Arte é essencial para a Democracia
Hard Times Require Furious Dancing.
Alice Walker
O dia 20 de janeiro de 2017 se fez um dia histórico. A começar, esse dia marcou a concretização do que até aquele momento era o mais cristalizado sintoma da patologia social que assola a sociedade contemporânea – a saber: a posse de Donald Trump. No entanto, o que fez do dia 20 de janeiro de 2017 um dia histórico não foi a posse do quadragésimo quinto presidente dos Estados Unidos da América, mas sim a resposta, bastante contundente, que essa mesma posse recebeu nas ruas do mundo. Grosso modo, é sobre essa resposta que me proponho a falar aqui hoje. O dia 20 de janeiro toma um novo significado social, um significado ritualístico poderíamos dizer, de um factualritual político a partir mesmo desse ano de 2017, pois em dado ano, ele marcava simultaneamente a data da inauguração de Trump em gabinete e o dia em que foi lançada a primeira Women’s March.
A iniciativa Women’s March baseava-se numa premissa bastante simples: mulheres marchando por assuntos que lhes interessavam e contra o que lhes preocupava. Na passeata, que ao longo do mundo reuniu mais de um milhão de pessoas com bastante folga numeral poderíamos afirmar, podia-se observar várias placas e sinais que afirmavam a discordância das pessoas presentes com atitudes que o presidente, então em sua cerimônia de posse, havia tomado durante a corrida eleitoral. Mas talvez a fala mais poderosa tenha vindo de uma mulher que, por uma sorte qualquer, não estava em solo ianque no momento em que a enunciou. A poeta Anne Waldman estava, no dia 20 de janeiro de 2017, cantando alguns de seus poemas na feira literária de Jaipur, na Índia, e no meio da canção de seu Anthropocene Blues parou e disse: “a linguagem não pode ser ameaçada”. Um ano depois, Waldman reafirmaria seu comprometimento com a resistência da linguagem ao cantar seus poemas em um evento artístico em Nova Iorque – agora sim fazendo parte da Women’s March em solo estadunidense.
A segunda edição da marcha das mulheres contou com uma nova iniciativa da comunidade artística estadunidense; seu nome: Art is essential to Democracy [Arte é essencial para Democracia]. A iniciativa atraiu um sem número de artistas por todo o país engajando em diferentes atividades que promoviam a ideia de que a arte fomenta a discussão popular e que a discussão popular, em seu dissenso, é a democracia em seu cerne. É dessa afirmação que Waldman se apossa quando vai cantar seus poemas em Nova Iorque, e já era do espírito dessa afirmação que saíra o aviso de um ano antes.
A fala de Waldman leva água para o moinho de uma linha bastante interessante de pensamento. Quando pede pela liberdade da linguagem em meio ao cantar de seu Anthropocene Blues – uma parte do poema menciona que “nada não é mantido refém pelo Homem” – ela direciona a atenção para o que pode ser um dos maiores males da sociedade contemporânea: a ameaça da linguagem.
Roland Barthes uma vez afirmou que “O fascismo não é impedir-nos de dizer, é obrigar-nos a dizer”. Nessa frase está condensada a ameaça fascista e também está, em fase embrionária, o aviso de Waldman. Quando a poeta afirma que não se pode deixar que a linguagem seja ameaçada, ela faz menção a isso, a esse “obrigar-nos a dizer” fascista, mas faz menção também a outra coisa: quando Barthes faz sua afirmação sobre o fascismo está justamente falando sobre o caráter fascista da própria linguagem (“A linguagem não é progressista nem reacionária, ela é simplesmente fascista”), nessa perspectiva, pensar a resistência da linguagem deve ser pensar a resistência na linguagem; um para-além desse regime fascista da linguagem. Dentro de um regime fascista toda a liberdade é abolida e o discurso do líder passa a ser Verdade. O fascismo, de facho, de feixe de luz, de um único caminho iluminado, de lira, doxa, de uma única Verdade, é a essência da ameaça da linguagem. Para Waldman, a poesia é o movimento-contra, um prisma disjuntivo do feixe de luz; pois o próprio embaralhar-se da linguagem é, afinal, Poesia.
