar, ora fingidamente ameaçadoras, ora quase hipnóticas de ternura, as suas irrequietas varinhas de condão. 

Bruxas, Feitiços, Defuntos, Aparições…, de Maria Manuela Couto Viana (Viana do Castelo, 3 de Março de 1919-Lisboa, 4 de Janeiro de 1981), é um livro raro no panorama histórico da literatura portuguesa, uma obra prodigiosamente construída, numa escrita requintadamente equilibrada entre a fascinante sugestividade imagética e a inquiridora descritividade contida, onde a ironia e o humor são preciosos condimentos narrativos que nos permitem um deliciado prazer de leitura. Atrevo mesmo dizer: um belíssimo romance, em que não falta a densidade psicológica das personagens, numa polifonia de vozes e saberes, e um virtuoso emaranhado mágico de ambiências. Retrato fiel, acrescente-se, de um Portugal pouco menos que medievo. 

Em «O homem da fralda de fora», espécie de preâmbulo à obra, invoca a autora a sua infância e esse mundo fabuloso que a sustenta e alimenta, mágico e onírico, rememorando «as andanças do homem em mãos de bruxas», homem esse, que foi o pai do seu interlocutor Maurício (a quem reiteradamente pede que lhe conte a mesma história), e que se revela um exímio contador de histórias encantadas, com suas bruxas atrevidas e seus indomáveis bestiários extravagantes, que deliciavam, não raro assustadoramente, a poderosa imaginação criadora da criança. É a esse fundo da memória que Maria Manuela Couto Viana vai buscar o fio para a trama narrativa que conduzirá o dizer maravilhoso desta sua prosa.

Publicados primeiramente no Jornal de Notícias do Porto, entre 24 de Janeiro e 4 de Agosto de 1957, sob a capa do género crónica, destes textos e da sua recolha final em volume (publicado originalmente em 1973, e só agora reeditado), bem se pode dizer terem sido, não apenas crónicas, mas capítulos de um romance dado a público em folhetins, à semelhança do que tantos escritores portugueses fizeram no século XIX, entre os quais dois dos maiores de sempre, Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós. E aqui reside um dos mais instigantes modos de abordar a leitura deste livro, cuja personagem principal é a narradora, desmultiplicando-se como que heteronimicamente nas múltiplas e tão diversas criaturas que povoam numa prodigiosa polifonia este Bruxas, Feitiços, Defuntos, Aparições…, onde a autora (melhor dito: a personagem narradora) adverte sugestivamente, espicaçando a imaginação do leitor: «Sei o que não digo, do que não disse nas crónicas». Antes, logo nas primeiras páginas, como se fosse um esconjuro, adverte-nos de que «não se deve levar o medo ao último extremo.» 

É um livro vivo e sábio, construído de atenta e obstinada observação inquiridora, porém participante. Falando desse amálgama por vezes contraditório de sensações, emoções, acanhamentos, inquietações, surpresas, hesitações, receios, encantamentos, desconcertos, sublinha: 

 

Estas crónicas referentes a pessoas, lugares, situações, têm, pelo menos, o mérito de terem sido vividas. E é certo que, por vezes, perante a beleza das marcações das personagens, perante a fascinação das palavras musicais do ritual, os gestos, as expressões, a magia dos locais, eu sentia-me no limite da adesão maravilhada e tensa, como quando escutava Maurício, esquecendo, por instantes, o guizalhar truanesco que subia das cinzas mornas. Dessa fascinação não dei eu conta nas minhas crónicas. (…) Lembro-me de que fui feliz quando escrevi estas crónicas de feitiçaria.

 

Enga-se, quando diz que não deu conta dessa fascinação na sua escrita, porque ela lá está. E também essa tremenda felicidade imanente no acto da escrita, consegue Maria Manuela Couto Viana fazê-la transbordar numa dádiva prodigiosa ao leitor, guiando-o (nessa espécie de heteronímia polifónica que é cada uma das personagens convocadas a estas páginas), «através da magia, de tudo quanto resta das tenebrosas práticas da Idade Média, neste século XX.» 

