Kwashala Blues, visto através de um monóculo
“– Informo-te que o nosso pai acaba de perder a vida.”
Fechei o livro, com o indicador na página que estava a ler. É uma reação quase inconsciente, quando determinada palavra, frase ou assunto atrai os sentidos. Aqui não é exceção, pois terminara sincronicamente de ler O estrangeiro, de Albert Camus, na última noite.
Mergulhando no universo de Kwashala Blues, de Jessemusse Cacinda. O datilógrafo, que é por sinal o protagonista, acaba de receber no escritório de advocacia em Maputo a notícia do falecimento do pai e terá de percorrer dois mil e trinta e sete quilómetros para enterrá-lo na cidade de Nampula. Porém, a sua postura “indiferente” à situação, imprime-se-nos o personagem Meursault, como por exemplo, na cena do avião, durante a interação do datilógrafo com o viajante vizinho.
“Acenei a cabeça como quem aceita o que ouve. Ele, em seguida, perguntou-me o que ia fazer em Nampula.
– Enterrar o meu pai!”
O protagonista reclinou a cadeira e dormiu. Lá chegou. Apesar da família manifestar-se revoltada com ele por este ter abandonado o pai ainda em vida, limitando-se a enviar bens materiais. Os seus irmãos tentam defendê-lo das acusações de persona non grata. Sem sucesso. Jornada que nos lembra a sucessão de eventos similares aos do Meursault, na obra acima citada, de Camus. Enquanto Meursault enceta a amizade com um vizinho de práticas duvidosas, o nosso protagonista reencontra uma figura de longa data, Fred, um amigo seu. E é através deste que ele mergulha no passado através das diversas memórias. (p.16)
Homens entalados pela miséria, em fervorosa busca, ao ponto desta fazê-los ver na propaganda Messiânica, a candeia. Deus – Necessidade.
Continuando: O professor Carlos Sapato está na sala de aulas, num tom humorístico durante a aula de história. “– Parece que Deus decidiu trazer o dom da profecia para o Sul do Sahara – Disse Sapato” (p. 20)
Depois é traído por sua esposa e, ao meio dia, o homem está estatelado com um bilhete na mão: aos homens, não se pode confiar, até sempre! Assinado: Carlos Sapato. O narrador, no entanto, continua apático, lamentando apenas o facto de não ter tido um bilhete para acompanhar a morte do pai. A notícia espalha-se.
O sarcasmo em relação à presença de Adão e Eva (o casal que traíra o senhor Sapato), corre como locomotiva de ratos, a arfar no calor infernal, tornando-se paradoxalmente risível. Como o episódio em que se está perante Nicolau Maquiavel, aquando do retorno do protagonista à cidade de Maputo, num clube de diversão noturna. Com prostitutas e tudo. Fala da forca, o filósofo, atirando máximas ao ar, na rua de Bagamoyo. Ou quando uma mulher insinua o consumo do gonazololo (medicamento para endurecer o pénis) por Maquiavel.
Porém, a trama ramifica-se através da exploração da técnica de encaixe, revelando-se imprevisível, como é se pode notar no capítulo O Comboio dos Ratos. Sem ornamentos paisagísticos, ao passo que no capítulo Made In Namicopo, um cenário de rapto do protagonista é contornado pelo encanto dos criminosos, por este se revelar poeta. Os assassinos são produtores musicais, e, solto, vai dar ao estúdio, onde um grupo de dança encontra-se a ensaiar.
A formação de Jessemusse Cacinda, em Filosofia e Jornalismo, reflete-se subtilmente no seu labor literário, sobretudo através da corrida técnica de registo de impressões ou estímulos e o seu processamento. E foi provavelmente esta dança intrínseca que o permitiu ganhar duas distinções pela Rádio Moçambique, em 2012 nas categorias de Melhor Crónica e Melhor Reportagem Temática. As viagens do autor pelo continente africano e o seu interesse pelos movimentos revolucionários negros e as suas causas, como explorado nos trabalhos anteriores e inclusive nos desenvolvidos em parceria com o filósofo camaronês Achille Mbembe, acabam por abrir uma janela de possibilidades sobre a origem do título Kwasha Blues. Uma fusão antropológica entre os que ficaram e os que foram arrancados das suas terras como escravos. Oscilando entre a ficção narrativa e a prosa poetizada.
No texto Avião que roubou sonhos, Fred perde a única oportunidade que tinha de gravar um CD, por causa da filha que adoece na manhã da viagem. O avião a descolar e o mundo de Fred a implodir, com as suas referências congeladas na impotência escultórica: Charifo Victor Salimo, Rei Costa e Zena Bacar. Miragem. Estamos perante a atmosfera musical da cidade de Nampula, um regresso ao Kwashala enquanto género musical, que ecoou um pouco por toda a região norte de Moçambique e parte de província da Zambézia, sobretudo nos distritos de Gilé, Alto-Molocue, Gurué, Ile e Namarroi, através do cordão Emakhuwa, língua falada nestas regiões e partilhado por quase trinta por cento da população nacional.
Depois segue-se a cena da crua amputação da liberdade de existência e depois a de expressão, presentes no capítulo sete, descortinando o abismo em que o país se encontra. Trinta e três milhões de habitantes entregues à elite que privilegia os números e não as vidas. Escandalosamente polémica. Presa em gaiolas douradas, enquanto os porcos metaforicamente invocados pelo autor manifestam o seu desagrado face à retro-política, nas pútridas ruas, até serem soltos os cães de guerra, contra os porcos. Suínos que nos relembram O personagem Nero, da obra Bichos, de Miguel Torga. O artista plástico moçambicano e curador, Titos Pelembe, vai além batizando este fenómeno de Captura do Estado.
Há boémia em Maputo, no capítulo seguinte. E relatos de naufrágio: um barco de Atum devorado. Outro escândalo político. Palhotas precárias quase engolidas e vidas dependentes de ajuda de terceiros, como a do homem que manda um camião para evacuar as vítimas em Memba, na província de Nampula. Voltando ao personagem principal: antes do seu regresso de Nampula, torna-se agente artístico do seu amigo Fred, cuja família (esposa e filha) estimulam-no a ir atrás do seu sonho na capital do país, apadrinhado por ele. O protagonista enterra o pai. Fred abraça-o lamentando a ausência afetiva do personagem, com o pai em vida. Convida-o a perdoar-se pela birra que o colocara de costas viradas com o pai, pois, ninguém vence o sofrimento negando a sua existência, segundo Fred.
A ilustração de capa, da autoria de Ruben Zacarias, exalta a relação com o vazio, sem no entanto, torná-la melancólica nem saturada cromaticamente. Somos a partir daí, desafiados a ressignificá-la. Uma criação dual: Introspectiva e esperançosa.
Afinal, o que temos em mãos, uma novela ou livro de crónicas?, foi a questão levantado pelo professor e reitor Lourenço do Rosário, durante o lançamento do livro em Maputo.
Uma novela ficcional que se metamorfoseou em crónica ou um vazio escorrendo-nos pelas mãos da existência? Desafio que coloco ao caro leitor. E seguimos o eco da música, com a alma a mirar a vida através do retrovisor. Celebração.