O Humor, a Liberdade de Expressão e a Blackface entram num bar

Esta história que começo por vos contar não envolve blackface, e aconteceu comigo. Como é provável que (não) saibam, entre outras coisas sou humorista e escrevo sketches de humor para a televisão há uns vinte e poucos anos. 

Caso não haja verba também entro neles. Já fui um monge budista levado para uma marisqueira pelos Homens da Luta, um cavalo debaixo do meu falecido amigo Ricardo Peres (as duas coisas não estão ligadas, que eu saiba) e para o caso que aqui me traz, num sketch que escrevi chamado “Olimpíadas do Pai Natal”, onde o César Mourão e o Nelson Évora comentavam uns Jogos Olímpicos disputados por Pais Natal. 

A necessidade fez-nos pedir à produção dez figurantes que pudessem fazer de Pai Natal, eles sugeriram que eu fizesse um deles para poupar dinheiro, eu aceitei e, numa bela manhã de Dezembro, ou outro mês qualquer, nos balneários do Estádio 1º de Maio, em Lisboa, dez tipos começaram a vestir-se de Pai Natal. Era um grupo sui generis. O único gordo de barbas era eu, só havia uma pessoa com mais de 65 anos e mais de metade não sabia nadar, embora tivéssemos pedido especificamente à agência de figuração o contrário, pois tínhamos umas provas em piscina e não queríamos que morressem pessoas na gravação de um sketch.

Sentado ao meu lado estava um figurante que era enorme, um metro e noventa de músculos e atleticismo, muito simpático, por sinal. E negro.

Acabámos por ficar os dois sozinhos e ele, sabendo que eu era o guionista, disse-me algo que nunca mais esqueci: “Muito obrigado pela oportunidade, é a primeira vez que me escolhem para fazer de Pai Natal”. “A sério?” respondi eu, olhando para o metro e noventa e imponente caparro daquele homem que me dizia aquilo sem ponta de ironia aparente, tentando não me rir muito.

Blackface, de Marco Mendonça @ Diana TinocoBlackface, de Marco Mendonça @ Diana Tinoco

 

Pai Natal black

Durante muito tempo contei esta história como se fosse hilariante. Depois pus-me a pensar no assunto, também por causa das questões de identidade e representação que são cada vez, e ainda bem, mais discutidas/implementadas/polemizadas, às vezes da melhor maneira, maioritariamente nem por isso, por exemplo como na tragicómica indignação em certos círculos por a versão live-action da Pequena Sereia ter uma actriz negra a fazer o papel principal, ou a abjecta perseguição pelo Grupo 1143 da escritora Mariana Jones, por causa do livro O Pedro Gosta do Afonso.

E isso fez-me perguntar-me primeiro, porque é que o meu figurante não podia ser o Pai Natal?

Porque o Pai Natal é um velho gordo e branco, da Lapónia e vive no Polo Norte.

Só que não. Esse Pai Natal é uma personagem fictícia. O Santo Nicolau, uma das suas inspirações, era de uma região que actualmente faz parte da Turquia, no século IV. Foi a versão holandesa da lenda desse santo que foi levada para os EUA, mais precisamente para Nova Amesterdão, mais tarde, com a ocupação inglesa, Nova Iorque. 

Como é consabido, o que se passa em Nova Iorque influi o mundo inteiro, mas as representações gráficas do Pai Natal como o reconhecemos, começam em ilustrações de revistas, como a Harper’s Weekly, no século XIX e viria a ser definitivamente estabelecida pela publicidade da Coca-Cola, no século XX. 

Para sermos simpáticos a ideia corrente de como é o Pai Natal é uma tradição recente.

O meu ponto é que não há nenhuma razão para, sendo o Pai Natal uma personagem, não poder ser o meu colega figurante a fazê-lo. Mais, enquanto sketch, provavelmente é a opção mais engraçada, porque surpreendente. Porquê? Porque não estamos habituados a ver Pais Natal negros.

“Mas não é credível…” Meus caros, a partir do momento em que é suposto acreditarmos que as renas voam e que à meia-noite ele visita todos os meninos bem-comportados para lhes dar os presentes pedidos por carta, se calhar não nos focávamos tanto na cor do Pai Natal como sendo o maior óbice ao realismo da lenda.