Mas o que é que leva, perguntar-se-á, um ser humano a demandar os bons ofícios de bruxas e feiticeiros? Mera superstição, apenas? «O terror do que ignora, do que vem não sabe donde e desencadeia forças impossíveis de definir»? Talvez um pouco de tudo isto acrescido de uma insegurança ilocalizável em si mesmo, uma fragilidade, alguma falta de autoestima, um demorado patinar no lamaçal da própria vida, a crença de que alguém lhe «botou mau-olhado», ou outra qualquer forma de invídia e praga rogada.

A inveja (não por acaso é esta a palavra com que Luís de Camões termina a sua epopeia Os Lusíadas, como que a resumir num único vocábulo uma das características do português); os amores (com amarrações, vinganças e traições); a cobiça da riqueza e a escavação dos «tesouros da moirama»; a leitura do futuro (que sempre se deseja promissor e benfazejo, seja ele lido pelas cartas do tarot, pelas «bolhazinhas turbilhonantes» produzidas pelo deitar do açúcar na bebida, formando «os mágicos símbolos», ou pelas borras de café no fundo da xícara, seja pela numerologia ou pelas linhas da palma das mãos, seja pela astrologia (que em Portugal teve ilustres cultores como Fernando Pessoa e o poeta e filósofo de Orpheu Raul Leal (Henoch)); o exorcismo dos chamados possessos; a morte e as almas penadas que atormentam os vivos, eis os motivos que enformam as narrativas deste livro, que vai muito além de ser um mero mapa ou catálogo de doenças e de mezinhas para a sua cura, sejam as maleitas físicas, sejam morais.

Amuletos, rezas e benzeduras, esconjuros escudados no mágico e fabuloso poder da palavra (liturgias pagãs, naturalmente), livram os consulentes do terrível mal das «invejidades», e protegem os seus portadores de males futuros. Isto se pode constatar nos ofícios de «certa tecedeira de Subportela». 

Outra «antiquíssima e obscura forma de feitiçaria é a licantropia», lembra-nos a autora, acrescentando que «um mistério profundo rodeou sempre o acto mágico». E aqui, é bem o domínio do maravilhoso e do fantástico que se impõe, levando, pela licantropia, o ser humano (a bruxa, o feiticeiro, ou alguém possesso) a transformar-se em lobo ou a tomar a forma de outro “diabólico” animal.

Tem a ciência do «repique» («eu te pico e repico, e torno a repicar, para que não possas comer, nem dormir, nem descansar, enquanto não me venhas falar») o poder de fazer voltar a amada ou o amado, ou de infligir-lhe a vingança pelo seu não regresso, secando a criatura em questão. Literalmente. Neste caso, aqui narrado e concreto, com fino humor comenta a narradora: «a pobre, influenciada pelo ambiente, nem quer que lhe falem na secagem do namorado.»

A numerologia é outra das ciências de premonição e de futuro, de revelação da personalidade, cujos oficiantes, segundo a autora, «são categóricos. Para eles os números são verdadeiros seres inteligentes, activos, cujas vibrações agem sobre o mundo invisível.»

A personagem que se segue neste romance é uma «galinheira», cuja «especialidade são as galinhas pretas.» Na descrição da autora, esta criatura «tem a solenidade dum áugure com um revestimento animal, perturbador e agressivo.»

Não obstante a similitude invocada por Maria Manuela Couto Viana à aruspiciação (leitura das vísceras dos animais sacrificados, uma prática muito corrente na Grécia antiga e ainda hoje em muitos países africanos), o ritual da «galinheira» é em tudo diferente. Há efectivamente a morte de uma animal, no caso, uma galinha preta. Mas esta é enterrada inteira no quintal, à volta da qual se semeiam cinco grãos de milho branco, que se regam diariamente, ao nascer do sol, dizendo-se uma reza profana específica: «Juro sobre estes cinco troncos que serei fiel a Fulano para que ele não me deixe de amar nem se tome de outros amores pela virtude da galinha preta.» Há depois ironia no diálogo que se segue, entre a narradora e a «galinheira», cuja reacção é no mínimo desconcertante, sobretudo no que toca aos poderes advindos daquela galinha preta: «Ora, assim como assim, ela já há muito que deu a alma ao diabo, para ter poderes. Sabe como é?»

