Ensaio de Jazz: Uma composição democrática
O Atlântico é uma gigantesca encruzilhada. – RUFINO & SIMAS
00 – Afinando instrumentos
O presente ensaio foi, a princípio, concebido como uma fala; uma intervenção sobre o pensamento – mais uma dessas a que somos nós: teóricos, críticos, intelectuais e todos aqueles preocupados com o fluir de ideias, dados a derramar no vórtice do discurso social – que buscava, em um congresso que tinha como fulcro o debate do poder ético das imagens, dispor uma tentativa de composição – intelectual e musical – entre o que tenho pensado pelo nome de Tradição Estética Afro-Atlântica e as discussões que informam o paradigma político da ordem capitalista contemporâneo. No título, uma dica de minhas intenções: como todo ensaio de jazz, a ideia era, na conferência, assim como continua sendo no presente ensaio o princípio de uma composição caótica. Concebi a ideia de escrever dissonâncias a partir de um debate importante para o pensamento estético da experiência Preta nas Américas de maneira tal que, mesmo em desvio, nunca deixasse de ter em mente o apontamento para alguma forma de harmonia.
É justamente com isto em mente que disponho agora este ensaio, entendendo que se de alguma maneira minhas improvisadas reflexões sobre o fluxo criativo que anima a tradição estética afro-atlântica de fato pode servir para acender algum desejo de composição relacional de harmonias várias na ordem do discurso social, então é isto já razão suficiente para que compartilhe o que me ocorre – ainda que em sua incipiência. Tendo, com isto, afinado os instrumentos que hão de compor nossa Jam Sassion por vir, penso propício que adentremos as linhas que serviram de liras para nossa delirante notação musical.
01 – Jam Session
Para que possamos, portanto, nos relacionar com o que concebo como o centro argumentativo da presente reflexão, penso existir considerável valor em trazer para o primeiro plano de conversa uma discussão teórica de grande interesse dentro dos estudos da Pretitude1 americanos que teve seu ponto de inflexão no ano de 2003, com a primeira publicação da obra do professor Fred Moten – recentemente traduzida para o português no Brasil e publicada pela editora n-1 – Na Quebra: a estética da tradição radical preta, em que o autor se propõe a analisar as raízes estéticas do que entende como a “tradição radical preta”. Conforme a agumentação de Moten, podemos entender que a performance da Pretitude se vale de um espaço – espaço este que o autor localiza inicialmente na sonoridade poética do fazer musical – de improvização em que o sujeito cortado que caracterizaria o Preto americano faz valer uma interpretação diferida de sua realidade material. Com o intuito de ilustrar o ponto de ignição de suas reflexões, Moten inicia seu argumento ancorado-se em uma crítica metodológica que tem como alvo um gesto teórico tomado pela professora Sayidia Hartman em meio ao avanço das proposições que avançava em seu livro, publicado originalmente em 1997, Scenes of Subjection [Cenas de Sujeição]. É importante notar que a crítica de Moten não é, fundamentalmente, ao conteúdo do que Hartaman desenvolve em sua obra; o que o autor faz, em vez disso, é denotar uma discordância com a anunciada abordagem que precede tal conteúdo – de modo que, ao fim e ao cabo, apesar de iniciar seu texto ancorado em um posicionamento crítico para com Hartaman, as teses de ambos os autores não são mutuamente excludentes.
De fato, o autor de Na Quebra, toma como ponto de partida de seu livro o excerto de uma obra, que – assim como Hartman – identifica como texto de importância fundamental para a discussão de uma possível “origem” da ideia subjetiva do “Preto Americano”. O excerto em questão é retirado d’A narrativa da vida de Frederick Douglass, um escravo, escrito por Frederick Douglass e conta o causo da violência contra Tia Hester que Douglass relata testemunhar. Em Cenas de Sujeição, Hartman localiza nesse excerto da obra de Douglass o que ela viria a identificar como um tipo de “cena original” da experiência preta no continente americano, marcada que esta é pelo corte sádico imposto ao sujeito que, como o título da obra de Hatman sugere, é, então, subjugado ao ser concebido/violentamente posto a ser no mundo como não mais um sujeito. Moten não discorda de Hartman quanto ao posto que a autora dá para a cena de Douglass na palco histórico da constituição subjetiva da experiência preta no continente americano, mas critica o gesto anunciado por Hartman de não reproduzir a cena de Douglass. Moten argumenta que a recusa de Hartman se constitui, por si só, em uma reprodução – no âmbito imaginário da fantasia que, invariavelmente, incide sobre todos que leem um texto – da cena que ela se recusa a reproduzir e que sua negação contém, portanto, um risco de que se perca a possibilidade de aproveitar criticamente, dentro de tão importante cena para a constituição subjetiva do sujeito preto americano, as pedras de toque que podem vir a compor um entendimento contemporâneo dessa experiência – algo que parece ecoar como preocupação tanto em Hartman quanto em Moten e que é também combustível do exercício ensaístico que aqui empreendo.