 

Poucos atores negros na ficção

Isso remete-me para outra questão num país em que a simples formulação da questão “Portugal é um país racista?” é incendiária: porque vemos tão poucos negros em projectos de ficção audiovisual ou até da ficção, ponto? Há várias razões certamente, algumas são usadas também na questão da blackface que abordarei mais à frente, mas há uma muito prática, uma questão que o espectáculo Aurora Negra, encenado por Cleo Tavares, Isabél Zuaa, Nádia Yracema no Teatro Nacional D. Maria II, abordava de forma notável: Não estamos habituados a ver corpos negros associados a determinadas profissões/ocupações. Logo, não estamos habituados a ver corpos negros em determinadas personagens. Na peça, há um casting, a actriz que faz de actriz tem um monólogo shakespeariano para apresentar, a “directora de casting (uma voz off na escuridão da sala) espanta-se por ela não querer apresentar algo “africano” ou “étnico”, mais tarde sugerirá que faça uma dança africana. “Qual dança, de que país, de que etnia? Pergunta a actriz”.

O que a peça revela, denuncia, é que mesmo em actividades supostamente liberais, no sentido norte-americano do termo, progressistas, muitas vezes conotadas com a esquerda, a nossa paleta visual de representação não acompanhou os tempos. 

Melhor exemplo do que Aurora Negra, a peça, ser, em 2020, a primeira peça da história do nosso TNDMII , escrita dirigida e protagonizada por mulheres negras seria difícil de encontrar. 

Um efeito prático da “invisibilidade dos corpos negros nas artes performativas” é o seguinte: eu escrevo num guião que Maria é médica. A produção faz um casting para essa personagem. Há uma esmagadora probabilidade das actrizes convidadas, sugeridas, mandadas pelas agências, serem brancas. Ao invés, se eu escrever que Maria é empregada a dias de limpeza num supermercado, o mais provável é que a percentagem de actrizes negras, ou racializadas seja muito superior.

Isto é explicável por um duplo preconceito: o primeiro é só indirecta e involuntariamente, espera-se, pérfido: A verdade é que os castings têm sempre uma espécie de viés, consciente ou não, para a escolha das pessoas “certas”. Como guionista, sei que, se não pedir características específicas, há uma enorme probabilidade de aparecer o que o director do casting presumir que eu quero e/ou der menos trabalho. E é aqui que medra a segunda parte do duplo preconceito e que desemboca no racismo estrutural e interiorizado não como tal: há tipos de pessoas que, na nossa cabeça, encaixam melhor em determinadas profissões. Estereótipos.

Ora como bem explica Chimamanda Ngozi Adichie, um estereótipo pode não ser sempre mentira, mas será sempre incompleto, por fazer com que uma história se torne a única história.

Como solucionar isto? 

Em primeiro lugar, reconhecermos que o problema existe.

Depois, perceber que o sonho, mesmo que aparentemente limitado no nosso mainstream persiste. A cultura é global, o acesso também. Como Marco Mendonça, autor do monólogo Blackface me disse ”não precisei de ver homens negros nos écrans de séries ou novelas portuguesas, para sonhar ser actor, cresci a ver o Samuel L. Jackson”.

Pessoas como, entre outros, Marco Mendonça, Cléo Tavares, Nádia Yracema, ou Isabél Zuaa, são exemplo desse inconformismo e essa resistência, esse combate a uma história única: escrevem, dirigem, protagonizam, produzem, numa palavra, criam as próprias histórias. Dão-lhes corpo, carne, alma, cor.

Mas por cada uma destas pessoas notáveis, quantos talentos e histórias não ficaram pelo caminho? Dir-me-ão: é sempre assim. Mas não tem de ser e não nos podemos conformar com isso. 

Com a tal única história. 

Há que acolher, programar, produzir. Dar espaço até para falhar. Há que tornar estas vozes e a sua presença, normalidade. Há que ajudar as comunidades, as redes de interajuda e colaboração criativa que vão surgindo por necessidade do trabalho destes criadores.

E há outra coisa que podemos fazer, aqueles que, como eu, de vez em quando se encontra em posição para tanto: se queremos ser inclusivos mas também se queremos escrever melhor, uma autêntica la palissada para que a nossa ficção esteja mais próxima da realidade e até de uma realidade aspiracional futura, coisa essa que passei a praticar sempre que tenho autonomia para tanto: escrever, por exemplo: Maria, negra, médica. 