Mas logo depois, um novo ritual é proposto, onde, de um ovo embrulhado em algodão em rama tingido de sangue do dedo mindinho, e colocado debaixo de uma galinha preta (esta, viva, obviamente), «nasce um diabinho que se guarda numa caixa de prata e todos os sábados se mete dentro da caixa o dedo mindinho para ele mamar.» E é justamente enquanto esse diabinho mama no dedo mindinho (com que grau de gulodice ou javardice, ficamos sem saber), que se fazem os pedidos, muito embora (e são palavras da «galinheira»), «Deus Nosso Senhor nem sempre pode atender-nos». Isto, para além daquelas «coisas que não nos atrevemos a pedir-lhe», porque «“é pecado” pedir-lhe.» Com ironia e bom humor, a narradora garante que não saiu dali espavorida, não: «apenas levo, decerto por sugestão, um apetitoso cheiro, nas narinas, a arroz de frango (…) talvez um tanto misturado com uns vaporzinhos de enxofre…»

No capítulo «Faltar-me-á o sentido jornalístico?», um leitor queixa-se de serem excessivamente literários os textos da autora, acusando-a de lhe faltar «ainda o sentido jornalístico.» Tema que Maria Manuela Couto Viana aborda com alegre ironia e basto humor, e que é prova provada da alta e magnífica prosa, límpida, fluida, instigante e por vezes desconcertante, sobre que este Bruxas, Feitiços, Defuntos, Aparições… plenamente, e por direito próprio, assenta. 

«Ora, meu caro», dirige-se-lhe a narradora-protagonista, «não escrevo para o povo pela simples razão de que o povo sabe muitíssimo de feitiçaria, muitíssimo mais do que eu. É precisamente com ele que vou aprendendo.» 

O subcapítulo «O poder de Maria Pandilha e o estranho fluido», destinado à chamada amarração amorosa, é de uma exigência ritualista absolutamente notável pelo seu grau de dificuldade e absurdo: para além da competente reza, a consulente terá que dobrar uma camisa do seu objecto de desejo, trazê-la debaixo do sovaco durante sete dias e sete noites (o que significa dormir com aquele chumaço debaixo do braço), de modo a que o fluido se entranhe convenientemente, fazendo o amado a conquistar e a não deixar fugir, vesti-la após esse tempo contado e medido, sem poder ser lavada nem engomada, posto o calor do ferro-de-engomar destruir  ou diluir todo o poder mágico de Maria Pandilha.

O «desencantamento de tesouros», cuja crença popular manda dizer que «os moiros, ao partir, deixaram as suas riquezas sem conta sepultadas e com fórmula de encantamento», remete para outro prodigioso exorcismo, este colectivo, e «feito no silêncio da noite», junto ao adro da igreja, com o povo empunhando «velas a alumiar, que por via destas luzes é que se esconjuram os demónios.» E começa tudo a escavar a terra, enquanto um recitador procede à vocalização das palavras rituais: «Abra-se a terra já, já, já!…» E logo a seguir: «Não tenhais medo se no acto do desencantamento houver tremores de terra, aparecerem fantasmas medonhos, ouvirem grandes trovões e rangimento de rochedos. Esconjurai.»

No caso concreto desta empreitada de escavação ao tesouro, «nada aconteceu, do que não pode concluir-se que a reza não resulte noutras circunstâncias», constata a narradora. Na verdade, apareceram algumas «ossadas das antigas sepulturas», mas a razão de o tesouro não ter sido detectado, segundo outra personagem da história, foi de que as miseráveis velas de estearina que levaram serem incompatíveis com tamanha incumbência, pois as velas, segundo douto parecer desta personagem, «deviam ser de cera e ter sete palmos de alto».

«Meio Porto contado pelos dedos» é um delicioso jogo de humor e numerologia, onde a narradora brinca literalmente com essa ciência divinatória (a sua «adição teosófica», o «número chamado «dominante», o número activo, o da hereditariedade», entre outros) e a curiosidade dos seus amigos por tão inusitado modo de melhor se conhecerem, a si mesmos, e aos sempre imponderáveis futuros de cada qual.