Em algumas das páginas mais bem escritas da filosofia francesa recente, Gilles Deleuze desenvolveu a relação de oposição entre o Paradoxo e os elementos da doxa – bom senso e senso comum.
Para Deleuze, o bom senso se significa em uma direção; “ele é um senso único, exprime a existência de uma ordem com a qual é preciso escolher uma direção e se fixar a ela”. O filósofo francês lê a ideia do bom senso de uma maneira com a qual percebe que nele “orientamos a flecha do tempo”, ou seja: percebemos o tempo com uma direção específica, uma direção determinada pelo presente: “esta direção é facilmente determinada como a que vai do mais diferenciado ao menos diferenciado”. É uma visão direcionada do tempo em que há o fechamento e a construção – sempre falseada – de uma unidade. O bom senso tenta estabelecer o tempo de uma tal sorte que ele se torne previsível, “a essência do bom senso é de se dar uma singularidade, para estendê-la sobre toda a linha dos pontos ordinários e regulares que dela dependem, mas que a conjuram e a diluem. O bom senso é completamente combustivo e digestivo”. O bom senso, em Deleuze, é essa coisa que tem por essência aparentar uma unidade no já-fragmentado – sua singularidade, desnecessário afirmar, é obviamente falsa –, o bom senso é um tipo de violência que tem o cerceamento como sua maior técnica. Em suma,
Os caracteres sistemáticos do bom senso são pois: a afirmação de uma só direção; a determinação dessa direção como indo do menos diferenciado ao mais diferenciado, do singular ao regular, do notável ao ordinário; a orientação da flecha do tempo, do passado ao futuro, de acordo com essa determinação; o papel diretor do presente nesta orientação; a função de previsão que assim se torna possível; o tipo de distribuição sedentária, em que todos os caracteres precedentes se reúnem
Já o senso comum não é uma direção, mas sim “um órgão, uma função, uma faculdade de identificação, que relaciona uma diversidade qualquer à forma do Mesmo”, ou seja: o senso comum é, para somar-se à aparência de unidade direcionada do bom senso, a aparência de identificação. “O senso comum identifica, reconhece, não menos quanto o bom senso prevê”. O senso comum também se significa em um cerceamento, mas aqui o cerceamento se dá na estratégia da formatação. A formatação tem por natureza excluir qualquer traço de real singularidade, a formatação é um apagamento objetivo da subjetividade de forma que esta jamais se coloque em um lugar de questionamento da unidade pretendida pelo bom senso; não à toa, ao definir o caráter subjetivo e objetivo do senso comum, Deleuze afirma a impossibilidade do aparecimento da linguagem. Subjetivamente, o senso comum subsume faculdades diversas da alma ou órgãos diferenciados do corpo e os refere a uma unidade capaz de dizer Eu: é um só e mesmo eu que percebe, imagina, lembra-se, sabe etc.; e que respira, que dorme, que anda, que come… A linguagem não parece possível fora de um tal sujeito que se exprime ou se manifesta nela e que diz o que ele faz. Objetivamente, o senso comum subsume a diversidade dada e à refere à unidade de uma forma particular de objeto ou de uma forma individualizada de mundo: é o mesmo objeto que eu vejo, cheiro, saboreio, toco, o mesmo que percebo, imagino e do qual me lembro… e é no mesmo mundo que respiro, ando, fico em vigília ou durmo, indo de um objeto para o outro segundo as leis de um sistema determinado. Aí ainda a linguagem não parece possível fora de tais identidades que designa.