Não quero com isto dizer que uma simples caracterização de personagem feita assim não venha a ser confrontada com uma interrogação “tem mesmo de ser negra?” e que só em casos muito raros cá no burgo, a versão “tem mesmo de ser branca?” se eu escrevesse, “Maria, branca, médica” seria possível.

Aqui eu podia dizer que tudo leva tempo. Que há não muitos anos a pergunta seria: “tem mesmo de ser mulher?” 

Há pois que ter paciência.

É aliás uma coisa que se pede muito aos excluídos: Paciência. Roma, Pavia e pivots negros de telejornal em Portugal não se fizeram num dia, muito menos protagonistas de séries, novelas, filmes, sketches, programas de comédia. Ou guionistas.

Além de paciência exige-se persistência conformidade às normas e resistência, a haver, pacífica e de boa cara. Têm de pensar na nossa sensibilidade, um ponto sensível. Nós não fazemos por mal, é só uma piada, nem sequer achámos que havia algum mal, as coisas sempre foram assim, e o tempo tem o condão de fazer do privilégio norma e, portanto, direito, aliás direito humano. Porque é que eu hei de mudar, se o meu modo de fazer correu sempre bem, se funciona? E se funciona, para quê mudar, sobretudo, para quê coartar a liberdade que sempre tive e que custou tanto aos meus heróicos antepassados conquistar?   

Contra mim me viro: não tenham paciência. Sejam incómodos, disruptivos, levantem um espelho à frente da indústria. Apelem ao coração desta: além de tudo é bom negócio.

Tudo isto de que vos falo seria muito mais evidente, mais cedo, para mim, pelo menos, caso eu não fosse, branco, homem, cisgénero. O lado perverso do aforismo “escreve sobre aquilo que conheces” (na verdade, aquilo que tu achas que conheces) é que isso estreita muito as possibilidades da nossa imaginação superficial. Há que cavar, portanto.

O crermos em histórias únicas, que reduzem tudo a estereótipos é prático, eficaz e, portanto, muito usado no humor, que vive muito da surpresa, por um lado e da rapidez e compreensão do contexto pelo público, por outro.

Todas as anedotas de alentejanos presumem que o público que as ouve compreenda os termos do estereótipo. Esse consenso é a base a partir da qual o edifício da anedota é construído.

Outro aforismo amplamente reconhecido é que a história é contada pelos vencedores.

Essa história torna-se única e é uma história de dominação.

Voltando a um exemplo anterior: Portugal não é racista. Foi assim que fomos educados. É ofensivo, aliás, ouvir o contrário. Claramente é um erro de interpretação, uma ignorância histórica e uma falha de gratidão dos acusadores que, se estão mal não se deviam ter mudado para ou nascido cá, graças a uma artimanha dos pais. Têm que se adaptar, sobretudo têm de aprender a lidar. Lidar é bom, enrijece as pessoas, faz com que elas superem e se superem.

Já lidar, mudar, ceder um milímetro, quando é connosco, ui, nem pensar. É uma coisa terrível, uma verdadeira slippery slope, uma rampa inclinada e escorregadia. Provavelmente coberta de sebo.

 

Liberdade de expressão e limites do humor

E se há discussão em que esta metáfora é amplamente utilizada, ou mesmo justificada é a propósito do debate em torno da liberdade de expressão e mais restritamente, dos famigerados limites do humor.

Se há debate que normalmente cansa a beleza dos humoristas, eu incluído, é este. A única coisa de que tenho a certeza é que para a esmagadora maioria das pessoas, para não dizer todas, a liberdade de expressão deve ser absoluta quando alguém diz ou escreve alguma coisa com que elas concordam. Ao invés, nada do que é dito ou escrito contra as coisas que tenho como sagradas deve ser permitido.

O corolário humorístico desta teoria é que podes fazer humor com tudo aquilo com que eu acho que se pode fazer humor e nunca sobre o resto.

Ou, para ser vernacular, pimenta no cu dos outros é refresco para mim.  

A verdade é que a discussão se repete, circular e infindavelmente, sem grande esperança de ser resolvida. E não vai ser aqui. 

E ainda bem, mas já lá vou.

Um dos últimos debates cá no burgo veio a propósito do uso de blackface na comédia em Portugal.

 

O que é o blackface?