E é justamente aqui que penso poder iniciar minha contribuição para este debate, pois apesar de, até certo ponto, discordar do posicionamento de ambos os autores – também de maneira mais gestual do que conceitual –, penso que seja importante primeiro, posicionar o presente ensaio quanto à interrogação que surge da discordância gestual de Moten com Hartman. No que concerne ao ponto da reprodução cênica da narrativa de Douglass, compreendo que o posicionamento tomado por Moten de reproduzir a cena de Douglass em conjunto imediato com a elaboração crítica do que nela está implicado parece servir como a melhor maneira de se posicionar quanto à violência nela narrada, na medida em que é justamente a contribuição imediata da elaboração crítica que possibilita um balizar compreensivo dos efeitos de tal violência, fazendo assim com que o espaço de apropriação fantásica e mórbida da violência histórica emblematizada no processo colonialista de racialização e escravização seja, até quanto for possível, contida.
“Não raro fui despertado ao nascer do sol pelos gritos mais lancinantes de uma tia minha, que ele amarrava a uma viga, chicoteando-lhe as costas nuas até cobri-la, literalmente, de sangue. Nem as palavras, nem as lágrimas, nem as súplicas de sua vítima ensanguentada eram capazes de dissuadir seu coração daquele propósito sanguinário. Quanto mais alto ela gritava, mais forte ele chicoteava, e de onde o sangue saia mais ligeiro, ali ele chicoteava por mais tempo. Açoitava-a para fazê-la gritar, depois para emudecê-la, e só quando era vencido pela fadiga parava de aplicar o chicote, já repleto de sangue coagulado. Recordo-me de quando testemunhei essa exibição terrível pela primeira vez. Eu era bem menino, mas lembro bem. Nunca me esquecerei, enquanto tiver memória. Foi o primeiro de uma longa série de crimes dos quais eu estava condenado a ser testemunha e participante. Aquilo me impactou com uma força tremenda. Era a porta sangrenta, a entrada do inferno da escravidão, que eu me preparava para atravessar. Um espetáculo terrível. Quisera eu poder registrar no papel os sentimentos com os quais testemunhei tudo aquilo.”2
No que tange à cena e sua leitura, Moten não parece discordar de como Hartman percebe a violência ali narrada e mesmo do seu espaço no imagnário histórico que constitui a sociedade colonialista, o gesto de Moten, em vez disso, é o de se debruçar sobre a reprodução da cena de maneira um pouco diferida com em relação à Hartman, conectando-a a uma elaboração seguinte presente logo em poucas páginas na própria Narrativa de Douglass. Vale aqui elucidar que ambos Moten e Hartman chegam a conclusão semelhante quanto à intensidade com que a cena que Frederick narra participa na composição de um certo tipo de sentimento “originário” da experiência da preta americana que, então, é fundamental no entendimento de tal experiência subjetiva como uma experiência cortada entre a dor imposta e o prazer sádico do algoz. A caracterização da subjetividade preta americana como dupla, cortada, dicotômica ou mesmo, como Moten chega a usar de maneira astuta em seu livro, fantasmática, não é uma novidade dentro dos estudos afro-diaspóricos e ela não é, de maneira alguma, algo com que discorde quanto ao posicionamento de Hartman ou Moten. Como já afirmei, de certa maneira imitativa ao gesto crítico de Moten, o que tenho como questão frente às elaborações dos autores em sua discussão está menos nas conclusões que brotam da premissa que assumem, do que está na premissa ela mesma, pois, a meu ver, ao observarem a Narrativa de Douglass como um possível conto de onde compreender certa origem da experiência negra, tanto Hartman quanto Moten, parecem passar por cima de uma outra importante cena previamente disposta na autonarrativa de Frederick Douglass. Tomo como fundamento de minha pretensa contribuição para com a discussão previamente apresentada uma voz comum, voz que sopra alguma vida bibliográfica a todos os pensamentos que aqui conversam – sejam eles os de Sayidia Hartman, os de Fred Moten, quanto, é claro, os meus. Essa voz a que me refiro é a de Paul Gilroy, pensador que publicou, em 1993, o livro O Atlântico Negro.