Ora, é perceptível, portanto, como o bom senso e o senso comum são partículas fundamentais uma para a outra, juntos constituem a doxa como lira unificada de subjetividades formatadas; uma imagem: a marcha desinteressada dos zumbis. Vemos muito bem a complementaridade entre as duas forças, a do bom senso e a do senso comum. O bom senso não poderia fixar nenhum começo e nenhum fim, nenhuma direção, não poderia distribuir nenhuma diversidade, se não se superasse em direção a uma instância capaz de referir este diverso à forma de identidade de um sujeito, à forma de permanência de um objeto ou de um mundo, que supomos estar presente do começo ao fim. Inversamente, esta forma de identidade no senso comum permaneceria vazia se não se superasse em direção a uma instância capaz de determina-la por esta ou aquela diversidade começando aqui, acabando ali e que supomos durar todo o tempo que é preciso para a igualação de suas partes. É preciso que a qualidade seja ao mesmo tempo parada e medida, atribuída e identificada. É nesta complementaridade entre o bom senso e o senso comum que se estabelece a aliança do eu, do mundo e de Deus – Deus como saída última das direções e princípio supremo da identidade
A solução para sair da marcha dos zumbis, então, Deleuze nos apresenta na forma do paradoxo: “O paradoxo é a subversão simultânea do bom senso e do senso comum: ele aparece de um lado como os dois sentidos ao mesmo tempo do devir-louco, imprevisível; de outro lado com o não-senso da identidade perdida, irreconhecível”. O paradoxo é aquilo que tem por natureza o movimento simultâneo, Deleuze diz que “os paradoxos do sentido são essencialmente a subdivisão ao infinito (sempre passadofuturo, nunca presente) e a distribuição nômade (repartir-se em um espaço aberto ao invés de repartir um espaço fechado)”. Só aí já encontramos como o paradoxo desativa a doxa unitária de subjetividades formatadas, pois se recusa a uma unidade do tempo, mantém-se no que Mallarmé uma vez chamou de doublé état de la parole: futuropassado, movimento constante, simultaneidade; e se recusa a ser formatado para caber em um espaço de unidade:
[…] a potência do paradoxo não consiste absolutamente em seguir a outra direção, mas em mostrar que o sentido toma sempre os dois sentidos ao mesmo tempo, as duas direções ao mesmo tempo. O contrário do bom senso não é o outro sentido; o outro sentido é somente a recreação do espírito, sua iniciativa amena. Mas o paradoxo como paixão descobre que não podemos separar duas direções, que não podemos instaurar um senso único, nem um senso único para o sério do pensamento, para o trabalho, nem um senso invertido para as recreações e os jogos menores. Se a viscosidade se fizesse acelerante, ela arrancaria os móveis ao repouso, mas em um sentido imprevisível. Em que sentido, em que sentido? pergunta Alice. A pergunta não tem resposta, porque é próprio do sentido não ter direção, não ter “bom sentido”, mas sempre as duas ao mesmo tempo, em um passadofuturo infinitamente subdividido e alongado.
O bom senso e o senso comum formam uma linha de cerceamento forçado. Uma lira, caminho indiscutível no tempo e no espaço. Ponto de segurança subjetiva do indivíduo. Prisão da linguagem. O paradoxo, por outro lado, é o puro delírio, um vórtice de movimento constante, indeterminado no tempo e no espaço, que se significa, de forma difusa, em mostrar simultaneamente as duas possibilidades desdobráveis do sentido. O paradoxo é uma forma de leitura que produz vertigem, que produz vazio e que enxerga em si não a certeza do caminho, mas a possibilidade de caminhos. Isso é também o que acontece quando a obra de arte se propõe a estabelecer uma proposta crítica de jogo político.
Ora, não é outra coisa que podemos ler no provocador título das intervenções artísticas estadunidenses propostas durante a Women´s March. Porque se Art is essential to democracy então A arte propõe uma democracia. E é fazendo uma leitura justamente dessa proposta que pretendo terminar minha breve reflexão aqui, não como um fecho, mas como uma sugestão de gatilho para o pensamento.
Sugiro lermos três obras. Um diorama, uma escultura e um quadro. O diorama é o proposto por Jon Kessler em 2004 chamado The palace at 4 am. Nessa proposta provocadora de um circuito de gatilhos, Kessler coloca em questão o aftermath das políticas de exceção de George Bush. O artista constrói um jogo de telas que nos propõem ao mesmo tempo uma profusão de estímulos e uma anestesia generalizada. A bem da verdade, Kessler faz ali um comentário de como a sociedade contemporânea funciona, via de regra, dentro de uma lógica de escape constante – o que Susan Buck-Morss vai chamas de anestética. Para Hal Foster, o que está em jogo no diorama de Kessler é uma exacerbação mimética, isto é: uma proposição de hipertrofia crítica na qual o artista se insere exageradamente na lógica da ordem simbólica de forma a jogar certa luz sobre as fraturas dessa mesma ordem e imanentemente romper com o jogo de cena proposto em sentido top-down. Chamemos isto de movimento primeiro.