A minha resposta podia fazer disto um debate entre dois humoristas brancos e portugueses de meia idade e graus de sucesso grandemente díspares, algo que é simultaneamente involuntariamente cómico e, sobretudo, o habitual, mas num raro momento de lucidez, fui pesquisar.

Como podemos ler num artigo publicado pelo National Museum of African American History and Culture, o blackface é a caricatura da aparência, linguagem, danças, comportamentos e carácter dos negros e é usada para estabelecer, por contraste, o que é ser branco.

O blackface surge em Nova Iorque, cerca de 1830. Os actores, sobretudo, mas não exclusivamente, brancos, usavam como caracterização graxa, ou rolhas queimadas, bem como roupas demasiado grandes, ou estragadas, supostamente imitando os escravos das plantações do Sul.

Nestes espectáculos, os negros eram caracterizados como sendo preguiçosos, ignorantes, supersticiosos, hipersexualizados, dados a roubos e a serem cobardes (soa familiar, não é?).

Para quem é que isto era representado, o público alvo? Brancos pobres. Pessoas a quem eram vendidas duas ideias: apesar de tudo faziam parte da maioria no poder e eram superiores aos culpados de todos os seus problemas (também soa familiar, não é?)

A sua branquitude era usada como sendo transversal a classes sociais, era aquilo que tinham em comum com a casta dominante aquilo que os separava dos outros. 

O estereótipo, como vimos antes, simplifica, caricaturiza, facilita a construção do contexto da piada.

É por isso que o blackface não pode, nem consegue, dissociar-se do racismo que lhe é subjacente.

Racismo que, como Ta-Nehesi Coates defende, não é tanto filho da Raça, mas sim seu pai (Entre mim e o mundo, 2016). A construção do que é uma raça, um povo a quem são atribuídas determinadas características tem pouco a ver com o seu valor intrínseco, e muito a ver com o convencer das pessoas duma pretensa unidade que isso lhes confere e o correspondente estabelecimento de uma hierarquia, poder, lugar no mundo.

 

O humor é também uma arma. 

O humor é também uma arma. Arma que não é exclusiva dos que estão por baixo, embora muitas vezes seja a única que lhes é possível usar, ou lhes é oferecida e permitida como válvula de escape. O humor pode ser também uma arma de opressão e repressão. Era assim nos EUA em 1830, como hoje o pode ser também. E é.

1830. É por essa altura que uma personagem, Jim Crow, criada por Thomas Darthmouth Rice, se torna extremamente popular.

O que é que isso interessa? 

Depois da Guerra Civil americana, os estados do Sul, apesar de derrotados, continuaram, durante quase cem anos a legislar a nível local a implementação de um apartheid entre a comunidade branca e a negra que, ainda hoje, apesar dos progressos obtidos na luta e sacrifícios do Movimento das Liberdade Civis, liderado, entre outros por Martin Luther King, continua a criar divisões profundas e talvez insanáveis.

O nome das leis? “Jim Crow laws”. As Leis de Jim Crow. As leis aplicáveis a Jim Crow.

Ai, mas era só uma piada.

A influência da blackface na cultura americana é tudo menos despicienda. Não só foi praticada por alguns dos seus artistas mais célebres, até enquanto crianças como por exemplo Shirley Temple, Mickey Rooney e Judy Garland, Bing Crosby ou Fred Astaire como esteve presente em marcos culturais inescapáveis, por exemplo o primeiro filme sonoro The Jazz Singer, com Al Jolson, já para não falar, falando do épico cinematográfico de Griffith, Birth of a Nation que, não sendo humorístico, fez mais pelo reavivar do Klu Klux Klan que milhares de discursos inflamados.

Ainda hoje em dia, e suponho que com um recrudescimento nos últimos anos, o blackface continua a ocorrer na cultura americana, mesmo quando violentamente criticado.

O que é que isso nos interessa? Seria de facto muito interessante que a única coisa que a nossa cultura e a do ocidente em geral não fosse permeável à cultura americana fosse o blackface. Não temos tanta sorte. 

 

Blackface em Portugal 

Até porque, como Marco Mendonça explora no seu espectáculo homónimo, o blackface não é de todo, um fenómeno americano, basta recordar, por exemplo que no teatro shakespeariano não faltam personagens incluindo protagonistas, como Otelo, por exemplo, cuja compleição “obrigava” ao exercício do blackface.

