Da Cooperação Cultural ou da lógica europeia no financiamento às Artes
50 anos das independências africanas. É impressionante pensar que até há uns meros 50 anos estava normalizada a ideia de que um território – geográfico e cultural - podia, “legitimamente”, pertencer a outro país (na verdade, essa ideia ainda está normalizada, veja-se a situação da Palestina ou a das “colónias disfarçadas” do Reino Unido ou da França).
Ao mesmo tempo, o facto de, a mim e à maioria das pessoas nascidas depois de 1974, parecer bizarra a ideia de que se considerava óbvio, natural e legítimo a ocupação de territórios, não deixa de ser revelador de como, num espaço tão curto de tempo – 50 anos é uma pequenez na história da humanidade – se fez algum caminho na mudança de mentalidade. Fez-se algum, importante, mas falta ainda aquele mais profundo: o de descolonizar a estrutura de pensamento.
Enquanto colónias portuguesas, a relação entre a “metrópole” e o “território ultramarino”, mesmo que à época não tivesse esse nome, era a de exploração. Exploraram-se pessoas e recursos naturais. Em prol da nação colonizadora, claro.
Após a independência, assinados todos os tratados, estabeleceu-se um outro tipo de relação, chamada de “cooperação”. A Cooperação Internacional pressupõe a relação entre dois ou mais países, entre duas ou mais instituições, pretende reforçar os laços económicos e políticos e contribuir para o desenvolvimento de uma ou mais das partes envolvidas.
Sendo que a Cooperação Internacional pode ser estabelecida entre quaisquer países (a União Europeia, por exemplo, não deixa de ser um formato macro de cooperação entre países), este artigo pretende ser uma pequena reflexão sobre a Cooperação entre Portugal e os países africanos onde também se fala português.1
As independências africanas dos países colonizados por Portugal foram, na sua maioria, precedidas de um longo período de guerra (a chamada “guerra colonial”) e, no caso de Angola e Moçambique, os países recém independente entraram em longas guerra civil logo após a descolonização.
Compreender as necessidades de um território em guerra ou pós guerra, é importante para compreender as prioridades estabelecidas num trabalho de Cooperação. Podemos facilmente imaginar que, num contexto de guerra, a prioridade passa pela assistência alimentar e medicamentosa e que, em pós-guerra, os acordos de Cooperação Internacional passem a privilegiar a construção de infra-estruturas como escolas, hospitais e outras.
Este tipo de prioridades, claro, à medida que o território entra em novas fases, deixa de fazer sentido. A Cooperação vai, assim, encontrando diferentes formas de se concretizar ou, mais especificamente, diferentes formas políticas de ser implementada.
A Cooperação entre Portugal e os países africanos onde também se fala português tem percorrido um caminho em que se inscrevem as mudanças de contexto social, político e económico, a relação específica estabelecida entre cada país e Portugal e, ao mesmo tempo, as mudanças próprias da evolução de pensamento sobre o que se considera “desenvolvimento” e “cooperação”.
Importa realçar que uma parte da ação da cooperação é definida entre os Estados cooperantes, pelo que as prioridades da Cooperação de alto nível – a que acontece diretamente entre os governos – é decidida por mútuo acordo (não certamente sem ser neutra aos jogos de poder, dinheiro e agendas escondidas).
Mas a Cooperação Internacional deixa ainda uma fatia (pequena) para a chamada sociedade civil. São as linhas de financiamentos (subvenções) para as quais se podem candidatar associações e Organizações Não Governamentais (ONG). Essas linhas de financiamento são lançadas com objetivos próprios, supostamente inscritos nos objetivos estratégicos definidos para a Cooperação entre os estados envolvidos.
Na história da Cooperação entre Portugal e os países ex-colonizados, em que habitualmente Portugal aloca verbas em sede de Orçamento Geral de Estado (OGE), (e não, os financiamentos atribuídos não são um desfalque aos cofres de Portugal, antes um “mínimo dos mínimos” que está longe de compensar o quanto estes territórios foram espoliados em 500 anos de colonização), houve fases em que o apoio prioritário foi para a formação de quadros em áreas técnicas, a construção de infra-estruturas, apoio alimentar ou alfabetização em massa. Com a evolução dos contextos próprios dos países, passou-se a dar prioridade a linhas de financiamento e projetos de defesa de Direitos Humanos, defesa de Direitos das Mulheres, Democracia e Cidadania, Ensino Superior e Profissional, e, mais recentemente, defesa de Direitos Ambientais e Resiliência Alimentar.