A arte de «deitar a peneira», segundo a senhora T., pessoa com dotes de mediunidade (que é simultaneamente ela mesma e «o dr. X., médico brasileiro, senhor duma vasta clientela»), necessita de duas pessoas para se proceder ao seu habilitado ritual, rezando-se em coro sobre a peneira, pronunciando-se um «credo em cruz», falando-se depois para o seu interior, instigando-a a responder às questões colocadas: «se for sim, vira-te para aqui, senão, vira-te para acolá.» 

E foi neste trabalho de aferição do mal e procura da sua cura, pelo «botar da peneira», que a narradora ficou a saber da boca desse dr. X (pelo qual ganhou particular estima, já que era «dotado dum certo sentido de humor e parecia considerar-nos um bando de idiotas, o que não deixava de ser verdadeiro»), que «alguém varrera, dum monte de folhas secas, certa poeira maléfica que eu ingerira, por acaso, e que enchia todo o meu ser com graves riscos para a minha integridade mental.» 

«O poder das cores foi, desde tempos imemoriais, decisivo para resistir ao mal e expulsar os demónios.» E é justamente sobre a “cor justa” para cada um, consoante o seu signo astrológico, a importância das cores na medicina e na prática da magia, desde as mais antigas civilizações humanas, que Maria Manuela Couto Viana disserta no capítulo «As cores».

A arte da vidência é outra das mais cotadas ciências esotéricas, tendo no capítulo «O anel perdido» a vidente Z., «enorme, opulenta, desmedida», como protagonista. Trata-se de «uma vidente de alta categoria, destinada exclusivamente às visões e aflições da nossa melhor sociedade.» E é infalível na resolução do problema, fazendo oscilar o seu cintilante e poderoso pêndulo, acertando em cheio no alvo: «Aqui! O anel está aqui!» Que bela prosa cinematográfica, esta, senhoras e senhores, onde não vai faltar um «espírito encostado» e perturbador!

O capítulo «As quadras populares e a feitiçaria» traz a força da palavra, o seu poder, e a sua função primordial nesses lugares onde «se «botam falas», se rezam exorcismos, se desvendam terríveis segredos, se «amarram» bonecos sob a relva, se chama o ingrato, o transviado, o volúvel.» E voltam a surgir as invocações para a feitura de «amarrações» e seus levantamentos.

No capítulo seguinte, é um clube de futebol, cuja equipa se encontra «empecida», que vai à bruxa em demanda de «desempecimento». Poderoso «empecimento» este, que duma só vez atinge, não um, mas onze indivíduos. Aventa-se o modo como um dos jogadores, o que em mais frágil situação se encontra, terá sido «atado»: «Possivelmente, cosendo-lhe o retrato a retrós verde para os olhos, vermelho para a boca (não, não foram as cores do clube, mas as cores apropriadas a este ritual). E, enquanto o retrato permanecer cosido, o pobre continuará a acumular desgraças.»

E lá se procede ao ritual, com várias figuras e coro, terminando o coro por decretar: «Unamo-nos em cadeia, para que a força do nosso pensamento, em colaboração com os espíritos-guias, possa «desempecer» o «empecido», «desatar» o «atado»…», a que se junta uma reza:

Coca, coquinha,

Coquinha, minha menina.

Assim como encantaste os peixes

Do mar a cantar…

Assim protejas nosso jogador.

E não nos deixes «empecer»

Nem «atar».

Com ironia, a narradora sugere que os jogadores, ao entrarem em campo, cada um leve consigo «uma saquinha com «cocas» (a célebre semente de cipreste tão usada na feitiçaria) e cabeças de víboras, como levam os jogadores da roleta».