Nessa inflexiva obra, Gilroy – em tônica similar à que anima esta nossa presente Jam Session – coloca à disposição, simultaneamente, uma proposição e uma forma compositiva que ficam em forma de jogo discursivo à disposição do leitor. Bem dizer, Gilroy reinventa a experiência de leitura do seu livro ao diponibilizá-lo como uma navegação, uma forma de travessia do mesmo Atlântico Negro que serve como tema de sua obra. Essa nevegação marítmo-textual acontece ao mesmo tempo em que, ao percorrer proposta travessia com seu leitor, Gilroy faz a composição de uma noção da subjetividade preta no continente americano como que ancorada nessa mesma travessia e no corte subjetivo – ou, prefiro dizer, afetivo – que ela engendra. Para Gilroy, a invenção do negro – que acontece no caminho entre o continente africano e o americano – deriva a tônica da experiência deste no destino para o qual é, forçadamente, levado. E é justamente nesse procedimento que pode ser inferido da leitura de Gilroy que sinto faltar um pouco as leituras de Hartman e de Moten, na medida em que, faz parecer que ambos esquecem que, antes da cena de sujeição de Tia Hester narrada por Douglass, o mesmo autor narra uma outra importantíssima cena, ainda que um tanto mais en passé, que me parece ser o aceno uma forma de aceno avant la lettre do narrador ao que, depois, Gilroy tão bem vai apresentar em sua caracterização do Atlântico: a cena que está no início da experiência preta no continente americano é o corte produzido pela travessia do Atlântico, cena esta que Douglas mimetiza quando narra a separação forçada que dele fizeram para com a sua mãe biológica da seguinte maneira:
“Minha mãe e eu fomos separados quando eu era ainda um infante — antes de que pudesse conhecê-la como mãe. É um costume comum, pelas áreas de Maryland, de onde fugi, separar as crianças de suas mães desde muito cedo. Frequentemente, antes de a criança completar doze meses, sua mãe é tirada dela e relocada em alguma fazenda a certa distância considerável. A criança é então colocada sob os cuidados de uma mulher idosa, velha demais para o trabalho no campo. Não saberia dizer os motivos para essa separação que não fosse o impedir do desenvolvimento de qualquer afeto da criança pela mãe e então embotar e destruir o afeto da mãe pela criança. Afinal, este é o resultado inevitável”3
É devido a isto que penso que Hartman e Moten deixaram passar a atenção em um ponto importante para a radical discussão que colocam à disposição: pois existe algo de fundamental em entendermos esse corte afetivo – prévio ao corte sexual que Moten vai observar na cena de subjução de Tia Hester – como paradigma para que os outros cortes possam vir a ser impostos. O primeiro corte, aquele que retira do sujeito a sua conexão com a noção de pertencimento e de ser, é o corte da travessia e é somente entendendo essa travessia que então podemos reinventá-la e, com ela, os afetos que nos foram retirados.
02 – Atlântico: Água, Travessia e Encruzilhada
A água é um elemento simbólico de inúmeras desdobradas e desdobráveis significações. Dependendo de qual o discurso em voga, a leitura das propriedades e das imagens imbuídas na água muda de maneira tão fluida quanto a própria. No entanto, a água como elemento de limpeza, aquilo que lava, que, de certa maneira, apaga o rastro, é, de alguma forma, uma leitura generalizada de sua simbologia4. Seja do ponto de vista material – usamos água para limpar coisas – ou do ponto de vista espiritual – usamos água para lavar o espírito –, a razão por trás da significação parece relativamente consistente e é já dessa maneira há séculos: A água há muito é o elemento que lava e leva.
Dessa forma, ter como símbolo inicial de uma constituição subjetiva um corpo gigantesco de água não se faz sem que esta – e suas significações – tome lugar de bastante importância para o que está sendo constituido (afinal de contas, o Atlântico poderia facilmente afundar a América, ou, dito de outra forma: “lavar/levar a América do mapa”).
