A arte da felicidade é uma soma de cores noctívagas - sobre Roberto Chichorro

seresteiro, pintura de Roberto Chichorroseresteiro, pintura de Roberto Chichorroserenata com viola encarnada, pintura de Roberto Chichorroserenata com viola encarnada, pintura de Roberto Chichorrofim de carnaval para jantar de peixe frito, pintura de Roberto Chichorrofim de carnaval para jantar de peixe frito, pintura de Roberto Chichorropasseio no jardim com pássaropasseio no jardim com pássaro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Para a Sheila e para a Jessica

Esta crónica começa com um parêntese: quando Roberto Chichorro voltar a Luanda (e oxalá regresse breve, com nova exposição dos seus trabalhos), seja ele levado a um bom muzongué − seu prato angolense predilecto −, com muito jindungo caombo e farinha-musseque de lei; dendém batido no pilão de um qualquer “quintal de porcelana” luandense; garoupa fresca do Mussulo (com a cabeça, para apurar o gosto), e limão do mato para espremer e fechar este parêntese.

Razões muito alheias à sua vontade, e que nada tinham que ver com a sua vida e o seu trabalho, impediram Roberto Chichorro de pintar (que é o ofício natural deste moçambicano, nascido em 1941 em Lourenço Marques, e uma das suas razões maiores de vida), durante mais de um ano. Ou seja, uma eternidade perfeita, entre o Nada (imposto) e o Infinito − esse mesmo Infinito, que só “mesmo” para “nada” serve. Nem para mangonha, que é acto criador por excelência, no depois

Quando finalmente pôde voltar a colocar uma tela virgem sobre o cavalete, e regressar às tintas e aos pincéis para um destino de pintura, numa espécie de recomeço dela, não mais parou Roberto Chichorro de se vingar desse tempo que lhe foi vilmente sonegado – a si, e à sua obra –, vingando-se através daquele poder criador que é o seu, pintando, e cujo resultado primevo é esta sereníssima e bela exposição composta por 19 trabalhos em sopro de júbilo encantado, que esteve em Lisboa até dia 29 de Outubro, na Galeria do MAC – Movimento Arte Contemporânea, à Av. Pedro Álvares Cabral, n.º 58/60.

noite com violino e pássaro verde, pintura de Roberto Chichorronoite com violino e pássaro verde, pintura de Roberto Chichorroencontro musical, pintura de Roberto Chichorroencontro musical, pintura de Roberto ChichorroE desde logo − a começar pelo próprio título, Arlequinando Fados da Vida −, há da parte de Roberto Chichorro um propósito explícito em subverter e desmentir (ou, pelo menos, em contrariar) aquele fatalismo tão espontaneamente catastrófico e aquela surda tristeza abencerrante, de que os «fados da vida» grosso modo se nutrem.

E ao moldar impositivo de um destino assim, comezinho e banal sobre a lâmina solidária do sempre tão apetecido e desejado drama, de sofrido e desencantado apelo do ser humano sobre o tempo da Terra − ao moldar impositivo e mesquinho de um destino assim, de subserviência resignada e olhos baixos do seu peso fatal, contrapõe Roberto Chichorro a esvoaçante leveza do mundo e o enamoramento da simplicidade.

Serenamente, e a cores muito vivas. Essas mesmas cores – sensualíssimas e tácteis, a envolver-nos −, que refulgem soberanas para um destino de arrebatamento e paixão, a contrapelo do espanto abúlico da comédia humana e seu insuspeitado absurdo, congénito e mercantil.

«Namoro»; «Serenata de Arlequim»; «Noite com violino e pássaro verde»; «Serenata com viola encarnada»; «Sonhos em azul com música»; «Columbina de dourar sonhos de Pierrot»; «Encontro musical»; «Cavalgando quimeras coloridas»; «Janela com gato e mulher de vermelho»; «Sonho de Columbina»; «Passeio nocturno com gaiola»; «Seresteiro»; «Fecundação enluarada com néctar para beija-flor»; «Espera em noite dourada»; «Passeio nocturno em jardim com pássaro vermelho»; «Fim de Carnaval para jantar de peixe frito»; «Bicicletando em noites com pássaro»; «A paixão de Columbina»; «Arlequinando fados da vida» − eis os títulos, sempre a paredes meias com a poesia, dos quadros que enformam a presente exposição, cuja pintura, populosa de pássaros e de luas namoradeiras, outra coisa não é senão a arte da felicidade – a arte da felicidade como um hino à mais nobre forma de estar vivo: em estado iniciático de limpidez e canto de beija-flor.

A mão do pintor abre na tela o receptáculo dinâmico de onde as estórias brotam, ancestrais e recontadas sempre pela vez primeira, em cor de pássaro, de mulher e violão.

namoro, pintura de Roberto Chichorronamoro, pintura de Roberto Chichorropasseio nocturno, pintura de Roberto Chichorropasseio nocturno, pintura de Roberto Chichorro

Destes quadros soltam-se notas de jazz e marrabenta; ouvem-se timbilas de Zavala por detrás de um certo cantar de “blues”; Jamelão, o velho e amado sambista brasileiro (ou será Martinho da Vila, ali naquela esquina?), mascara-se de Arlequim para nocturnas serenatas, jorrando pássaros − pássaros-garimpeiros de luas antigas e dos segredos do seu ouro esvoaçado e límpido − sobre a «Espera em noite dourada» ou sobre a «Janela com gato e mulher de vermelho», nesse «Fim de Carnaval para jantar de peixe frito». E eis o tom de voz e o dom desta pintura − que é pura música fluindo das suas cores e formas −, onde a felicidade assenta, faz morada, e pelo olhar se nos vem sentar à mesa dos sentidos.

A alegria na pintura de Roberto Chichorro − esta alegria vital, serena, incorrupta, inconspurcável, que nos reconcilia com o mundo e com a vida, vem bem desde as raízes da infância da Terra. E sobe − não parará nunca de subir −, num despudor diáfano de revoada festa de pássaros e de lânguidos violões pasmados do seu próprio ofício encantatório, num resplendor de namorados e de amantes – bicicletando, contra todos os ventos e os dias mal-afamados ou mal frequentados, o seu milagre de existir(mos).

Porque “A Alegria”, como disse um dia o poeta, e também pintor, futurista e tudo, José de Almada Negreiros (nascido em 1893 na Roça da Saudade, em São Tomé, e morto em Lisboa em 1970), “A Alegria é a coisa mais séria da Vida!”

Nada sei de técnicas de pintura ou da gramática e sintaxe das suas linguagens. Mas sei, onde − e quando − a Poesia fulgura e se toma das suas sílabas para inaugurar o Poema. E esse, está inteiro e magnífico em cada trabalho plástico de Roberto Chichorro, moçambicanamente universal.

serenata de arlequim, pintura de Roberto Chichorroserenata de arlequim, pintura de Roberto Chichorro

columbina de dourar sonhos de pierrot, pintura de Roberto Chichorrocolumbina de dourar sonhos de pierrot, pintura de Roberto Chichorro

bicletando de noite com pássaro, pintura de Roberto Chichorrobicletando de noite com pássaro, pintura de Roberto Chichorro

por Zetho Cunha Gonçalves
Cara a cara | 20 Novembro 2010 | pássaro, pintura moçambicana, roberto chichorro