«A romaria serrana» é uma viagem pelas serranias minhotas, com destaque para a romaria de Santa Justa, lá para as bandas das Serra de Arga, a cuja capelinha «as mulheres estéreis levam a oferenda de pombas brancas e se entregam, nessa noite, a secretas práticas de feitiçaria», e «onde não faltam os curandeiros, os enxota-diabos, os «talhadores»», revelando, nas palavras de Maria Manuela Couto Viana, «o mistério da alma primitiva daqueles serranos…»

Crença dessas almas é «a pieira», a cujo longo e poderoso exorcismo e seu directo resultado se assiste “em directo”, tal a precisão da escrita. 

Mas o que é, afinal, «a pieira»? Assim a descreve a narradora: «Mulher que tenha sete filhas, se a mais nova não toma por madrinha a mais velha da ninhada, corre o fado de «pieira». Anda de noite, pela serra, mailos lobos, correndo estranho e complicado fado errante.» 

«A casa assombrada» (com a sua «mulher de barbas», noites continuamente estrepitosas às três da manhã em ponto, gatos siameses em desvario de destruição de cortinas e móveis e outros inexplicáveis acidentes domésticos) é a casa que a narradora alugou certa vez para passar as férias, não dando ouvidos à criada que lhe chamou a atenção para o estranhamento que aquela casa lhe provocava, e que era afinal um caso do conhecimento geral da aldeia, que, por sua vez, pouco ou nada se manifestava sobre a questão. Até que alguém se decide a revelar o mistério e até a propor-se resolvê-lo: 

“Bom, a gente não deve de falar, não gostam que se diga isso… mas aquele terreno é mau terreno. Que terreno de partilhas zangadas nunca é bom terreno. Diz-se… enfim, a antiga dona, a falecida (…) era mulher de pêlo na venta… geniosa… Não deixou aquilo à família, sabe? (…) Por mim mandava fazer umas rezinhas… Mas é lá com eles…”

«Como pude esquecer, neste giro pela feitiçaria, a antiga cartomancia?», pergunta-se a narradora, como quem interpela o leitor. E lá assistimos, com a informação do ritual por que passou previamente o baralho de cartas (pelas «sete pias de água benta, cada uma em sua igreja e pelas ondas do mar, sete vezes sem se molhar»), ser cortado (o dito baralho, bem entendido), pela narradora, com a mão esquerda, enquanto se recita a prece a São Cipriano a quem se diz «o que quero saber, pelo poder do que tens poder». E logo surgem as imagens simbólicas das cartas, numa sucessão de sinais e premonições, a que uns «misteriosos gemidos», em dada altura perfeitamente audíveis, perturbam a amiga da narradora, isto é, a consulente. Porém, a cartomante garante que «as cartas são boas, são limpinhas», nada de mal lhe há-de acontecer: «o que é preciso é ter paciência. No princípio é sempre assim…»

Em «Licantropia outra vez», Maria Manuela Couto Viana começa por referir um livro saído em França, Memórias duma Médium, que a fascina, «muitíssimo bem escrito, de resto, mas com uma espantosa serenidade e inabalável crença nas mais estranhas afirmações, dando-nos a opressiva sensação dum mundo desconhecido e horrível que nos rodeia e ameaça.» Trata esse livro do «Monstro de Gèvaudan», criatura que «longos anos apaixonou a França inteira e que não era senão o nosso lobisomem.»

E esse é o pretexto para, na sua técnica narrativa, chamar um leitor à colação, leitor esse que lhe pergunta a razão por que não falou ainda do lobisomem, «cujo rasto, diz ele, se perdeu com o tempo», facto que a narradora contradiz.

Personagem fabulosa do imaginário colectivo, o lobisomem povoa com todas as suas façanhas toda a literatura da tradição oral portuguesa, e não só. Sobretudo, porque esses são os seus domínios, nas aldeias do interior e nas encruzilhadas dos mais remotos caminhos. Na verdade, jamais nas ruas de uma grande cidade se dará conta de tão mitológica figura. 