Normalmente, estas linhas de apoio aparecem também com a inscrição de apoio e reforço à sociedade civil local, num reconhecimento de que só as estruturas nacionais podem tornar o trabalho da sociedade civil duradouro e sustentável (quem já trabalhou nestes países sabe o quanto as ONG internacionais aparecem e desaparecem do panorama da cooperação).
No entanto, ao contrário de outras cooperações internacionais a atuar em países como Angola ou São Tomé e Príncipe (exemplos para a cooperação alemã, norueguesa, holandesa, britânica ou outras), Portugal ainda não conseguiu dar um passo importante: aceitar financiar associações ou ONGs locais de forma direta. Exige sempre que o requerente seja uma ONG portuguesa – é verdade que valoriza candidaturas feitas em parceria com associações locais – mas não confia o suficiente nas associações locais para permitir que estas se possam candidatar diretamente a financiamentos para trabalhar no seu próprio país.
Não só isto é um sinal de cabeça que ainda pensa como colonizador, como revela uma posição de absoluta condescendência e ludibria as “contas” da cooperação. Quando, na apresentação da execução do OGE português se anuncia que x milhões foram investidos na cooperação com países africanos, essas contas não reflectem que mais de metade desse dinheiro ficou em Portugal para salários dos agentes de cooperação portugueses e materiais e serviços comprados ou contratados em Portugal. Ou seja, apenas uma diminuta parte do dinheiro da cooperação chega realmente ao país beneficiário.
Mas estávamos a falar sobre as prioridades da cooperação. Sempre que as prioridades mudam, mudam também as linhas de financiamento. Isso provoca alterações nas ONG que trabalham para a cooperação.
De forma simplificada, imaginemos uma ONG que sempre trabalhou na área da Educação: um dia, acabam os financiamentos para a Educação, mas passa a haver para a defesa de Direitos Humanos… o que acontece é que a tal ONG resiste a fechar portas, requalificando a sua Missão e áreas de atuação e, de repente, o foco daquele coletivo deixa de ser a Educação e passa a ser os Direitos Humanos. Ou o Ambiente. Ou a vacinação de gado. Ou o saneamento básico. Enfim, a circunscrição de financiamentos às exigências políticas dos financiadores é, em si mesma, um fator de enorme fragilidade da sociedade civil e um motor da descaracterização da mesma.
Nesta sequência de mudança nas prioridades dos financiamentos, eis que a Cooperação chegou em força ao setor cultural.
Se, por um lado, a entrada da cooperação na cultura é uma excelente oportunidade para o crescimento do setor – já que os países beneficiários têm estruturas governamentais pouco ou nada apoiantes das artes – por outro lado, é preciso olhar com profundidade para os financiamentos à cultura feitos com as lógicas da cooperação internacional (em si mesma, com estrutura colonialista).
O exemplo do ProCultura
A “cara” maior da entrada da cooperação no sector cultural é a ação ProCultura2, um projeto financiado pela União Europeia no âmbito do Programa Indicativo Multianual PALOP-TL UE para 2014-20, cofinanciado e gerido pelo Camões- Instituto da Cooperação e da Língua e cofinanciado pela Fundação Calouste Gulbenkian.
O ProCultura constituiu um programa amplo, com apoios destinados à formação de estudantes de artes, intercâmbios e residências artísticas, criação de pólos culturais e ainda financiamento destinado à atribuição de apoios através de subvenções a estruturas locais.
Os apoios atribuídos através das subvenções têm (tiveram) por objetivo contribuir para o emprego em atividades geradoras de rendimento nos setores da cultura nos PALOP e Timor-Leste “através do reforço de competências dos recursos humanos e da atribuição de subvenções para desenvolvimento destes setores, nos seis países, com concentração nas áreas da música, artes cénicas e literatura infanto-juvenil”.
Neste ponto, lembramos que a dignidade e resistência dos povos colonizados, durante 500 anos, foram mantidas graças à sua cultura, manifestações e transgressões culturais (as línguas nacionais faladas em circuitos escondidos, as danças, a tradição oral que sobrevive ao apagamento de livros e escritos e outras formas). Mas, de repente, a Cooperação chega com dinheiro para financiar a cultura. E o dinheiro chega com regras, exigências e as suas contradições.
