Da missão em “A Missão da Missão”, ou de como se aplaude de pé quando o Teatro nos explode o coração
Ressalva prévia a qualquer outra coisa: findo o espetáculo, ao qual fui sozinha, nasceu-me um desejo enorme de partilhar com alguém a energia que tinha tomado o meu corpo, por muitas razões, mas a mais importante foi a de que acabara de ver Teatro, daquele que me entra pelos poros, me faz vibrar, me deixa concentrada do princípio ao fim e que em nenhum momento me deu vontade de contar os projetores – distração privada quando o aborrecimento toma conta de mim. Assim que saí da sala, quente por dentro, não resisti a telefonar a uma amiga que – bem sei – adormece cedo e não admite interrupções ao seu sono. Arrisquei, portanto. Era preciso dizer a alguém “tens que vir!” em jeito de “vamos à luta, que o mundo ainda pode ser um lugar bonito”. Do outro lado do telefone, a Leo espantou-se, riu comigo, entusiasmou-se e garantiu “amanhã vou”. E foi. As amigas são estes pequenos milagres de se partilhar um livro, uma peça ou um filme.
Fim de ressalva.
E agora, vamos ao espetáculo! A Missão da Missão é uma criação do coletivo Aurora Negra em resposta ao convite do Teatro do Bairro Alto para levar à cena o texto “A Missão: lembranças da Revolução”, de Heiner Müller, a propósito das comemorações do 25 de Abril e da celebração dos 50 anos da fundação da companhia de Teatro da Cornucópia, que tantas revoluções trouxe ao teatro em Portugal.
Convite feito e da melhor forma possível aceite pelo coletivo Aurora Negra: transformá-lo no que somos. Assim surgiu, segundo a folha de sala, o espetáculo A Missão da Missão, que acabou por deixar o texto de Müller de lado na impossibilidade deste ser um espelho do que o coletivo precisava de dizer.
O espetáculo conta-nos sobre sete mulheres negras que vivem na clandestinidade e se prepararam para executar uma Missão. A Missão não é imposta por um comando ou ordem superior, mas transmitida entre gerações e gerações de mulheres, na certeza de que a mudança acontece quando somos capazes de começar onde a anterior deixou a luta por um mundo mais justo e equitativo, de reparação e cuidado.
A Missão da Missão traz à cena a memória do contributo das mulheres negras para as lutas de libertação dos países africanos e de quem a História se tem esquecido, habituada a ser contada do ponto de vista branco e, sobretudo, do ponto de vista dos homens. As guerras são a arte da auto-aclamação: provocadas por homens para a criação de heróis homens, para séculos de doutrinamento sobre a sua força, coragem e estratégia. Só que há sempre mulheres em todas as guerras: as que cuidam, as que dão à luz, as que protegem, as que simulam, as que curam e as que LUTAM. Nos países africanos onde também se fala português, as lutas pela independência tiveram a intervenção de muitas mulheres em todos estes papéis mas, claro, ficaram na sombra. O espetáculo resgata nomes como os de Deolinda Rodrigues, Lilica Boal, Titina Silá, o esquadrão Kamy (e tantas outras), conta as suas histórias, celebra os seus feitos e lembra-nos que há ainda muitas lutas a fazer para que a Liberdade (e a Libertação) seja real e chegue àquelas a que as balizas do pensamento colonialista, racista e machista colocou em fim de linha: as mulheres negras.
Não seria justo se ficasse a pairar a ideia de que é um espetáculo competente sobre o passado ou que apenas conta boas histórias sobre mulheres negras que lutaram pela independência dos seus países. Esse é somente o início de conversa: ali as temos, sete atrizes/mulheres, elas próprias em palco e, com elas, tantas outras. Tratam-se pelos seus nomes, preparam uma ação na clandestinidade, emitem um programa de rádio pirata e entre a preparação da Missão que estão prestes a realizar, os medos, as inquietações, as memórias das mulheres que as trouxeram até ali, há também espaço para expor as fragilidades do movimento negro, num ato de coragem que, mais do que tudo o resto, afirma a vontade de fazer diferente: somos muitas coisas ao mesmo tempo, estas são as nossas forças e as nossas fragilidades.
Assim, os diálogos (com imenso humor – e como admiro a capacidade de rir de nós próprios), expõem as discussões internas, sem poupar assuntos, quase organizadas por “quadros”:
Quadro “eu é que sou a mais negra”, trazendo ao de cima questões sobre o lugar de fala, sobre o direito (ou não) de reclamar para si a negritude quando a pele, à vista desarmada, não conta essa marca;
Quadro “é estrutural”, usando um saco de boxe, numa clara analogia ao cansaço do argumento que justifica tudo como “estrutural” e as vezes em que essa ideia iliba os indivíduos das suas responsabilidades no quotidiano;
Quadro “a solidão da mulher negra”, uma longa conversa – hilariante e profunda – sobre a constatação de que a maioria dos homens negros que alcançam algum poder (ou fama) acabam quase sempre por escolher mulheres brancas para suas companheiras;
Quadro “traição”, em que se fala sem pudor de que as lutas pela independência dos países africanos também foram palco de mortes de irmão contra irmão. “Morreres nas mãos do teu inimigo branco, tu já sabes que pode acontecer. Mas morreres nas mãos do teu irmão negro?”. É traição ou não é traição? Fica a pergunta no ar. Não há respostas. Há dor;
Quadro “a utopia africana”, sobre quem vive na diáspora e torna a terra dos seus antepassados um território de utopia e, quantas vezes, desfasado da realidade;
Quadro “será que devia estar lá?”, a interrogação sobre onde devemos estar. Porque se está num outro país que não o nosso, não faremos mais falta no país de onde viemos, porquê aqui e não lá? (e o “aqui” e o “lá” ficam sem nome, porque esta interrogação é a de tantos migrantes).
