Viriato da Cruz, poeta telúrico

A função primordial de um Poeta é rasurar dicionários pela raiz e violentar libertariamente as regras impositivas das gramáticas, para que o Poema fulgure e se torne atemporal na sua inequívoca nomeação inaugural das coisas do mundo. Sendo a criação poética um acto visceral de questionamento da linguagem transcendendo-a pela própria linguagem em seu caudal multímodo – num trabalho minucioso de artesão implacável, através dos temas e motivos cujos ritmo e plasticidade musical se impõem ao Poema na sua irradiante carga metafórica –, o Poeta outra coisa não faz que não seja a recuperação absoluta e original do dizer primevo que na sua Obra afirma em estado de voz própria, pessoalíssima – porém, voz de dádiva à Humanidade sem nada pedir em troca, e de comunhão com cada Ser nos seus anseios, nas suas angústias, nas suas paixões, nos seus alumbramentos.

Viriato da Cruz, de quem passam cinquenta anos do seu desaparecimento físico (Porto Amboim, Angola, 1928 – Pequim, 1973), é autor de obra brevíssima, porém mais que suficiente para fundar toda uma Literatura – singelamente titulada Poemas, e publicada primeiramente em 1961, pela Casa dos Estudantes do Império em Lisboa, cuja belíssima última reedição, de 2018, é da NósSomos (ambas as edições com capas de José Luandino Vieira), sendo esta acrescida de três poemas em relação à edição original («Dois Poemas à Terra», «Na Encruzilhada» e «Sá da Bandeira») –, é, acima de tudo, um Poeta da grande epopeia da Terra e do Ser Humano, com seu natural epicentro em Angola, essa «nossa Mãe Terra…», de que 

São exemplo de solidariedade

Os grãos de areia que da base ascendem

Para o espanto olímpico das alturas dos cumes…/

E o abraço universal dos rios, enlaçando

vilas, aldeias e cidades

campos e países,

dá-me a lição da fraternidade…

Os versos que acabo de citar, do poema titulado «Dois Poemas à Terra», enformam em si todo um projecto de criação poética, num processo, simultaneamente ético e estético, de religação do Ser Humano com a Terra e os elementos, e na religação dos múltiplos ritmos da Terra na cadência do correr de seus rios, com seus rápidos, suas cataratas e cachoeiras, ou pela modulação das brisas e dos ventos, da sucessão das noites e dos dias, incrustando-se na própria respiração humana como a mais alta forma de metáfora e de consciencialização do lugar do humano (sempre tão conspurcado) em cada ser e em cada Vida sobre o esfusiante encantamento do Mundo.

Poderosíssimo Poeta, em quem a força telúrica almejada na materialização oficinal da sua poesia é, por um lado, um dos característicos de Viriato da Cruz, por outro lado, a musicalidade plástica e o fôlego dos seus versos, variáveis consoante os temas e os motivos, denotam uma perfeita «concepção rítmica do cosmos» (Octavio Paz), numa transfiguração metafórica do real pela própria linguagem que a si mesma se transcende, carregando de Vida a Poesia, e vice-versa. Ou seja, não é já o «real quotidiano» quem faz o Poema, mas sim o Poema quem cria o «real quotidiano», na elaboração de um mundo outro através da revelação deste mundo, numa apreensão do originário tempo do Ser através de um olhar catapultado do coração da Terra, com as suas pessoalíssimas e inaugurais visões e imagens do Mundo. E, nesse sentido, constrói o Poeta o ritmo, esse sentido de permanente criação de alguma coisa súbita aparecida, a qual é justamente a base eficaz da transfiguração da linguagem, com, entre outros recursos estilísticos, a inclusão, na materialização do poema, do «quimbundo mestiço / das conversas», de que falava Agostinho Neto, onde a apreensão do real é feita pela máxima potenciação metafórica, e «o poema, sem deixar de ser palavra e história, transcende a história (…), transformando a vida em poesia» (Octavio Paz).

A leitura que faço dos seus poemas é uma leitura onde por detrás de cada poema, quando não mesmo de cada estrofe ou verso, ressoa a cadência encantatória de um rio, de uma catarata ou de uma cachoeira, fluindo no sentido de uma felicidade sempre iminente, se não mesmo plenamente conquistada, de que o poema «Namoro», a que voltarei mais à frente, é o mais acabado exemplo. 

