Entre cartas e fotografias: uma pequena história do colonialismo – Parte I

Depois da morte de seu avô, a escritora Yara Monteiro encontrou seus “papéis velhos”: uma espécie de arquivo, no qual se reuniam um número significativo de itens, entre correspondências, documentos oficiais, notícias recortadas de jornais, envelopes e selos comemorativos. Em um texto escrito para o projeto Memoirs – Filhos do Império e Pós-memórias Europeias, Monteiro descreve os papéis como um mapa da história do colonialismo português: o avô, angolano, viveu por mais de 20 anos em Portugal. A coleção era rica em si mesma. Mas a escritora descobriu algo a mais naqueles “papéis velhos”, ou melhor, entre eles, nos intervalos, nas brechas que se instilavam em meio a uns e outros dos artigos: lacunas, silêncios, ausências que colocavam, a partir do que na coleção se fazia presente, a questão do seu avesso. O que teria ficado de fora do arquivo? O que seu avô teria preferido, por algum motivo – qual? quais? –, não integrar à sua coleção? Neste sentido, conta a escritora, deparar-se com um arquivo das memórias de seu avô foi como entrar na  terra invisível de almas, espectros de realidades onde os meus ancestrais e outros de gente que desconheço permitem que me aproprie das suas histórias, dos seus rostos, gestos, afetos e desafetos; pois que se recusam a partir sem que as suas versões sejam contadas.

O que viu Yara Monteiro entre os papéis de seu avô, senão fragmentos da história do colonialismo? O que se desprendia daqueles “papéis velhos”, índices de uma memória singular, senão uma memória coletiva da colonização? É como se, desde os hiatos da história de um homem, se projetassem as linhas do horizonte de uma história comum. É com esta perspectiva em mente que proponho a construção de uma pequena história do colonialismo a partir das fotografias de famílias cabo-verdianas, reunidas pelo projeto de investigação “Pós-Arquivo”, da artista Mónica de Miranda, e dos personagens do romance Luanda, Lisboa, Paraíso (2018), de Djaimilia Pereira de Almeida. No pós-arquivo de Miranda nos deparamos com fotos que fazem parte de álbuns de fotografias familiares e tantas outras que foram enviadas para parentes e amigos que – por motivos vários – decidiram deixar o país. São retratos, registros de casamentos, almoços, imagens de crianças pequenas. Já no livro de Djaimilia Pereira de Almeida, acompanhamos a história de Cartola de Sousa, um angolano assimilado que viaja a Lisboa com o filho Aquiles em busca de tratamento para o menino. E vemos a relação de esquecimento que se trava entre ele e sua mulher Glória, que após o parto do caçula se vê acamada e fica em Luanda com a outra filha do casal, Justina. Depois da partida do marido, o casal passa a se comunicar por telefonemas, cartas e bilhetes espalhados pelo romance em páginas destacadas. Ao avançar da leitura, a relação entre os dois se transforma e Cartola se sente cada vez mais distante da mulher e da vida que levavam juntos em Angola.    

bilhete de Glória para Cartola, em Luanda, Lisboa, Paraíso, de Djaimilia Pereira de Almeidabilhete de Glória para Cartola, em Luanda, Lisboa, Paraíso, de Djaimilia Pereira de Almeida

Em uma de suas teses sobre o conceito de história, Walter Benjamin escreve:  “O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para história” (1994, 223). A história, para Benjamin, não é aquela que reconstrói a linha cronológica de fatos passados; que busca obstinadamente a pretensa exatidão científica daquilo que passou. Antes, a história – como Benjamin a concebeu –  explode o contínuo do tempo, junta seus cacos e recolhe os estilhaços. “Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo” (Ibidem, 224), diz outra das teses benjaminianas. Também nosso arquivo não pretende a reconstrução contextual de cada imagem e sua correspondência também não será feita a partir do signo do fato. Trata-se antes de olhar este material como a história do que poderia ter sido. Ou ainda, refazer o exercício imaginativo proposto por Saidiya Hartman (2022) e fazer uso de uma imaginação radical para recriar novas histórias. Afinal, como nos ensina Benjamin, cada memória, cada fotografia e cada texto nos poderá contar como cada época sonhou o seu futuro irrealizado. 

I. 

Antes de embarcar para Lisboa, Cartola arruma sua mala com a ajuda da mulher, Glória: 

Eram os despojos de uma cabana queimada: um relógio despertador, um estetoscópio, compressas de gaze esterilizadas, um diapasão, dois lacinhos, unguentos expirados, uma agenda inglesa antiga, isqueiros, fascículos de uma enciclopédia ilustrada, meias desirmanadas, uma colher de pau, uma coleção de canetas de tinta permanente, mercurocromo, lenços de bolso, uma navalha, a certidão de nascimento, a carteira profissional, meia dúzia de pecas de roupa de Verão encardidas, dez maços de tabaco negro. Numa caixa de cartão embrulhou em papel de jornal um quilo e meio de mandioca e cinco bagres fumados, a bagagem de um corsário e não a de um pai aflito, muito menos a de um imigrante (Almeida 2018, 24).  