Aqui, importa fazer duas ressalvas:
- O programa ProCultura, apesar do nome, financia as artes e não a Cultura – que contém em si a criação artística mas não se cinge a ela, antes é muito mais ampla e determinante da identidade de um povo;
- por ser uma programa da União Europeia, ao contrário das linhas de financiamento do Camões – I.P., os candidatos podem ser associações dos países beneficiários, não sendo obrigatório ter parceiros com sede em Portugal ou na União Europeia.
O ProCultura foi desenhado na Europa3, pelo que os seus contornos não são isentos da estrutura de pensamento ocidental.
Podemos ter um exemplo claro disso nas linhas de financiamento existentes: é o financiador que define que tipo de artes são financiadas e as bolsas de estudo para intercâmbio de estudantes são todas para estudantes desses países estudarem em escolas de artes portuguesas (porque não outros países?4 Porque não intercâmbios entre as escolas artísticas desses países? Porque não reconhecer que a criação artística nestes países nasce muitas vezes (quase sempre) na rua, nos bairros, e isso não corresponde à educação formal?.
Assim, o financiador (e não o tecido cultural dos países beneficiários) definiu que iria financiar as artes cénicas, a música e a literatura infantojuvenil. Note-se que ficaram de fora manifestações artísticas muito fortes nestes países: as artes visuais, o cinema5 e a poesia falada, só como exemplo. Não vemos problemas em circunscrever o âmbito dos financiamentos (as limitações financeiras e a possibilidade de comparação entre projetos num concurso justo, assim o obriga), mas não deixa de ser uma decisão do financiador e não dos beneficiários. É preciso também ter em conta de que as artes mais valorizadas em contextos fora da Europa podem não ser as mesmas que na Europa. Mas, o que pode ser considerado mais estranho é que a premissa primeira do ProCultura na vertente do apoio concedido através de subvenções6, não é a criação artística, mas a criação de emprego no setor cultural e o financiamento de ações que pudessem gerar emprego sustentável (ou seja, para lá do financiamento). Em nenhum país europeu, as artes – e apesar de estas gerarem rendimento e movimentarem a economia – sobrevivem sem o apoio dos seus Estados. Porque é que se espera que um único programa de financiamento promova rendimento e empregos sustentáveis em países com um tecido económico e político mais frágil? A apresentação das linhas de financiamento foi bastante clara: “O projeto ProCultura prevê a atribuição de subvenções para realização de projetos de desenvolvimento e criadores de emprego e rendimentos sustentáveis nos setores da música, artes cénicas e da literatura infantojuvenil nos PALOP e em Timor Leste” ou seja, não foi para a realização de projetos de criação e experimentação artística, antes para projetos de “empreendedorismo cultural”.
As Artes estão tão longe dos burocratas que a estes lhes é impossível pensar um projeto que apoie as Artes sem que as tentem “enfiar” nas medidas do normalizado e do habitual. Por exemplo, a apresentação de projetos exigia a capacidade comprovada para gerir os montantes financiados, mas, pasme-se, não exigia uma direção artística. Nenhum dos critérios de avaliação da candidatura às subvenções pontuava o valor artístico da proposta nem o reconhecimento cultural do trabalho feito pelos proponentes.
Já não se trata de colocar a parte artística e a de gestão em pé de igualdade, é o total descrédito do valor artístico dos criadores. Financiar as Artes valorizando a sua capacidade de criar emprego e não as pessoas criativas que as pensam (e sonham) é uma visão capitalista do poder transformador das Artes. Para o ProCultura a Arte vale se gera rendimento económico e empregos sustentáveis. Não vale porque nos incita a imaginar futuros.
Por outro lado, as subvenções do ProCultura foram pensadas como sendo uma linha de financiamento extamente igual a linhas que apoiam outras áreas. Ou seja, com as mesmas exigências na gestão e prestação de contas (só quem já trabalhou na cooperação sabe o quanto os processos exigidos pela UE são morosos e burocráticos). O que acontece é que as ONGs que trabalham na Cooperação têm pessoal qualificado e experiente neste trabalho, já as associações culturais e artísticas (nunca antes com acesso a este tipo de financiamentos) não têm (para se ficar com uma ideia, o nível de exigência na prestação de contas e documental do ProCultura é bastante superior ao nível que a DGArtes exige, em Portugal, às estruturas artísticas financiadas). Em que é que isto resultou? As estruturas culturais e artísticas tiveram que se associar a ONGs já experientes e que, na sua maioria, nunca tinham trabalhado na área artística e, portanto, não compreendem as suas necessidades. Acabaram por ser as ONGs experientes que entraram na corrida como “requerentes principais”, ou seja, com maior poder de decisão dentro do quadro do projeto. Podemos então assistir a ONGs e Fundações sem nenhum tipo de experiência prévia na área cultural que passaram a operar no setor, ficando de fora muitas estruturas locais com experiência no setor.