Essa ideia do “lavar”, da “limpeza”, é uma ideia que, de maneiras várias, foi colocada em prática na violência colonial da escravização. Muito conhecida, por exemplo, é a história da pia das almas no porto de Angola; lugar em que as pessoas eram tornadas escravos, reificadas, convencidas da ausência de sua própria alma, na prévia do trajeto pelo Atlântico que os colocaria em território desconhecido, arrancados de seu pertencimento e de toda possibilidade de afeto reconhecível.
No entanto, a pia menciono não deixa de ser uma redundância, na medida em que a água do oceano que estava por ser atravessado servia de maneira similar como elemento higienista, como espaço ritualístico do corte afetivo, da destituição subjetiva de todos os que passavam por ele acorrentados contra a sua vontade, tendo sua subjetividade, ao longo do empreendimento da travessia, feita objeto. O Atlântico como esse elemento de destituição do sujeito, como esse corte de pertencimento que de certa forma Frederick Douglass narrou na separação forçada que teve de sua mãe5, é um ponto fundamental, pois nesse espaço que existe como elemento de corte, também existe a possibilidade de, entendendo-o bem, elaborar esse corte na contramão do colonialismo.
É nesse sentido que Luiz Rufino e Luiz Antônio Simas escreveram a frase que escolhi como epígrafe do presente ensaio “O Atlântico é uma gigantesca encruzilhada” e continuaram dizendo:
“Por ela atravessaram sabedorias de outras terras que vieram imantadas nos corpos, suportes de memórias e de experiências múltiplas que lançadas na via do não retorno, da desterritorialização e do despedaçamento cognitivo e identitário, reconstruíram-se no próprio curso, no transe, reinventando a si e ao mundo.”6
Esse entendimento do oceano Atlântico como uma encruzilhada posto a disposição por Rufino e Simas bebe nas práticas espirituais afro-atlânticas para compor uma percepção crítica da travessia, que a um ponto foi unicamente corte e destituição, como, agora, também um elemento de conexão, de elaboração, invenção, remanejamento e relação.
A noção das práticas espirituais afro-atlânticas – que não podem, em sua lógica estética, ser divididas da Arte e da Política que está em jogo nos avanços subjetivos do Preto americano – que é sugerida na ideia de Simas e Rufino da encruzilhada – em todos desdobramentos conceituais que tais práticas concedem à esse paradigmático entre-lugar – abre espaço para o entendimento do oceano Atlântico como espaço de atravessamento, lugar onde acontece a travessia entre o plano material e o plano da experiência, alguns diriam do real, histórico-espiritual. Nessa linha, talvez seja a partir desse entendimento que recua para avançar – como em um ritmo marítimo – que possamos entender a proposta, com a qual rumo para a conclusão dessa seção de nosso ensaio, do que Séverine Kodjo-Grandvaux leu como uma filosofia da travessia na obra do filósofo Bidima dentro do livro Filosofias Africanas. Pois, na perspectiva de Bidima, exposta por Kodjo-Grandvaux, o espaço constitutivo do sujeito é um que se utiliza do corte (presente na gigantesca encruzilhada que é o Atlântico) para compor uma tônica de movimento e relação, em uma noção que Séverine introduz dizendo que
“A filosofia da travessia de Bidima é um pensamento do incacabamento, da mediação, da translação, que busca dizer “de que plurais é feita uma história determinada”7. Desse modo, a filosofia africana não é mais compreendida em oposição à filosofia ocidental. Ao contrário, “a nova tendência da filosofia da travessia recoloca os problemas da filosofia africana, devolvendo-os ao nível do especificamente humano. Para essa travessia, as clivagens Europa/África, embora historicamente profundas, não devem impedir a reflexão sobre auilo que, para além das separações, liga os humanos. Sua abordagem é sempre quiasmática. Trata-se de cruzar as experiências”, a fim de não se encerrar nem em um particularismo exclusivo nem em uma universalidade englobante. A travessia é, portanto, essa “falha sempre aberta que recusa o fechamento identitário, neurótico e reivindicatório, como a dissolução em um universalismo coagulante. A travessia é esse conceito que evita a armadilha da questão a respeito da universalidade ou da particularidade da filosofia africana e permite pensá-la diferentemente, como tradição filosófica que valoriza não tanto o dado quanto o movimento, ou seja, não tanto aquilo que é transmitido, o conteúdo da tradição e de todas as tradições, mas a própria transmissão.”8
03 – Hope Is Black Magic: Estética Preta e Reinvenção afetiva