Na verdade, para quem conhece alguns dos muitos rios angolanos, como é o meu caso, não deixa de ler «Makèzú», em seus ritmos de linguagens sobrepostos, como o ressoar das águas do rio Keve, nas cachoeiras do Binga, entre o Porto Amboim Natal de Viriato e a cidade da Gabela, na província do Kwanza Sul, com seus rápidos súbitos, seu bater fundo nas pedras e seu espraiar de mais lento correr cantante regando as lavras e dando brisa e nevoeiro aos cafezais. O poema «Sá da Bandeira», tributo à cidade hoje chamada Lubango, entrecruza nos seus ritmos, não só a orografia do terreno com a sua Fenda da Tundavala e a Serra da Leba desabando do alto dos seus 2 620 m no deserto do Namibe, já abaixo das águas do mar, como as muitas águas de muitos rios, desde a nascente da Senhora do Monte no cume planáltico da cidade, correndo para o centro dela, aos rios que passam mais ao largo, como os rápidos da Hunguéria ou o grande rio Cunene, que fazendo fronteira com a Namíbia, separando o deserto do Namibe do deserto do Calaári, antes de desaguar no Oceano Atlântico, forma as belíssimas quedas do Ruacaná.

«Rimance da Menina da Roça» e «Serão de Menino», rios poderosos do coração da infância, são elaborados em reescrita ferozmente autoral, a partir das literaturas da tradição oral, das oraturas encantatórias e sábias das canções de ninar, das adivinhas e dos provérbios, das canções de trabalho, com suas linguagens trabalhadas num rigor implacável de metáforas vivas, pulsantes, e de uma tão plástica musicalidade que se chega a ouvir vendo, tal a precisão sugestiva das imagens que o Poeta almeja criar.

Em «Sô Santo» escutam-se as calemas da Baía e da Ilha de Luanda, lá ao fundo, o seu ondular lento cortado pelos remos dos pescadores em seus dongos ximbicando no mar a metáfora da Terra. E, por detrás, lá mais ao longe, é o rio Kwanza, talvez já a chegar à Barra e ao seu destino de rio entrando no mar, quem dá o tom e o ritmo aos monólogos mais intensos, trágicos e especulativos, da viagem e narrativa que com Sô Santo nós leitores encetamos também, «descendo a calçada / A mesma calçada que outrora subia».

O humanismo universalista de Viriato da Cruz, tal como de Agostinho Neto e de António Jacinto, entre muitos outros que se lhe viriam a seguir, num tempo em que Angola se começava a afirmar por uma literatura interventiva e de combate ao colonialismo português através do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola – o MNIA, criado em 1948, com o lema «Vamos descobrir Angola» –, veiculado nas revistas Mensagem e Cultura, levou Viriato (e também Neto o fez em poemas como «Aspiração» e «Bamako», por exemplo) a convocar libertariamente rios, terras e povos distantes, para a comum e fraterna celebração em que se anunciava universalmente «O DIA DA HUMANIDADE!…», como se escuta nesse atropelar confluente de rios e suas gentes e vozes cantantes, no poderosíssimo poema titulado «Mamã Negra (Canto de Esperança)», cuja amplidão rítmica dos versos catapulta em si toda a memória da tenebrosa travessia negreira entre continentes, onde só a desumanidade foi lei.

Valerá a pena, num breve parêntesis, lembrar que, nesse mesmo ano de 1948, Agostinho Neto (ao tempo, estudante na Faculdade de Medicina de Lisboa), numa intervenção que fez na Casa da África Portuguesa, acentuou a importância vital do MNIA para Angola, tomando-o, inclusivamente, como exemplo e incentivo a seguir na diáspora, o que se viria a concretizar anos mais tarde na Casa dos Estudantes do Império: 

“Recebi de Luanda uma carta do amigo Viriato da Cruz, talvez vocês tenham ouvido falar nele. É um dos nossos poetas. Pois bem, comunica-me que organizaram lá um centro cultural. (…) Escreve ele que vão procurar fazer um estudo da história africana, da arte popular, vão escrever contos e poemas, imprimi-los e depois vender os livros, e, com o dinheiro que conseguirem, pretendem ajudar os escritores e poetas talentosos necessitados. Parece que poderíamos fazer o mesmo aqui, em Lisboa. Temos, com efeito, muitas pessoas que sabem compor versos e escrever contos não só sobre a vida estudantil, mas também sobre as nossas terras, sobre Angola, Moçambique, as Ilhas de Cabo Verde e São Tomé [e Príncipe].” 