A ação ProCultura teve também uma pequena linha de financiamento, gerida a partir dos países beneficiários, chamada DIVERSIDADES. Com um excelente principio (de que os atores-chave da cultura nem sempre estão preparados para se candidatarem a montantes elevados), permitiu, de forma simples, que associações locais se candidatassem a valores entre 2.000,00€ e 20.000,00€, com menor burocracia e regras menos complexas. Em Angola, a linha DIVERSIDADES foi gerida pela Alliance Française, que o fez com graves lacunas de comunicação e gestão, estando, até ao momento, ainda com pagamentos por realizar, lesando os beneficiários e os projetos (a ponto de ter colocado estruturas artísticas em risco de sobrevivência). Em jeito de conclusão, e reconhecendo a enorme importância do apoio às Artes, ficam algumas notas para quem pensa a Cooperação no setor Cultural:
- Nas vossas equipas têm profissionais das artes que vos ajudem a pensar este tipo de financiamentos? Conhecem realmente as especificidades do setor?
- Porquê centrar o financiamento na capacidade de gerar empregos duráveis e não na criação artística?
- Como dar espaço para que outras áreas de criação, menos expetáveis para um olhar europeu, possam ser contempladas?
- Porque não privilegiar o intercâmbio de escolas e movimentos artísticos entre os diferentes países beneficiários?
- As artes são feitas por artistas. Os projetos não podem valorizar mais a capacidade de gestão do que a identidade artística da proposta. As candidaturas devem poder ser pontuadas pela vertente de criação.
- E considerando que o Camões – I.P. tem dado sinais de querer continuar com ações na área da Cultura, fica a sensação mista entre a alegria de haver possibilidade de financiamentos para as Artes e o receio que estes financiamentos acabem por condicionar o tecido cultural e artístico efervescente de países africanos em que também se fala português.
- 1. A Cooperação alemã é feita através da Misereor e da Pão para o Mundo (um dos principais e mais fieis financiadores da ADRA, por exemplo). Da França, penso que é a Expertise França que gere a cooperação com a mesma lógica da portuguesa, (ter sempre parceiro francês envolvido). Já a cooperação Alemã (como a da Noruega ou a Britânica) aceitam financiar diretamente as ONG’s dos países beneficiários sem precisarem ter um único parceiro do país financiador no projeto.
- 2. Mais recentemente, a Cooperação Portuguesa lançou o programa PROCERIS, uma espécie de sequela do ProCultura, pelo menos na filosofia de intervenção.
- 3. A Agenda Europeia para a Cultura é um dos documentos de referência do desenho do ProCultura.
- 4. Da rede lusófona fazem parte outros países, mas os alunos só estão a vir para Portugal. Sempre que sublinhamos que só num país europeu se “aprende”, estamos a reforçar o pensamento “colonizador”. Mesmo sabendo que as escolas artísticas têm muitas fragilidades, não teriam saído reforçadas se tivessem que receber estudantes de outros países africanos para estudar um semestre? Não é importante que estudantes de artes possam conhecer outras realidades africanas? Ou é melhor que uma experiência fora do seu país tenha que ser na Europa?
- 5. O apoio ao cinema não se trata apenas de financiamento a filmes. Pode ser em formação, capacitação técnica, residências de escrita de guiões, apoio à pós produção, incentivo a contar estórias a partir do ponto de vista de matrizes culturais diferentes da europeia. O cinema é das mais eficazes ferramentas para uma mudança na forma como os países africanos são vistos e “imaginados” por quem nunca esteve lá.
- 6. As subvenções são o meio de se conseguir apoios mais elevados, que permitiam mais liberdade nos projetos apresentados – uma linha para residências pode não ser o que uma estrutura cultural quer fazer – mas tiveram a limitação de que a tónica estava na geração de rendimento e não na criação artística.