Em Na Quebra, ao pensar a tradição radical preta em relação com o espaço de sua produção estética, Moten, em certo ponto, faz uma menção à ideia de Magia Negra, termo tão distorcido na ordem discursiva racista da estrutura simbólica capitalista, como elemento de elaboração e de composição improvisacional das subjetividades que têm que, nas palavras de Rufino e Simas, “reinventar a si e ao mundo” em um território que nem tentam defender nem, muito menos, querem conquistar. Seguindo mesmo essa linha da estética como reinvenção e encontrando harmonia no que Kodjo-Grandvaux apresentou sobre a filosifa da travessia em Bidima , Moten diz
“Aqui está a universalidade: nessa quebra, nesse corte, nessa ruptura. A canção cortanto a fala. O grito cortando a canção. O furor cortando o grito com silêncio, movimento, gesto. O ocidente é um hospício, um receptáculo consciente e premeditado da magia preta [grifo meu]. Cada desaparecimento é um registro. Isso é ressureição. Insurreição. Espalhe a magia preta, mas espalhar ou dispersar não é admitir a informidade. O som posterior é mais do que uma ponte. Ele rompe a interpretação mesmo quando o trauma que registra desaparece. Amplificação de um semblante arrebatado, retrato acentuado. Não há necessidade de descartar o som que emerge da boca como uma marca de separação. Sempre foi o corpo inteiro que emitiu o som: instrumento e dedos reclinados.”9
Não é à toa, obviamente, que muito do core teórico disposto por Bidima ressoa no que Moten propôs em lugar de um pensamento que tem como pedra de toque a aceitação da necessidade de uma elaboração do que corta a origem do sujeito preto americano, no que teria dado uma (Moten vai lembrar, com ênfase, falsa) origem ao sujeito preto americano. Afinal de contas, Kodjo-Grandvaux traz a filosofia da travessia de Bidima à tona justamente quando está avançando em sua obra o lugar, também cortado, que é produzido pela noção enunciativa de um nome tal como o título de seu próprio livro “Filosofias africanas”, na medida em que tal nome peca propositalmente ao ignorar completamente a travessia necessária para a compreensão das composições do pensamento como “móveis, fugidias, transladadas e inacabadas” e necessita, portanto, de “um furor, cortando o grito com silêncio e gesto”. A travessia como pensada em Bidima vai ecoar a maneira como Moten põe em jogo a ideia da musicalização e do improviso em seu livro, como uma forma de insurreição que se utiliza das categorias fechadas da ordem simbólica do pensamento ocidental de maneira a dobrar as suas bordas e remodelar suas superfícies, insurgindo com revolucionária Magia Preta contra o hospício ocidental que se pretendia receptáculo desta.
No primeiro semestre de 2023, como finalização de uma residência artística em Florença, o multiartista contemporâneo Samuel de Saboia compôs uma exposição das obras produzidas no percurso artístico que empreendeu no período em que esteve na Itália para qual deu o título de Hope is Black Magic [Esperança é Magia Preta], título este que também foi dado à uma das obras expostas. Na composição da disposição estética que acionou com a organização de sua exposição, Saboia, assim como Moten, elabora um desvio improvisacional, uma fuga rítmica, da noção de Magia Preta que corre no senso comum (algo como elemento “diabólico”, “ruim” ou “perverso”) para, em vez disso, dispor a ideia de uma Magia Preta no espaço conceitual da imaginação política, da reinvenção afetiva, da esperança:
A tela de Saboia começa por reproduzir justamente o corte, o véu, o duplo – e a própria duplicidade; todos esses elementos e noções que já W. E. B. DuBois diagnosticava na experiência Preta (Moten vai chamar Performance da pretitude) americana e, mergulhando para além desse corte, invoca um Espelhamento.10 O espelho na tela de Saboia é um espelho que dobra a enunciação que sopra vida nominal ao trabalho pictórico Hope Is Black Magic, ao mesmo tempo em que joga com a contraposição entre o Preto e o Branco como cores que sustentam o fulcro cromático do trabalho. Os rostos – elemento de bastante importância geral na obra visual de Saboia – são pintados em branco e borrados de maneira tal que parecem transbordar obscenamente para o “fundo” preto da tela. Como é costume nos trabalhos do artista, o caos inicial de suas composições começa a assentar na medida em que mergulhamos nos significantes plásticos de seu trabalho e entendemos o que, ali, está em jogo. Em Esperança é Magia Preta, Saboia está jogando com a noção de possibilidade, com o (im)possível, com a invenção e com a imaginação de maneira a compor um questionamento sobre os limites subjetivos nas fixas bordas identitáras da ordem simbólica capitalista. A Esperança é aquilo que ousa. Ousa inventar um futuro em que o passado nunca foi, ousa existir na inflexão da metamorfose do que se espera e, quando nomeada Magia Preta, ousa compor um mundo emancipado das colonizações que estão em voga na estrutura colonial do capitalismo desde o seu violento momento inicial.