As raízes do teatro e do entretenimento americano estão obviamente na europa nomeadamente na influência inglesa e claro no vaudeville francês, matriz do género de comédia musical e revista onde os “minestrels”, espectáculos onde se praticava o blackface estão inseridos. 

Desenvolvendo aquilo que Marco Mendonça denomina como “teoria de conspiração”, no seu espectáculo, ele relembra que, muito antes do fenómeno americano ter surgido, em Portugal, sobretudo na zona de Lisboa, existiam grupos de antigos escravos, alforriados, que cantavam e dançavam, agradecendo a sua alforria e que a popularidade desses espectáculos levara a que, em regiões do país em que a população negra era escassa, tivesse surgido uma espécie de blackface à portuguesa, o que explicaria por exemplo tradições como o só muito recentemente cancelado (em 2022), Baile dos Pretos em Penafiel.

Uma pena, segundo o edil da câmara, que os pruridos e o politicamente correcto tivessem acabado com a possibilidade de ver brancos de cara pintada de negro a cantarem alegremente: 

“O Preto é o rei dos matos / Imperador de macacos / Não posso levar avante / Pretinho andar de Sapatos / Trabalhai Pretos cachorros / Trabalhai com devoção / Já que el-rei vos deixou forros / Ide-lhe beijar na mão”.

Há de facto pessoas muito susceptíveis.

Pondo de lado, por modéstia, que o blackface tivesse sido inspirado por nós, cinjamo-nos ao entendimento clássico sobre o mesmo, enquanto fenómeno cultural tipicamente norte-americano importado por nós, como resultado da expansão pós-guerra da hegemonia cultural americana, também no domínio da comédia. 

O blackface em Portugal era/é justificado por várias razões: 

1) Os actores têm o direito de representar seja o que for. Os guionistas de escrever o que quiserem e por aí fora.

2) Não há actores negros suficientes. 

3) Não há verdadeiro blackface em Portugal. É só humor e estamos a rir com eles e não deles. 

4) É a importação de uma guerra cultural americana sem expressão cá, até há pouco tempo.

Vamos a cada um destes pontos em desordem, porque eu sou muito maluco e porque há coisas mais fáceis de explicar que outras.

Comecemos pelo ponto 2. É verdade que há poucos actores negros em Portugal. Há muitas razões para isso, mas uma aflorei acima e é puramente capitalista: se não há procura, não haverá oferta abundante. E se a maioria também ficar com as personagens que representam minorias, esse ciclo vicioso perpetuar-se-á. Logo é uma má razão. Parafraseando um famoso filme, se escreveres personagens para esses actores, eles surgirão. O passo seguinte é normalizar que façam todo o tipo de papéis. Porque há médicos negros, deficientes, de origem chinesa, e por aí fora (suponho que isto não seja grande novidade para os leitores).

Passemos ao ponto 4: A polémica sobre o blackface é woke e uma mera importação de guerras culturais americanas para o nosso burgo, uma inutilidade, portanto. 

Há um lado muito engraçado neste argumento, que desemboca claramente na ordinarice que escrevi antes sobre o uso de pimenta em determinados orifícios: é que pelos vistos há polémicas que se importam com alegria, por exemplo e com grandes zénites de disparate as sobre o “wokismo”, politicamente correcto, cancelamento, etc. mas nem sequer quero agora entrar nessa noite escura.

Fico apenas por uma polémica (já agora, um dia hei de perceber porque chamamos polémica a uma discussão entre a realidade e um disparate cabeludo, mas adiante) bem mais prosaica e recente, à cerca de gatos extremamente nutritivos e os haitianos que algures nos EUA se dedicavam a degustá-los, os bárbaros. Em Portugal, um nada imaginativo deputado, decidiu fazer copy paste desta polémica, num país em que comer gatos até deu origem a um ditado popular. Adiante.

Seguramente por falta de haitianos aqui no burgo (há pechas que nem a imigração ilegal nem o Turismo de Portugal resolvem), suponho, o deputado do Chega substituiu-os por outras minorias. Confrontado com o facto de quer a polémica original quer a sua cópia não serem genuínas, fez o habitual, dobrou a mentira. Como lá, nos EUA. 

