Os estranhos frutos de "As Árvores"
Uma Breve Sinopse
As Árvores, de Percival Everett, chegou-me às mãos via José Lima, meu querido amigo, brilhante tradutor e pessoa e tudo e tudo.
A acção do livro é contemporânea ou quase, decorrendo durante o primeiro, e implora-se que último, mandato do Trump, enquanto presidente dos EUA.
Em Money, no Mississipi começam a aparecer homens brancos linchados, acompanhados do cadáver de um homem negro, extremamente parecido com Emmett Till, que lhe segura os testículos arrancados. Não é apenas a extrema violência que marca os crimes. O homem negro, visível e comprovadamente morto, tende a desaparecer de uma cena do crime e a aparecer noutra.
A incapacidade da polícia local em deslindar os crimes leva a que sejam destacados dois detectives negros do MBI (Mississipi Bureau of Investigation) para tentarem descobrir o que se passa em Money.
À medida que a acção vai decorrendo, nós e os detectives vamos descobrindo que estamos envolvidos em algo de muito mais complexo, profundo, vital.
Os acontecimentos de Money começam a eclodir um pouco por todos os EUA. Uma mulher, centenária, testemunha ocular de alguns linchamentos, dedica a sua vida ao registo de todas as vítimas e dos culpados e das suas famílias. Todo o aparelho repressivo dos EUA é mobilizado.
As Árvores consegue ser muitas coisas ao mesmo tempo: um policial noir com a típica dupla de detectives cínicos, envolvidos num caso muito acima das suas capacidades e poder, mas determinados a ir até ao fim, um libelo contra séculos de discriminação social, um chamado à revolta, uma comédia negra de terror, um retrato histórico e etnográfico do Sul, e dos EUA em geral.
A inspiração de As Árvores
É um ajuste de contas com a História e com o Presente. Relata esse ajuste de contas. Para entendermos o contexto do livro, o que o enforma, é preciso recordar o acontecimento real que o inspirou e está no centro da narrativa: o martírio de Emmet Till.
Emmet Till, oriundo de Chicago, foi assassinado em Agosto de 1955, em Montgomery, Mississipi, onde estava a visitar a tia. Tinha 14 anos e fora falsamente acusado de importunar uma rapariga branca. Sequestrado, torturado e assassinado pela família, o seu corpo foi atirado ao rio Tallahatchie, com um pesado objecto em ferro, preso ao pescoço de Till com arame farpado.
Quase cem anos depois da guerra da Secessão, o assassinato de Till, a sua violência tão incompreensível como longe de ser inédita, tão brutal, como enraizada nas práticas da comunidade branca do Mississipi, teve o efeito contrário ao pretendido pelos algozes: Till tornou-se um mártir, o julgamento, que inocentou todos os seus assassinos, transformou-se num símbolo maior da injustiça perpetrada sobre as comunidades afro-americanas e deu um impulso decisivo ao movimento dos direitos civis.
Para isso contribuiu decisivamente a coragem da mãe de Till. Quando o corpo dele lhe foi enviado, com ordens expressas para que o funeral fosse feito em caixão fechado, ela recusou-se a aceitar que assim fosse.
O rosto de um menino de 14 anos, com um olho desfeito, quase sem dentes, nariz esmagado e um buraco de bala na testa, o seu corpo mutilado, testemunhado pelos milhares que compareceram ao seu velório e as imagens dele que correram mundo, fizeram com que Till não se tornasse apenas mais um número de estatística, uma abstração.
O Horror estava ali, em frente de todos, não podia continuar a ser ignorado.
Daí o profundo impacto cultural do assassinato de Till, de que a canção Strange Fruits, cantada por Billie Holliday, ou a Balada de Emmet Till, de Bob Dylan, sendo que a canção se constitui uma das inspirações directas para o livro As Árvores e o seu título.
Não subestimemos a importância de uma canção como a de Billie Holiday, a denúncia bela, terrível e comovente da letra, a convicção e justa revolta contida na sua voz. Ela representa um povo inteiro e uma tragédia tão desoladora como a dor acumulada de séculos de submissão, violência e repressão que, apenas na teoria, haviam terminado.
As Árvores em contexto e contraste com a cultura dominante nos EUA
A verdade é que, durante décadas, o caldo cultural americano em relação ao período da guerra civil e da escravatura, criara em torno desse período uma mitologia redentora do mesmo.
O cinema, talvez a forma mais impactante de expansão cultural americana, fê-lo desde o início: o seu primeiro êxito colossal foi o Nascimento da Nação, por Griffitth, um épico cinematograficamente brilhante, sem dúvida, mas cujo conteúdo era profunda e abertamente racista. O retrato do pós-guerra civil e a reinvenção dos cavaleiros do Klu Klux Klan, como paladinos da justiça e da liberdade, defensores da virtude das mulheres brancas do Sul, a apologia dos linchamentos, o retrato que fazia dos negros, violentos e, sobretudo, animalescos, teve o condão de fazer renascer o Klan nos EUA e dar novo fôlego às políticas de segregação racial dos Estados do Sul, as famigeradas leis de Jim Crow.