Para o quadro, escolhi o Estado de Francis Bacon, o autorretrato tríptico que o pintor compôs e que, em minha opinião, condensa todas as propostas que Gilles Deleuze concatenou em Lógica da Sensação pois funciona de forma a expor a impossibilidade da representação do sujeito, se coloca como um quadro expondo o real esquizo do corpo, a diluição histérica das barreiras subjetivas, o para-além. O quadro de Bacon coloca-nos uma proposta talvez menos ampla que a do diorama de Kessler, na medida em que lida com a singularidade do corpo e não com a estrutura em que ele se insere, no entanto, é tão importante quanto, considerando que elabora a (im)possibilidade de existência no interior da estrutura dessa ordem simbólica anestética que Kessler critica. Dessa forma, as críticas consonam. Chamemos este de segundo movimento.
A escultura que pensei em propor aqui é de um artista contemporâneo italiano chamado Maurizio Cattelan. O nome da escultura é L. O. V. E. (Il Dito), um acrônimo que significa Libertà, Odio, Vendeta, Eternità – Liberdade, Ódio, Vingança e Eternidade. A escultura está posta no centro do distrito financeiro de Milão, na Piazza Affari e nada mais é do que um gigantesco dedo do meio em riste. Ora, a mensagem é bastante explícita, mas ainda assim merece um comentário. Feita em 2010 e colocada no coração do capitalismo financeiro italiano, L. O. V. E. coloca em cena um jogo de forças. Uma mão gigante, nada sutil, manda todo o capitalismo financeiro se foder. Essa afirmação é poderosa por causa de onde está inserida. Em um breve texto publicado na revista October, Gilles Deleuze propôs, como um depois da sociedade disciplinar foucaultiana, a ideia da sociedade de controle. A sociedade de controle nada mais é do que a sociedade que se baseia na lógica necropolítica neoliberal que toma como único significante a cifra financeira – no limite: elide o corpo. Dessa forma, quando Cattelan coloca no centro do distrito financeiro da Itália – em 2010, ou seja, dois anos depois da eclosão da crise econômica causada pelo abstracionismo patológico da sociedade de controle do capitalismo financeiro que não apenas jogou a economia europeia às favas, como destruiu para além de reparos os países menos desenvolvidos do sul global – o que ele faz é inserir o corpo no capitalismo financeiro. É, para falarmos com Jean-Luc Nancy dizer o corpo. Esse é o terceiro movimento.
Arte é essencial para a democracia na medida em que Arte nada mais é do que movimento. Do que a possibilidade de uma proposta outra. Do que uma dança. Alain Badiou, lendo a proposta nietzschiana de que a dança é a metáfora perfeita para o pensamento, nos diz que «A dança, precisamente por ser uma arte absolutamente efêmera, já que desaparece assim que ocorre, detém a maior carga de eternidade. A eternidade não consiste no “permanecer tal qual” ou na duração. A eternidade é justamente o que conserva o desaparecimento». Quando proponho a experiência estética como algo que nos coloca a ver a democracia – e aqui penso estética como Rancière a propõe em sua partilha do sensível, ou seja: como aquilo que possibilita a estese – em consonância com o título da intervenção estadunidense contra a anestesia de uma posse fascista, o que proponho de fato nada mais é do que observar aquilo que difere. Georges Didi-Huberman pensa a antropologia visual como aquilo que reinsere o pathos no corpo. A arte é essencial para a democracia pois é nela que podemos novamente nos apaixonar – entrar em contato com a diferença do sensível, fazer laço com o Outro, dançar – e é a partir dela que podemos entender que democracia nada mais é do que saber ver o outro e simultaneamente ser olhado por ele – ou melhor: senti-lo.