A razão 4 tem, no entanto, menos piada, quando tem por fundo uma espécie de excepcionalismo luso que, como a esmagadora maioria dos excepcionalismos, é falso: o de não sermos racistas enquanto país, e ainda menos enquanto indivíduos. 

Se não somos racistas, o nosso blackface nunca seria o blackface americano, logo não seria racista, por definição.

Quem decide se somos ou não racistas, ou se tivemos uma atitude racista? Nós. Os que estão a exercer a atitude. A maioria étnica. De um país colonizador. O que é que pode correr mal num juízo em causa própria?

 

Eles e Nós 

Isto entronca na razão número 3, aliás utilizada, amiúde: estamos só a brincar e com eles, não à cerca deles. Mas “eles”, ainda assim. O chamado gato escondido de rabo de fora, razão pela qual é mais fácil ser apanhado pelos haitianos. 

Eu sei que isto surpreenderá o total de zero pessoas, mas a nossa razão 3 é, curiosamente, a justificação que é dada nos EUA sempre que se levanta um caso destes.

Longe de mim, no entanto, retirar a intenção enquanto componente importante, até fundamental, do que é o Humor e do que é a sua interpretação. Recordo apenas outro aforismo, aquele que nos indica um lugar aonde costumam ir parar inúmeras boas intenções.

Dave Chapelle famosamente cancelou o seu próprio programa no Comedy Channel, no qual, entre outras coisas e pessoas, caricaturava negros americanos, ao perceber que parte da sua audiência, parte da razão do seu sucesso e dos chorudos 50 milhões de dólares que o canal lhe oferecia para continuar, não estavam a rir com ele, mas dele.

Seria demasiado ingénuo da minha parte assumir que qualquer humorista em qualquer lugar e também aqui, não faz um cálculo sobre quem é a sua audiência, qual é o caminho mais eficaz para o sucesso da sua comédia. Há quem opte por não ser “político”, há quem faça humor misógino, por achar que isso agradará ao público de comédia, muitas vezes composto por homens novos com a pituitária aos saltos, como haverá quem aposte numa comédia que agradará especificamente em determinados nichos.

E se este cálculo pode resultar em audácia ou provocação artística, pois há quem vá contra o que o público, o seu público espera, numa tentativa de crescer criativa e pessoalmente, a maior parte das vezes pode resultar no sentido inverso, uma espécie de deriva e afunilamento do comediante e do seu material, em direcção ao que o humorista pensa ser o seu público–alvo. 

Os resultados são diversos, mas é perturbador ver como a descoberta de filões de público dispostos a rir de uma determinada minoria, por exemplo, a comunidade trans, leva a que muito boa gente siga por esse rabbit hole, genuinamente ou não convencidos que estão a lutar pela liberdade de expressão enquanto voluntariamente ou não contribuem para a disseminação de preconceitos, discriminação e até violência sobre os seus alvos.

Embora a maior parte das vezes estejam apenas a lutar pela vidinha, os humoristas, como os políticos, por exemplo (estes com um grau de responsabilidade maior, mas raramente exigido com o mesmo vigor, diga-se), contribuem com a sua oratória, rapidamente difundida por meios tradicionais e por redes sociais e seus algoritmos, para a criação de um clima, on-line, mas não só, insuportável.

Os exemplos de humoristas que entraram por este rabbit hole sucedem-se, mas talvez nenhum seja tão claro como a espantosa conversão ao catolicismo, ultra-conservadorismo de direita conspiracionista de Russell Brand, que curiosamente surgiu quando se iniciaram as alegações sobre supostos incidentes de abusos sexuais cometidos por ele, até então tido como o expoente máximo de um humor hedonista e sexualizado.

A primeira razão invocada na defesa do uso de blackface é, a meu ver, a mais delicada: Até que ponto se pode ou deve limitar a criação artística? Até que ponto essa liberdade se deve impôr ao direito de nos vermos representados, em palco, na tv, no cinema, onde for?

A liberdade de expressão deve ser absoluta?

Qualquer limite a essa liberdade constitui censura?

 

Há um direito à ofensa?

Não deixa de ser estranho que quem invoca tanto haver dois lados para tudo, abra aqui a excepção, quer para um lado quer para o outro. 

Se o meu primeiro instinto enquanto criador, a minha posição de partida pende para o afirmar desse direito à liberdade de expressão, enquanto alfa e ómega da questão, a verdade é que aqui, como em quase tudo na vida, há direitos concorrentes, às vezes opostos. 