E é sobre isso que a narrativa discorre, confessando a narradora não lhe ter sido possível aprofundar a sua origem, não obstante traçar-lhe o perfil e todas as contingências que lhe são inerentes, acautelando que «nisto de feitiçaria, a mulher tem o papel mais importante.» E porque «a Lua parece andar envolvida nestas coisas» (os lobisomens apenas aparecem em noites de Lua cheia, como muito bem se sabe), «e a Lua é um astro feminino e um astro que preside, muito particularmente, à vida da mulher», descreve depois todo o processo por que tem que passar essa transformação de determinado homem em lobo (o lobisomem), muito embora se possa metamorfosear noutro qualquer bicho, cuja «forma a tomar depende do último animal que se tenha espojado na encruzilhada aonde o homem, marcado pelo signo fatal, vai, por sua vez, espojar-se.» Porém, é pelas roupas que, postas a bom recato antes da transmutação, poderá «voltar à forma humana, (…) conservando o fado ou quebrando o encanto.» Mas há ainda uma outra forma de esconjuro: gente («boas almas» lhes chama a narradora) que serra o pinheiro onde o lobisomem havia posto a recato as suas roupas, as queima até que não restem mais que cinzas, espalhando-as em todas as direcções, esconjurando: «Vai-te, vai-te, vai-te. Vai-te mal e não voltes a corpo mortal.» 

Porém, um lobisomem em carne e osso a narradora conheceu: «Se» Zé Pereira, lobisomem. «Afável, jovial, palrador… mas, apesar disso, todos lhe tinham medo. Todos… menos a mulher, (…) «Qual lobisomem, qual nada! Eu dou-lhe o lobisomem!» E parece que lhe dava», acrescenta Maria Manuela Couto Viana. 

Porém, vingança do marido (o que a levava a correr que nem louca em certas noites, aos gritos pelos caminhos), depois de morto, aparecia-lhe «na forma duma mula fantástica, enorme, que lhe [dava] um valente par de coices.»

Com a prossecução da publicação dos textos, oferecem-se à autora-narradora as mais variadas pessoas, inclusive «os mais íntimos», contando-lhe cada qual «o segredo de cada um», num tom de confidência destinada à publicidade jornalística. Isto espanta e amedronta Maria Manuela, levando-a a este desabafo: «este amor oculto duma outra coisa, indefinível, sobrenatural, esta vivência das mais fantásticas crenças nos mais negros rituais da magia é, na verdade, fascinante e pode levar-nos a filosofar. Mas estejam os meus leitores descansados que não vou filosofar.» E, cumprindo a sua palavra, não filosofou.

Porém, logo o primeiro caso que se nos depara, «é toda a história dum «crime perfeito»», cuja narração fica para já adiada, para tomar conta da história «o livro proibido», tão necessário aos seus «estudos de feitiçaria», mas… inencontrável. De resto, na primeira livraria a que a autora-narradora se dirige para perguntar por tal obra, a reacção do livreiro é a de ter «um sobressalto, como se lhe pedisse um revólver com o competente silenciador.» Razão e justificação para tal atitude por parte do livreiro: o livro «dá má sorte, entende?»

Passemos então ao «crime perfeito», contado pela «minha amiga L.». Na base de tudo, uns trágicos amores camilianos, e uma tia do noivo feiticeira encartada, que «deitava cartas a toda a família e descobria sempre as mortes antes de acontecerem». Tendo lido nas cartas deitadas que aquele amor-paixão era inquebrantável e indestrutível, não foi de modas e «resolveu que morrêssemos ambos.» Resolução tomada, não foi com a «boca do sapo cosida» nem com o «bonequinho de cera atravessado de agulhas de aço» que a tia feiticeira decidiu “despachar” os apaixonados: foi com «terra do cemitério lançada no mar; terra que vai buscar à campa cuja lousa tenha gravado o mesmo nome de baptismo que a pessoa a quem se deseja a morte.» Acertando no nome de S., o seu sobrinho, falhou a feiticeira o nome de L., cujo primeiro nome é Maria, pormenor nada despiciendo nestas artes da magia negra, que lhe poupou a vida, não obstante ter estado à morte com paludismo, doença muito pouco vulgar nas terras do Norte de Portugal. 