Mais subtilmente que o filme de Griffith ou, às vezes, nem por isso, a esmagadora maioria dos westerns até ao final dos anos 50 tinham como heróis homens brancos, quase todos eles derrotados da guerra Civil, que se reinventavam nas novas fronteiras, faziam e impunham as suas leis, longe da influência habitualmente maléfica da União.
Noutros, como o E Tudo o Vento Levou, fazia-se o retrato de um Sul idílico, glamouroso, pleno de harmonia, destroçado pelo Norte, industrializado, rico, sem respeito pelas tradições. Nele, os negros são tratados como dóceis, infantilizados, dependentes dos seus amos, fiéis aos mesmos. No que nos é dado a ver, é como se a escravatura fosse consensual e necessária, e a barbárie da guerra civil, de que a cena do incêndio de Atlanta é o maior exemplo, de única e exclusiva responsabilidade da União.
Quando no final dos anos 50 e durante a década de 60 esta mundividência começou a ser abertamente posta em causa, se é certo que foi dada uma dignidade aos afro-americanos, antes raramente representada na cultura mainstream, não é menos verdade que, aos olhos do público o afro-americano, tal como o nativo-americano continuam a aparecer como personagens coadjuvantes. Mais, estão lá para serem salvos pelo Homem Branco Bom, liberal, digno, de princípios impolutos.
To Kill a Mocking Bird, tanto o livro como o filme são disso um bom exemplo. São libelos anti-racistas? Sim. O livro de Harper Lee é claramente inspirado pelo acontecido a Till e a outros (é de 1960). Mas a história é narrada através do olhar da menina, e exalta o pai, o advogado branco, que contra a sua própria comunidade, defende um homem negro de acusação semelhante à que levou ao assassinato de Till. A cena em que ele deixa o tribunal, com a audiência negra de pé, segregada da branca, no balcão do edifício do tribunal, em silêncio e reverência dele, mesmo que os jurados brancos tenham julgado o homem que ele defendera culpado, é um exemplo claro, embora poderoso e até comovente, disso.
Como também o é o discurso final de Adivinha quem vem jantar, dito brilhantemente por Spencer Tracy, em que ele declara, finalmente, o seu apoio ao casamento da filha, branca, com o noivo dela, interpretado por Sidney Poitier. A personagem de Tracy diz todas as coisas certas, mas elas continuam a ser ditas pelo homem branco. E é com o apoio dele e da personagem de Hepburn, que o futuro casal enfrentará as ameaças do mundo real.
Em ambos os filmes, são dois ícones do que é ser “Americano” quem fala. Só Tracy e Peck têm gravitas suficiente para dizer ao público americano o que devia ser óbvio: o racismo é uma abominação e os seus efeitos injustos e imorais.
Se é verdade que, sobretudo em paralelo com os movimentos de direitos civis, encabeçados por Martin Luther King e Malcom X, acções de heróis do desporto como Ali, Kareem Abdul Jabbar, Bill Russell, e autores como Maya Angelou, James Baldwin, Gil Scott-Heron,Toni Morrison, entre outros, a voz das comunidades afro-americanas começa finalmente a ser escutada, reforçada pelo peso e popularidade crescentes da música afro-americana, com a criação de géneros como o soul, o funk e sobretudo o RAP. As histórias afro-americanas e a História Afro-americana passam a ser contadas pelos próprios. Mas não é menos verdade que, durante algum tempo, de forma envergonhada, e mais recente e descaradamente, promovendo a ascensão de Trump e do populismo que lhe dá alento e votos, o racismo, considerado por muitos o pecado original americano, permanece um dos traços mais marcantes, influentes e violentos da América.
Para provar essa tese, não é preciso grande esforço: basta ver as percentagens de afro-americanos presos, sendo que os EUA são, de longe, o país que mais encarcera os seus cidadãos. Basta ver os incidentes regulares e homicidas de violência policial, perpetrada sobre a população afro-americana, olhar para a composição dos órgãos de soberania, das administrações das empresas e por aí a fora. Lembremos ainda a invasão do Capitólio, as marchas com tochas, os monumentos à Confederação e a resistência à sua destruição, o próprio desenho dos círculos eleitorais, etc.
Muitos dos “fantasmas” dessa guerra civil continuam a aparecer à tona. Ainda há dias, uma das candidatas à Presidência declarou que os motivos do início da Guerra Civil americana eram as diferenças de modos de vida entre Norte e Sul. Para depois dizer que era tudo muito complexo. Será. Mas não devia ser tão difícil pronunciar a palavra escravatura.