A dramaturgia vai cosendo todos estes assuntos com imagens que nos trazem uma certa ideia de África (danças, tradições, panos, rituais, línguas), com as histórias de lutas (de ontem e de hoje), questionando o lugar que a mulher negra tem sido obrigada a ocupar e a ideia de que aquelas mulheres na clandestinidade se preparam para cumprir a sua Missão.
No caminho, uma delirante cena de um concurso de Miss Decolonial (com a plateia ao rubro) e uma memória efabulada e poética dos últimos momentos antes da execução das mulheres do esquadrão Kamy: conseguimos até vê-las e não há como não ter vontade de gritar que “ninguém larga a mão de ninguém”.
Duas notas sobre aspetos que considerei menos conseguidos:
O espetáculo traz a discussão do contributo das mulheres em contexto de guerra (e fora dele) para palco. Porém, assume como matéria a ideia patriarcal de heroísmo – “as Heroínas”, as mulheres que combateram, que deixaram nome na história, ainda que pouco valorizados. Não tenta ir além do mecanismo de pensamento glorificador de quem andou de arma na mão. Não estamos a perpetuar a mesma ideia de “culto dos heróis”, mas com novos personagens? E todas as outras anónimas que cuidaram, ajudaram a luta e lutaram com outros meios?
Uma das atrizes é uma mulher trans brasileira. A sua participação deixou-me alguma curiosidade. Num espetáculo sobre o contributo de mulheres negras na luta pela independência de países africanos, porquê a representação do Brasil? Não faz sentido o critério de ex colónia portuguesa, pois então teríamos também Timor Leste – e Goa, Macau, Diu, Damão… enfim. E porque, durante o espetáculo, acabou por não haver contributos sobre as lutas das mulheres trans? Enquanto espetadora, questionei-me se a tentativa de representatividade não se sobrepôs ao que se queria contar…
No final, as sete mulheres aparecem vestidas de negro, prontas para a Missão. Saem de cena e podemos segui-las, em vídeo, e ver que a sua Missão é na noite da cidade a renomear ruas, dando honra a mulheres que morreram a lutar pela Liberdade, porque “o 25 de Abril nasceu em África”.
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Espetáculo “A Missão da Missão” do coletivo Aurora Negra
7 a 16 de dezembro de 2023, Teatro do Bairro Alto (Lisboa)
19 de janeiro de 2024, Teatro Académico Gil Vicente (Coimbra)
9 e 10 de Fevereiro de 2024, Teatro Campo Alegre (Porto)
Ficha Artística e Técnica
Texto
Aurora Negra - Cleo Diára, Isabél Zuaa e Nádia Yracema
Direção artística e criação
Cleo Diára, Isabél Zuaa e Nádia Yracema
Interpretação
Ana Valentim, Aisha Noir, Cleo Diára, Isabél Zuaa, Nádia Yracema, Rita Cruz, Romi Anuel
Figurinos
Eloísa d ́Ascenção
Confeção de Figurinos
Carmen Alves, Gabriela Lima, Izaac Lacerda e Karol
Desenho de luz e operação de luz
Lui L’Abatte
Sonoplastia e composição original
Carolina Varela e Cire Ndiaye
Apoio à Sonoplastia
Isaac Veloso
Desenho de Som
Tiago Cerqueira
Cenografia
Marine Sigaut
Apoio à dramaturgia
Sara Graça
Apoio ao movimento
Vânia Doutel Vaz
Apoio à encenação
Mário Coelho
Vídeo
Heverton Harieno
Apoio à produção de vídeo
Mariana Guardo
Apoio à pesquisa
Joacine Katar Moreira
Fotos Promocionais
Patrícia Black
Fotografias de cena
Joana Linda
Produção
Cama a.c
Daniel Matos e Joana Duarte (Administração)
Direção de produção
Maria Tsukamoto
Direção Técnica
Ana Carocinho
Coprodução
Teatro do Bairro Alto, Teatro Municipal do Porto, Teatro Académico de Gil Vicente
Agradecimentos
Apolo de Carvalho, Edson Incopté, Rui Galveias (BOTA), Moisés Perez, Eloísa Maíza, LAMA Teatro
Audiodescrição no TBA
Franco Acesso
Interpretação em Língua Gestual Portuguesa no TBA
Sandra Bragança, Teresa Figueiredo
Tradução para inglês
Eloïse Grace Winter
Legendagem
Rita Mendes