A dobra espelhada na tela dispõe aquilo que temos e aquilo que inventamos e, assim, remonta ao método (Est)ético Afro-Atlântico que foi sempre o espaço de manobra da pretitude americana frente à constante tentativa de ressujeição que existe como plano motor do status quo colonialista.
04 – Assimilação Compositiva
A exposição de Saboia que tentei apresentar na tela acima toma, a meu ver, uma posição elaborativa no que tenho nomeado, dentro da concepção de uma Tradição Estética Afro-Atlântica, como assimilação compositiva, um gesto inventivo que identifico como elemento paradigmático desta tradição. Um ditado popular que pode ser rastreado para a algumas concepções de prática espiritual afrodiaspóricas e que, recentemente, foi popularizado em um documentário do artista Emicida – É tudo pra ontem – diz, em uma composição desdobrada, fugidia e transladada do tempo, que “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que só foi lançar hoje” e esse ditado contém, até onde percebo, um ótimo ponto de partida para o entendimento dessaa teoria histórico-(est)ética que nomeei Assimilação Compositiva e como esta pode servir como uma lente de leitura importante para uma elaboração desviada da realidade social que o colonialismo – em sua face capitalista contemporânea – nos entrega.
A imagem de Exu e a sua ideia é inseparável da imagem e ideia da encruzilhada. Exu posiciona-se nesse entre-lugar e é dalí mesmo que o orixá age de maneira a cavalgar por entre mundos, tempos e universos. A encruzilhada é a fenda pela qual Exu pode lançar a sua pedra no fluxo temporal e fazer torcer a história. Quando insisto que Moten e Hartman estão corretos em suas leituras, mas parecem ter perdido um ponto anterior em suas elaborações, tento, também eu, jogar com essa fenda temporal; tento, também eu, compor assimilando os fluxos fragmentados que chegam, em ondas, na tradição estética afro-atlântica para descobrir o detrás daquilo que possibilita uma cena de sujeição que, em seu fim, produz – como lembra muito bem Fred Moten – o paradoxo fundamental de uma mercadoria que fala – e que pode, então, agir para a sua própria reinvenção como sujeito – na figura da pessoa escravizada.
A assimilação compositiva, aqui, é uma forma estética de sobreviver ao elaborar a história que resta perante a violência da sujeição para inventar um futuro em que ela nunca ali esteve. Hope is Black Magic. E, para finalizar, oferecerei dois exemplos desta maneira de compor consigo e com os outros no fluxo da travessia sensível que pensamos como história.