Serve esta, já nada breve, contextualização para estabelecer três pontos:
Em primeiro lugar que As Árvores, de Percival Everett, resulta e reage a tal estado de coisas. Em segundo lugar, o livro é relevante para nós, não só do ponto de vista estético, mas também para nos fazer reflectir sobre a nossa própria realidade e sobre o modo como o racismo, descrito no livro e a reacção ao mesmo, se não existe entre nós, na sociedade portuguesa de forma tão explícita, não é menos real. Latente, ou nem isso, perseguido formalmente pela lei, mas não na prática, presente de modo subliminar ou não, incluindo nos nossos monumentos, toponímias, etc.
Ou seja, é real, ao contrário do que tantos insistem em fazer crer.
Finalmente, em terceiro lugar, estabelecer que daí decorre que, provavelmente, não sou a melhor pessoa para escrever sobre o tema. Mas parafraseando um famoso edil, aqui estamos, Buala e caros leitores.
De regresso ao As Árvores
Regressemos, pois, ao livro propriamente dito.
Em As Árvores, Everett demonstra uma capacidade sublime de invocar referências culturais, sintetizar ideias, traçar retratos, sem perder a fluência da narrativa ou parecer académico e professoral. O livro deixa-se ler vorazmente, é hilariante, trágico e acusador, frequentes vezes em simultâneo.
Acima de tudo, recusa-se a dar-nos tréguas, sobretudo a leitores brancos, como eu.
Se fosse cinema, ou uma série, e tem tudo para ser adaptável a qualquer um dos meios, o seu ethos estaria próximo das sequências finais do Django Unchained, ou de filmes de Jordan Peele, como Get Out, e pode reclamar-se herdeiro dos filmes de blackxploitation. Provoca em nós, leitores, satisfação com a violência da retribuição e justiça aplicadas.
É, também por isso, um livro belíssimo, divertido e perturbador, coisas que nem sempre andam juntas.
A atenção de Everett aos mais ínfimos detalhes é manifesta. Aquilo que é histórico é, penosa e violentamente, real. Exemplos, são muitos, vide o capítulo 64, uma lista de nomes de pessoas assassinadas por motivos racistas.
Na parte ficcional do romance, nada é por acaso, a começar pelos nomes das personagens.
É suposto, como humorista, ter alguma repulsa por trocadilhos, mas como não nos deliciarmos com uma tripla de detectives cujos apelidos são, respectivamente, Ho, Chi e Minh?
Everett não transige no retrato impiedoso dos brancos racistas. São feios, porcos, maus, violentos, cobardes, estúpidos. Não há espaço para grandes matizes.
Os poucos brancos que aparecem no livro com qualidades redentoras têm uma razão para isso, que, a seu tempo, é revelada aos leitores.
Mas esse retrato é-nos dado sobretudo, a partir do humor. Um exemplo de como, através desse mecanismo ele caracteriza como imbecis, os participantes de uma reunião do Ku Klux Klan:
“Estamos aqui 15, cada um tem 10 homens nos seus grupos, o que tudo somado faz uns 90. Duas armas cada homem, faz 160 armas, o que não é assim um grande poder militar.”
Em As Árvores, Everett, que nasceu no ano a seguir ao assassinato de Till, consegue, graças à qualidade da escrita, fluidez da narrativa, cruzamento de géneros e técnicas literárias e um profundo, sarcástico e negro sentido de humor, evitar cair em armadilhas panfletárias.
Conclusão
As Árvores é um romance provocador no qual o autor, conscientemente, usa todas as ferramentas à sua disposição para construir uma narrativa e um imaginário que são o inverso do maniqueísmo construído durante séculos da cultura americana, nomeadamente a iconografia a que nos referíamos antes.
As Árvores, sob o diáfano manto do seu enorme entretenimento, relembra que nada do que aconteceu está esquecido, que o tal pecado original americano continua a ocorrer, que a injustiça e a revolta que a sua prática e impunidade geram fará com que um dia, os oprimidos se levantem.
E é desse “Rise up” que, na verdade, o livro fala. E da brutalidade que esse “Rise up”, assumindo os métodos do opressor, para aplicar uma justiça de talião pode tomar. E de como isso vai pôr em causa os valores daqueles que fizerem essa justiça.
O livro termina com uma frase, na verdade uma pergunta, brilhante, que não pode deixar de nos causar profunda reflexão.
Já bastam os vários spoilers deste artigo, até porque essa questão magna vale pelo seu contexto no livro, pelo que me abstenho de a revelar. Mas o livro merece a leitura só para o leitor poder verdadeiramente lidar com ela e o modo como põe em cheque o código de valores das personagens e o do próprio leitor.
Termino, afirmando que, apesar das suspeições que são inerentes à nossa amizade, o trabalho do José Lima a traduzir é hercúleo e bem-sucedido, conseguindo manter a esmagadora maioria das piadas e trocadilhos, referências e contextos do texto original, mantendo intacto o sentido de humor cáustico do autor.
As Árvores, de Percival Everett, tradução José Lima, Editora Livros do Brasil, 2023