Primeiramente publicado em Lisboa em 1952, no Jornal Magazine da Mulher, dirigido pela escritora Lília da Fonseca (Benguela, Angola, 1906 − Lisboa, 1991), e posteriormente, no Brasil, no n.º 19 da Revista Sul, de Florianópolis, em 1953, e não cooptado por razões desconhecidas para a primeira edição de Poemas, de Viriato da Cruz, em 1961, «Na Encruzilhada» – poema datado de «Nova Lisboa, Maio de 1952», é um poema inequivocamente escrito no Jardim da Cidade Alta do Huambo, que ao tempo se chamava Jardim Oliveira Salazar. Trata-se de um dos maiores poemas de Viriato, um poema onde a consciência da respiração da língua como acto primevo da criação poética, os seus longos fôlegos e suas suspensões, as suas cambiantes de ritmo e de voz, qual nascente central e irradiante dos rios angolanos ali no vizinho Bié, o tornam um dos mais belos e instigantes poemas da poesia angolana.

Facto não despiciendo, revelando profundo conhecimento dos movimentos cívicos negros no mundo, é a dedicatória: «Para o Prof. Dubois e para Agostinho Neto». O Prof. W.E.B. Dubois, autor de The Souls of Black Folk, foi, com os poetas Langston Hugues, Alain Leroy Locke e Claude Mckay um dos fundadores e principais mentores, em 1919, do movimento negro norte-americano Harlem Renaissance, um dos movimentos que mais influência exerceu em África. Tributo a um mestre, portanto. E a Agostinho Neto, um tributo de pátria a haver, a conquistar: «o modo humano da existência profunda!»

«Namoro» é a obra-prima absoluta de Viriato da Cruz e uma das mais altas criações poéticas, não só angolanas, como de toda a língua portuguesa. Fulgor de rio grande e majestoso, epopeia rara e feliz da humana aventura amorosa, é todo o canto e toda a dança das imponentes quedas de Kalandula, no rio Lukala, o que sedimenta todo o feitiço encantatório deste poema único de um Poeta irrepetível: Viriato da Cruz e o seu, nosso «Namoro».

Três Poemas de Viriato da Cruz

NA ENCRUZILHADA

                                                Para o Prof. Dubois e para Agostinho Neto

Para além da alegria multímoda deste parque acolhedor

− tarde soalheira! Florões amarelos vermelhos o cicio do vento nos ramos 

                                                balançando balançando dos altos eucaliptos!

Para além do olhar amplo mar manso das crianças

um olhar contendo a confiança nos homens e a certeza de vida no futuro

Para além deste par enamorado um ao outro harpando a doce música do amor 

Para além desta meiga presença de minha mãe na carta que ontem me escreveu

Para além de quanto me dá esta emoção positiva, eu vejo

o solo de onde a beleza provém, eu vejo

a mão no arado a mão no tear a mão na enxada, eu vejo

o tubo de ensaio suspenso da mão paredes subindo debaixo da mão

a agulha na mão debaixo da mão tachos no fogo que a mão domou, eu vejo

cabeças na escora da mão pensando aumentar da mão o poder, eu vejo

o livro na mão o Homem a Mão, eu vejo

o trabalho crescendo na Paz criadora oh a Paz –

− o modo humano da existência fecunda! Glória

à Paz!