Com a proverbial ironia que a caracteriza, a autora-narradora, depois da insistência de L. para pôr tudo no jornal, decide fazê-lo, rematando:

“Nada inventei eu, nem as iniciais dos nomes, sequer. E a minha imaginação lava, simbolicamente, as mãos deste crime perfeito. Também não me pesa a consciência por divulgar a melhor maneira de empurrar o próximo para a quarta-dimensão, porque falta o principal ― a fórmula, a reza, o ritual com que se deita ao mar aquela terra maldita. Portanto…”

O «homem», que desde o princípio deste livro estava destinado a cicerone da autora-narradora nas suas deambulações pelos reinos da magia e da feitiçaria, e que a deixara no segundo capítulo «à porta de um sórdido barracão, com um gesto de adeus um tanto perverso», volta aqui à ribalta, pois também ele «guardou uma história para me contar»: a do inquilino teimoso, arrendatário de uma casa de pasto num imóvel de pessoa abastada, industrial influente na região.

Vendo o poderoso senhorio que nenhum advogado era capaz de despejar o dito e renitente inquilino (legalmente, está bom de ver), decide contratar os serviços e poderes deste «homem», agora de bom regresso à trama narrativa. 

É então que o «homem» vai desfiando todos os cerimoniais necessários, desde o pedido aos mortos nos cemitérios de um pouco de terra das suas campas, cujos retratos dos falecidos têm de dar o seu consentimento, até às rezas e muitos outros ingredientes e preceitos imprescindíveis ao bom sucesso do ofício e do «empecimento».

Acontece, porém, que neste caso, aquando da invocação da Mula-Preta («um dos nomes dados em feitiçaria ao próprio demo») na encruzilhada escolhida, cumpriu-se o velho provérbio: virou-se o feitiço contra o feiticeiro. Ou seja, a Mula-Preta apareceu ao industrial na forma de «um cão enorme que arremeteu às pernas do senhor importante», que dali se retirou, «possesso de terror, coberto de dentadas e com a ideia fixa de que morreria «raivoso» enquanto o diabo, vingativamente, esfregava um olho.» Ao que tudo indica, o feiticeiro do inquilino tinha poderes infinitamente superiores aos do feiticeiro do industrial, «simples amador em coisas de «empecimento»», como o descreve Maria Manuela. 

«Três costumes minhotos» inscrevem-se na arte e na ciência da magia branca, que é, segundo uma «célebre «curandeira» da minha terra ― tudo quanto se faz em nome dos santinhos e pela bendita graça do Senhor.»

«Passar o menino ao vime» (que bela e poética expressão!) pretende curar o menino de três meses, criança «quebrada», que «não levanta a cabeça» e «tomba flácido, mole, dobrando-se no regaço da mãe aflita», por mor de «má olhadura», de «invejidade» ou do «tardo», essa «coisa» horrenda, «que ninguém define, mas que, pelo menos, se sabe que voa, ameaçadora, maléfica, em certas ocasiões…»

Estando o menino quebrado, «é preciso passá-lo ao vime, mas só em noite de São João pela meia-noite.» Três Joões e três Marias virgens, a fiar, são necessárias ao ritual, perguntando os Joões: «Que fias, Maria?», e respondendo as Marias virgens, movendo lestamente o fuso: «Linho asseado para atar o menino quebrado.»

Aberto o vime, por ele passam o menino. Posteriormente, atam esse vime com o linho que as Marias virgens vão fiando: «se o vime pegar, o menino fica curado. Se não pegar…»

Segue-se «o defumadouro», esperança, digo eu, agora, para a cura do menino, cujo vime não pegou, posto que «talvez não esteja quebrado, mas «dê nele o demónio mentirosa aparência dum mal quando é outro que lhe consome as entranhas»».

Defuma-se então o menino com alecrim, mirra e incenso previamente colocados numa caçarola de barro, ao mesmo tempo que se vai proferindo um longo esconjuro. 

«Bom sinal se a cinza é clara, mau se sai negra.» Cinza essa que é deitada ao mar, de modo a não levar o mal a mais ninguém.

«Os baptizados da meia-noite» destinam-se a mulheres cujos partos são difíceis, especialmente às mães que hajam dado à luz nados-mortos. Para evitar estas tragédias, as mulheres ribeirinhas dirigem-se durante as suas gravidezes às águas do rio Lima, sobretudo antes da meia-noite de uma das noites do último mês, aspergindo os ventres com as suas águas. 