No ano de 1983, em uma pequena exposição que acontecia na ilha de Manhattan com curadoria da fotógrafa Paige Powell, Jean-Michel Basquiat expunha pela primeira vez uma tela que dava o nome duplo – ou quíntuplo – de El Gran Espectaculo (The Nile) or Untitled (The History of Black People). O trabalho é composto por uma divisão tripartite que sugere uma narrativa caótica em que o artista parece abordar as diferentes maneiras de, no fio da história, tecer os textos que escrevem – e, nisto, inventam – o mito americano. Como é costumeiro nas disposições visuais de Basquiat, a tela é composta por uma excessividade de elementos e, destes, um dos pontos que chama a atenção é a inserção de uma aranha que aparece junto de uma das manchas que, em texto, mais diretamente se refere ao título escolhido inicialmente por Basquiat (The Nile) em um jogo com a frase “a dog guarding a pharaoh”. A Aranha aparece justaposta a uma marcação histórica, ao Egito, à água do rio Nilo, ao fluxo histórico que Basquiat parece estar querendo dispor ao leitor. A aranha é um dos elementos que chama a atenção do espectador em uma tela que acontece ao jogar com a profusão narrativa. Para ler tal pintura, várias desvios podem ser propostos, Basquiat seria, afinal de contas, um artista bastante versado na noção Bidimaniana de travessia. No entanto, dentro do presente ensaio gostaria de chamar a atenção para o começo de uma leitura em que vejo o trabalho do artista como simultaneamente um relato histórico – bebendo nas águas que dão a esta tela o título de “a tela histórica” de Jean-Michel – e a invenção de uma história completamente outra, de um universo completamente outro, uma elaboração que como que retorce a história – à moda Exu – por uma fenda temporal que se faz presente na inventividade da agência estética. A aranha sobre o Nilo (o rio Nilo que dá um dos títulos da tela e que se desdobra em outro título, homófono, “a negação”/Denial), ao mesmo tempo em que alude à cidade material no estado do Mississipi, também, em conjunto com a figura do animal que o artista intencionalmente pictoriza, parece inclinar-se à figura da deusa egípcia que toma a forma de uma aranha: Neite, que nada mais era do que a deusa da invenção. Basquiat tinha como conhecido método de seu trabalho o palimpsesto, o uso de recobrimentos de camadas de história estética – tinta – sobre história estética – mais tinta – para atingir uma composição que pudesse se demorar no mundo. Esse palimpsesto é uma das formas de materializar a assimilação compositiva a que me refiro e mergulhar em uma importante noção da subjetividade preta americana entendendo o que Moten lê com certo receio em algumas teorias do sujeito preto como “um namoro com uma origem sempre indisponível e substituva” por ver essa suposta origem como problemática caso fixada como sendo também a força desse demorar na encruzilhada que é a experiência da pretitude na América: o reinventar mobilizante do que já foi no que ainda está por vir.
Meu segundo exemplo de encerramento é esta, de fato, este mesmo ensaio; ensaio que carinhosamente chamei de Jam Session, em uma referência semi-velada ao mais recente livro do professor Robert O’Meally da Universidade de Columbia, Cooperação Antagonística, em que o autor definiu a Jam Session como “uma sessão conjunta onde se aprende, entre outras coisas, a ouvir e a responder de maneiras que melhorem a conversa para todos”11
Penso que focar na cena inicial como a do corte afetivo que tira o filho da possibilidade de ter mãe antes de voltarmos-nos à cena em que, ainda na infância, nos é imposto o testemunho da dor sádica da violência imposta do senhor contra o escravo é importante, pois na mesma medida em que não apaga a formação de uma subjetividade a partir do corte sexual que Moten – e Hartman, até certo ponto – observam na cena de tortura de Tia Hester, esse passo atrás, esse observar da travessia, essa relação com a encruzilhada, é o que dá ao sujeito a possibilidade de agir hoje – ao testemunhar a violência – para afetar o ontem – a retirada do pertencimento. Ao compor a crítica com a qual principia sua obra, Moten fez um movimento similar ao que empreguei aqui hoje com relação à obra de Hartman ao apontar para a obra de Douglass e o seu relato da manhã em que os escravizados iam ao campo de trabalho cantando de maneira que “[p]or vezes exprimiam o sentimento mais doloroso no tom mais extasiante, e o sentimento mais extasiante no tom mais doloroso”12 como um espaço que tinha já feito um bom trabalho de elaboração da violenta cena anterior apontada no livro. Naquelas manhãs em que o corte violento imposto à Tia Hester e a tantas outras era elaborado nas canções que estão no início de tantos gêneros musicais pretos e funcionam mesmo como parte compositiva da Tradição (Est)ética Afro-Atlântica o processo músico-improvisacional que Moten vê como elemento performático revolucionário da pretitude aparecia já como forma de assimilaçao compositiva da travessia do Atlântico, da perda materna e do sangue derramado nas noites que passavam em violência imposta sobre seus corpos. Naquelas manhãs, magia preta transbordava o Atlântico e seu hospício ocidental com esperanças as mais variadas. Assim, apenas dando esse passo atrás é que é possível verdadeiramente escutar a proposição músico-improvisacional que Moten coloca a nossa disposição em sua crítica, pois é esse conhecimento de como elaborar a travessia da “maior encruzilhada do mundo” que possibilita o entendimento da subjeção e, portanto, a tomada de posição contra esta. Tanto Moten quanto Bidima, quanto Glissant, Gilroy, Hartman, O’Meally e mesmo Frantz Fanon entendem o Jazz – essa performance músico-improvisacional que nasce de um procedimental palimpsestico sonoro – como um adentrar dissonantemente harmônico nas estruturas que tentam soterrar o sujeito em fixidez e delas fazer movimento, travessia, fuga e relação.