E que isso causa tensão, nem sempre resolúvel entre esses vários direitos. Nem sempre é fácil distinguir um humor vigoroso, agressivo, negro até, mas legítimo de um mero discurso de ódio. Há que procurar equilíbrios, perceber em que circunstâncias uns direitos se sobrepõem aos outros. Mas essa coisa que parece assustadora é a raiz de toda a convivência civilizada. 

Uma coisa não é grande solução, irredutibilidades cegas. Exageros heróicos. 

Até Seinfeld reconheceu há escassos dias, numa entrevista à Vanity Fair, que exagerara ao dizer que o politicamente correcto das Universidades Americanas, tinha morto a comédia. Não “há só algumas palavras que deixámos de poder utilizar sobre determinados grupos”.  

Dizermos que nunca foi tão difícil escrever ou fazer comédia em Portugal, como agora, é um insulto. Já nem digo em relação aos Gil Vicentes da vida, que tinham de se preocupar se alguém da Inquisição ou apenas da corte se tinha ofendido, ou aos Bocages desbocados, no tempo em que as coisas se resolviam a tiros de pistola, no Nicola ou não. Basta recuarmos ao que sucedia antes do 25 de Abril de 1974, em que um cancelamento significava bem mais do que deixar de trabalhar: podia querer dizer prisão, exílio, tortura, até morte. Literalmente podia querer dizer que as frases a que o humorista dedicara enorme parte do seu tempo a burilar seriam rasuradas, truncadas, proibidas, até o conjunto da obra não fazer nexo. 

“Ai mas isso foi em ditadura”. É verdade, mas o maior de nós todos, Herman José, que este ano completa, tal como a democracia, 50 anos de carreira, foi realmente cancelado, com o programa suspenso, numa altura em que só havia uma empresa de televisão a operar em Portugal e a censura sobre ele foi reclamada pelo líder partidário que ainda há meses o consagrou via condecoração, agora enquanto presidente da república. 

Progredimos, pelos vistos e não faz sentido recuarmos. 

Isso não significa que não haja preços a pagar. Seria cego e estúpido pensar isso.

Escrever anos a fio sátira política e social como o João Quadros, por exemplo cria inimigos e dissabores. Conciliar trabalhar com anunciantes que são grandes corporações e canais generalistas, sem comprometer princípios e sem ceder a uma incapacitante autocensura não é seguramente simples e sem sacrifícios. Ganhar e perder patrocínios consoante o que se pensa será sempre uma das regras do jogo. Ter acesso a determinados corredores de poder e manter a piada, ser um denominador comum sem deixar de amolar o estilete não é para todos.

O próprio Herman José explicou que é muito mais difícil fazer humor sobre alguém que conhecemos. Passamos a importarmo-nos com o que elas sentem e com o que acham de nós. Encontramo-nos e somos confrontados por essas pessoas.

 

A liberdade da crítica 

O outro lado disto é que é muito mais difícil escrever ou fazer humor sem ser sobre, ou fazendo uso de caricaturas. Exige muito mais esforço, talento e, pasme-se, empatia. Exige também coragem, o assumir do risco e do embate da reacção. A liberdade de fazer humor não impede a correlativa liberdade dos outros de não gostarem/criticarem.

Escudarmo-nos num absolutismo, aliás hipócrita e falso de defesa da liberdade de expressão, defendermos que nada, mas mesmo nada de nada pode fazer com que alteremos o que fazemos não é construtivo. Ou sério. Adia conversas que temos de ter.

Os limites do humor estão em permanente expansão, constrição e discussão. E por muito que isso seja chato, seja para veteranos como eu, com pouca paciência para novidades, seja para velhos enquistados, ou jovens com tempo a mais e vida a menos ou o contrário, é bom que assim seja. O humor faz parte do discurso e o discurso faz parte dos tempos. Muda. Aliás muda tudo, muitas vezes para tudo ficar na mesma.

Esta discussão, portanto, não tem fim. Lamento, só que não. Significava que tínhamos chegado ao fim de tudo. E isso não era bom sinal. 

Não é das coisas mais imbecis ir aprendendo coisas, pôr a nossa perspectiva em cheque e à prova, aceitar que se calhar as coisas são diferentes. Educarmo-nos. Deixar que nos eduquem se for caso disso. Melhorar.