E a vós também ó paladinos da Vida –

humanizais os corações de pedra do mundo cobrindo-os

com o manto indomável da vossa acção de musgo

Nos olhos incegáveis do vosso querer de musgo: um parque assim em cada bairro

Cada criança goze a infância como se comesse uma maçã de aurora e mel

Nunca mais noivas beijem lábios que soltaram o ódio injusto e sorveram sangue alheio

E tomaremos nosso alimento com as nossas mãos de semente – cheias de inocência 

                                                                                                        e poder construtivo oh

Glória! a vós campeões da Vida – Glória!

                                                                              Nova Lisboa, Maio de 1952

SÔ SANTO

Lá vai o sô Santo…

Bengala na mão

Grande corrente de ouro, que sai da lapela

Ao bolso… que não tem um tostão.

 

Quando o sô Santo passa

Gente e mais gente vem à janela:

− “Bom dia, padrinho…”

− “Olá…”

− “Beçá cumpadre…”

− “Como está?…”

− “Bom-om di-ia sô Saaanto!…”

− “Olá, Povo!…”

 

Mas porque é saudado em coro?

Porque tem muitos afilhados?

Porque tem corrente de ouro

A enfeitar sua pobreza?…

Não me responde, avó Naxa?

 

− “Sô Santo teve riqueza…

Dono de musseques e mais musseques…

Padrinho de moleques e mais moleques…

Macho de amantes e mais amantes,

Beça-nganas bonitas

Que cantam pelas rebitas:

 

“Muari-ngana Santo

dim-dom

ual’o banda ó calaçala

dim-dom

chaluto mu muzumbo

dim-dom…”

 

Sô Santo…

 

Banquetes p’ra gentes desconhecidas

Noivado da filha durando semanas

Kikoto e batuque pró povo cá fora

Champanha, ’ngaieta tocando lá dentro…

Garganta cansando:

 

“Coma e arrebenta

e o que sobrar vai no mar…”

 

“Hum-hum

Mas deixa…

Quando sô Santo morrer,

Vamos chamar um kimbanda

Para Ngombo nos dizer

Se a sua grande desgraça

Foi desamparo de Sandu

Ou se é já própria da Raça…”

 

Lá vai…

descendo a calçada

A mesma calçada que outrora subia

Cigarro apagado

Bengala na mão…

 

Se ele é o símbolo da Raça

ou vingança de Sandu… 

 

NAMORO

Mandei-lhe uma carta em papel perfumado

e com letra bonita eu disse ela tinha

um sorrir luminoso tão quente e gaiato

como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas

espalhando diamantes na fímbria do mar

e dando calor ao sumo das mangas.

Sua pele macia – era sumaúma…

Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas

sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo

tão rijo e tão doce – como o maboque…

Seus seios, laranjas – laranjas do Loge

seus dentes… – marfim…

Mandei-lhe essa carta

e ela disse que não.

 

Mandei-lhe um cartão

que o amigo Maninho tipografou:

«Por ti sofre o meu coração»

Num canto – SIM, noutro canto – NÃO

E ela o canto do NÃO dobrou.

 

Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete 

pedindo rogando de joelhos no chão

pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigénia,

me desse a ventura do seu namoro…

E ela disse que não.

 

Levei à avó Chica, quimbanda de fama

A areia da marca que o seu pé deixou

para que fizesse um feitiço forte e seguro

que nela nascesse um amor como o meu…

E o feitiço falhou.

 

Esperei-a de tarde, à porta da fábrica,

ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,

paguei-lhe doces na calçada da Missão,

ficámos num banco do largo da Estátua,

afaguei-lhe as mãos…

falei-lhe de amor… e ela disse que não.

 

Andei barbado, sujo e descalço,

como um mona-ngamba.

Procuraram por mim

«– Não viu… (ai, não viu…?) não viu Benjamim?»

E perdido me deram no morro da Samba.

 

Para me distrair

levaram-me ao baile do sô Januário

mas ela lá estava num canto a rir

contando o meu caso às moças mais lindas do Bairro Operário

 

Tocaram uma rumba – dancei com ela

e num passo maluco voámos na sala

qual uma estrela riscando o céu!

E a malta gritou: «Aí, Benjamim!»

Olhei-a nos olhos – sorriu para mim

pedi-lhe um beijo – e ela disse que sim.

por Zetho Cunha Gonçalves
A ler | 16 Outubro 2023 | poesia angolana, Viriato da Cruz