A mala é um pequeno recorte dos desejos de Cartola, um parteiro que embarcava para Portugal para buscar tratamento médico para o filho mais novo, Aquiles. Angolano assimilado, Cartola sonhava com aquela viagem a Lisboa, onde tinha esperança de ser reconhecido como português e médico. Esta mesma mala só será desfeita sete anos mais tarde, quando da visita de Justina, filha mais velha de Cartola, a Lisboa. Cartola diz não ter desfeito as malas por esperança: sabia “não ter ainda chegado ao destino” (Ibidem, 127), ao seu destino, talvez.  O argumento não convence Justina. Ela revolve as gazes manchadas de mercurocromo, os documentos envelhecidos pelo tempo e já dificilmente legíveis e receitas médicas fora da validade. Decide desfazer as malas do pai, obrigando-o a desembarcar definitivamente em Portugal. Mas, ao ocupar-se da bagagem, Justina repara uma ausência: uma fotografia de Glória. Esta, Cartola mantinha ao alcance de seus olhos:

Apenas tinha consigo uma fotografia da mulher quando era ainda uma rapariga, retrato em que ela lhe parecia da Indochina, muito segura, numa gola em bordado inglês. Dava conta de ir se esquecendo a pouco e pouco da cara dela. Só restava a sua voz do outro lado da linha como lembrança, a cada mês mais estrangeira e recomposta, à medida que a saúde ia melhorando (Ibidem, 62).

Na esteira de Benjamin, Eduardo Cadava (1997, 128) nos lembra como o filósofo alemão costumava associar à fotografia um caráter de suvenir ou “o cadáver de uma experiência”. A fotografia, neste sentido, é sempre uma imagem de algo que já passou, é um vestígio do passado que se faz presente. O fotografado, por sua vez, existe num espaço entre a vida e a morte. A imagem de Glória que Cartola leva a Lisboa é de uma mulher muito diferente da que deixou em Luanda. Acamada desde o parto, Glória passa a ser uma espécie de paciente de Cartola, há inclusive uma forma infantil no tratamento entre os dois. A fotografia é, portanto, apenas uma lembrança do que um dia foi e do que poderia ter sido a mulher. Quando menciona a imagem e as memórias do início do relacionamento, Cartola descreve uma mulher segura – muito diferente da que lemos nas cartas trocadas pelos dois e que ele também julga estar esquecendo. Depois de receber um bilhete com marcas de batom de Glória, vemos como – aos olhos de Cartola – a mulher vai se transformando em uma espécie de criança: “Querê-la de novo seria como ansiar ter nos braços não uma mulher, mas alguém a quem ele ensinara tudo, como um pai faz a uma filha” (Almeida 2018, 155-156).

A fotografia articula o fugaz e o interrompido: o clique que registra um instante específico no meio de tantos outros, oscilando sempre “entre aquilo que lhe escapa e isto que nela se infiltra” (Lissovsky 2014, 20). Trata-se, nas palavras de Cadava (2007, 25), de “la desaparición del contexto – la esencial descontextualización – que tiene lugar en cada fotografía”. De outro lado, temos o célebre argumento de Roland Barthes de que a fotografia é sempre uma imagem da morte – “isto foi” é o noema de toda fotografia, aquilo que toda foto nos diz, afirma. Mas não nos interessa ler nas fotos, à maneira de Barthes, um futuro que já foi. O evento irredutivelmente singular da morte é afinal um destino demasiado comum: nenhuma história surge deste cruzamento. Interessa-nos antes imaginar que quando as imagens viajam, quando as observamos em diferentes tempos e espaços, quando as conectamos com outras imagens e histórias, estamos diante não da consumação futura do já, mas da montagem do que poderia ter sido

No caso da imagem de Glória, Cartola vê uma moça jovem, confiante e cujo destino não tinha como horizonte uma cama. Que outra vida a mulher da foto poderia ter levado? Que sonho irrealizado se aninhava naquela imagem? Teria Cartola reconhecido naquela fotografia, em um instante fugaz, sob a luz de um relâmpago, um destino inteiramente outro, novo e todavia desde sempre prometido? Um destino que em nada lembraria a mulher que deixou em Luanda, esta a quem diz estar esquecendo. Os bilhetes e cartas do romance, assim como o consultar da fotografia antiga e o hábito de se arrumar para telefonar para mulher: tentativas de impedir que a memória falhe e deixe Glória e Angola para trás? Ou serão as falhas da memória, como a dos arquivos, o lugar de sua potência irrealizada? Esquecer é perder? Ou esquecer é abrir na massa da memória um espaço reservado à imaginação do futuro? “Esquecimento não pede permissão”, escreve Cartola à mulher. 

(…)

por Luciana Martinez
A ler | 27 Janeiro 2025 | cartas, Djaimilia Pereira de Almeida, Fotografia, Lisboa, luanda, Paraíso