Por exemplo, isso poupava-nos de pensar na existência de um racismo inverso. Ou de que a prática de whiteface por comediantes negros é um exemplo disso.

Não é. O racismo não é apenas o não gostar de pessoas de tom de pele ou tipo de cabelo diferentes. É muito mais, mas é fundamentalmente um sistema de opressão, de poder exercido, explícita ou implicitamente durante anos, séculos até, pela força, pela economia, pelas instituições, algumas delas criadas especificamente para o impor. Algo que é de tal maneira interiorizado, enraizado, que muitas vezes nem é sentido pelos que beneficiam dele enquanto privilégio.

Citando o comediante Aamer Rahman, para existir esse racismo inverso era preciso uma máquina do tempo, que permitisse regressar a uma época em que ele pudesse convencer os países americanos, africanos, do médio oriente e oriente a invadirem a europa, colonizarem e escravizarem os povos europeus, esgotar os recursos e roubar-lhes a terra, exportá-los via esclavagismo para trabalharem para os países colonizadores, convencê-los a quererem ser como os opressores, de tempos a tempos bombardeá-los até regressarem à idade da pedra, porque a cultura deles é inferior e são selvagens, fazê-los sentir que não se adequam aos padrões de beleza dominantes, etc. e fazer isto tudo durante séculos, então fazer uma piada sobre um branco não saber dançar seria racismo inverso.

E se é verdade que Chapelle, Pryor, Eddie Murphy, Key & Peele usaram o “whiteface” foi sobretudo num contexto e intenção de exposição da diferença de tratamento em desfavor dos negros americanos. Murphy por exemplo, tem um famoso sketch no SNL em que a personagem é um repórter negro que se caracteriza de branco para saber como essa comunidade é tratada. Pryor faz uma sátira ao Too kill a mocking bird, sendo ele o advogado racista branco.

Haverá excepções a esta regra? É possível. Apesar da controvérsia em seu redor, a actuação de Robert Downey Jr. em Tropic Thunder, continua, a meu ver a ser válida, por ser uma caricatura aos actores fanáticos do “Método” e uma crítica ao blackface em si, ridicularizando a personagem que o usa. 

A segunda dói mais. A assunção do erro, mesmo não intencional, ou até mínimo, quando existe e, por maioria de razão os erros grosseiros, é o princípio de qualquer conversa que se creia profícua sobre o humor que tenha por alvos os que, por várias razões, são mais vulneráveis.

É o princípio da aprendizagem também. Como o Marco na conversa que tivemos sugeriu, o não nos pormos de fora, o não exibirmos uma pretensa superioridade olímpica sobre todas as coisas é o que torna possível o diálogo, o crescimento e até a reconciliação. 

Se procurarem há um sketch que escrevi há muitos anos em que um dos actores estava em blackface, os outros eram todos negros. 

Podia esconder-me atrás de não fazer castings, mas isso seria tão pusilânime como dizer que se tivesse sido confrontado com isso na altura, não usaria uma ou as quatro razões que mencionei para justificar o blackface. Ou simplesmente nem pensei nisso enquanto o escrevi. Pensei só na quanta piada aquilo teria. Mas lá está. Estou mais velho, vi mais coisas, aprendi outras. Mudei.

Ainda bem.

O Humor, a Liberdade de Expressão e o blackface entram num bar, se passado um bocado o Humor e a Liberdade de Expressão não tiverem saído, é porque são blackface. 

 

PS: A conversa que tive com o Marco Mendonça deu-se nos dias que se seguiram a Odair Moniz ter sido morto a tiro por um agente da PSP. Sem entrar no caso em si, porque não é o objecto deste artigo, queria só dizer que basta ler certos comentários e ver a actuação e a retórica de demasiadas pessoas, algumas deputadas, que saudaram a morte de um ser humano é talvez o maior alerta para a necessidade de examinarmos bem e iluminados pela empatia a linguagem e as criações e promoções de estereótipos de modo a evitar que se tornem armas de agressão aos mais vulneráveis e contribuírem para a aceitação dessa violência pelos que não são dela alvos principais.

Agradecimentos: Marco Mendonça e Maria Tsukamoto.

por Pedro Goulão
A ler | 25 Outubro 2024 | blackface, humor, liberdade de expressão, Ta-Nehesi Coates