«Da grande virtude de algumas ervas» é um belo e fascinante receituário, quer para a sua utilização mais corrente e caseira de mezinhas e infusões, quer para o seu uso no complexo domínio da alta magia.

«A bruxa do Carregadouro», «terror daquela vilazinha raiana», leva-nos de novo aos reinos do maravilhoso e do fantástico, ao interminável «conto de fadas» de uma infância perene, gloriosa.  

Sendo «a bruxa mais convencional que eu já vi», detém ela, então altamente rentável naquela região fronteiriça, o poder «de tornar alguém invisível». E é através da «mágica das favas», que esta bruxa consuma «o dom da invisibilidade», fornecendo à sua consulente todos os preceitos necessários à obtenção de tal efeito mágico. Neste caso, é absolutamente imprescindível o sacrifício de um gato preto, a ser enterrado «no vosso quintal», depois de se lhe plantar «uma fava em cada olho, outra em cada orelha.»

A confirmação da «invisibilidade», dá-a a autora-narradora logo após a consulta, junto ao rio de fronteira com Espanha, onde só ela vê um homem (contrabandista?) atravessar o rio, «de calças arregaçadas e um enorme caixote à cabeça.» Nem a sua amiga I., que ficara a banhos de sol, nem o irrequieto rapaz que atirava imprecativas pedras ao rio, umas atrás das outras, enxergaram tal criatura no vasto horizonte das águas. Com toda a certeza, aquele homem tomou o dom da «invisibilidade», inclusive dos guardas-de-fronteira espanhóis, seguindo rigorosamente os preceitos da «mágica das favas» da bruxa do Carregadouro.

«Cascas de cortiça em mar de sangue» narra um dos rituais exorcistas das mulheres de pescadores, no qual se sacrifica uma galinha preta, que é posta num alguidar de barro, e em cujo sangue, para não coalhar, se deita vinagre. 

Cada mulher tem um frágil barquinho de cortiça na mão, cada barco com o nome do filho, do marido, do pai de cada uma, que estão no mar. Depois, dizendo palavras rituais, e invocando os nomes dos seus ente-queridos, deitam os barquinhos dentro do alguidar, à roda do qual se acocoram, «com a saia pela cabeça, à luz da candeia bruxuleante».

De uma malga de defumação sobe uma nuvem, «que se passa em cruz sobre o alguidar», procedendo-se à invocação de São Cipriano e de todos os barcos em alto mar pelo seu nome, «por todos aqueles homens, pertença daquelas mulheres…» 

 «Serra Brava» narra a penosa e aventurosa viagem a trote dolente de mulas por córregos e fráguas, assustadora travessia de rio sobre uma oscilante ponte pênsil, em direcção ao Soajo, num «simples e honesto regresso à terra», àquela terra onde se comia «bacalhau com coelho» e as mulheres se sentavam em derredor «da enorme pedra do lar onde ardia o carvalho bento que afastava a trovoada.»

É a convocação do «espírito dos vivos» pelas «mulheres sem homens», todos emigrados na América do Norte. E os que ficam, os «tapuias», «são olhados com desprezo», não obstante o seu «secreto anseio da partida». São mulheres «soturnas, enroladas na estamenha da solidão e da revolta», reunidas num estranho conciliábulo presidido pela Ti-Ana, que a cada uma das outras pergunta: «O teu homem? Escreveu-te?» E há nela uma como que possessão, um transe, que lhe altera o rosto, a voz, os gestos. Fala com o ausente, dá-lhe novas da terra, quer saber como lhe corre a vida, «quando voltas?»

E, «a cada nova personagem os gestos [de Ti-Ana] se faziam diferentes»: «lamentos, queixas de mulher abandonada e o coro solene das carpideiras negras.»

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Prefácio ao livro «Bruxas, Feitiços, Defuntos, Aparições…», de Maria Manuela Couto Viana, a sair pela Tigre de Papel/Umcoletivo. 

 

por Zetho Cunha Gonçalves
Vou lá visitar | 18 Março 2025 | bruxas, Literatura