Espero que o presente ensaio tenha possibilitado a aprensentação de um pouco do que faz com que essa afirmação seja tão radicalmente transformadora, de modo que seja possível, daqui pra diante, alguma forma de composição com o outro e contra o colonialismo nesta nossa experiência que se constitui como uma travessia constante.
REFERÊNCIAS
DOUGLASS, Frederick. Narrative of the Life of Frederick Douglass: With Selected Speeches. New York: Dover Publications, 2024.
KODJO-GRANDVAUX, Séverine. Filosofias Africanas. Florianópolis, SC: Cultura & Barbárie, 2021
MOTEN, Fred. Na quebra: A estética da tradição radical preta. Trad: Matheus Araújo dos Santos. São Paulo: Crocodilo; n-1, 2023.
O’MEALLY, Robert. ANTAGONISTIC COOPERATION: Jazz, Collage, Fiction, and the Shaping of African American Culture. New York: Columbia University Press, 2022.
SIMAS, Luiz Antônio. RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Luiz Antônio Simas, Luiz Rufino. Rio de Janeiro: Mórula, 2018
- 1. Escolhi utilizar o termo Pretitude – tendo em vista que o significado a que este se refere tem ainda um debate considerável sobre que significante incorporar no estado atual do debate afro-diaspórico em língua portuguesa – por estar de acordo direto com a escolha feita por Matheus Araújo dos Santos em sua tradução do termo “black” quando presente no livro de Fred Moten Na quebra: a estética da tradição radical preta [In the Break: the aesthetics of the black radical tradition] que é uma obra que serve como pedra de toque para a conversa que disponho aqui.
- 2. DOUGLASS, F. in MOTEN, F. 2023, p. 46.
- 3. DOUGLASS, F. 2024, p. 19 [Tradução Minha]
- 4. As significações que se desdobram na simbologia da água são comentadas em diversas obras ao longo do discurso intelectual. Sobre o que se afirma dentro do argumento desse parágrafo, é possível traçar uma linha a um dos primeiros registros escritos no que concerne à simbologia da água, quando o filósofo gregro Tales de MIleto pensou o elemento como um elemento de, a partir de sua funcionalidade originária – a arché – como também um elemento de constituição civilizacional.
- 5. Ponto que, é bom frisar, foi também muito bem elaborado na composição teórica da própria Saidiya Hartman em um livro publicado algum tempo depois de Cenas de Sujeição, com o sintomático título Perder a mãe, sobre a travessia que a autora empreendeu através do Atlântico para o continente africano e a inexistência de uma “mãe África imaginária e fantásica” na materialidade da experiência preta em sua relação com o continente africano.
- 6. SIMAS, RUFINO, 2018, p.11
- 7. BIDIMA, J.-G. L’ethnopsychiatrie et ses revers: dire la fragilité de l’Autre, Diogène, nº 189, Printemps, 2000. pg. 08 in KODJO-GRANDVAUX, S. 2021, p. 233
- 8. KODJO-GRANDVAUX, S. 2021, p. 233.
- 9. MOTEN, F. 2023. p. 76-77.
- 10. Aqui cabe uma conversa – que infelizmente nos falta o espaço para elaborar – com a maneira como Moten vai pensar algumas noções do pensamento lacaniano em Na Quebra quando faz a leitura do Estádio do Espelho proposto por Jacques Lacan a partir da obra de artistas como Amiri Baraka e James Baldwin.
- 11. O’MEALLY, R. 2022, p. 04 [Tradução Minha]
- 12. DOUGLASS, F. 2024, p. 26 [Tradução Minha]