Entre cartas e fotografias: uma pequena história do colonialismo – Parte II

II. 

 Pós-Arquivo, Mónica de Miranda. Pós-Arquivo, Mónica de Miranda.

A fotografia acima é uma das centenas reunidas no projeto “Pós-Arquivo”, da artista e investigadora Mónica de Miranda. Sobre ela – assim como sobre as demais, sabemos muito pouco. Estão acopladas em álbuns de famílias. A primeira vez que a encontrei foi em 2020. Na época, estava junto do álbum de João Van du Reis, que reunia fotografias tiradas entre 1950 e 2010, em Cabo Verde. O nome do arquivo era “Antónia”. Imagino ser este o nome da mulher retratada na imagem. Por suas roupas, me inclinaria a situar a foto nas décadas de 1950 ou 1960. Nada mais posso inferir.  Sentada de pernas cruzadas, Antónia mira o fotógrafo do outro lado da câmera. O que ela via? Nunca saberemos. E quanto a nós? O que vemos hoje, em 2025, quando, desde uma imagem fotográfica, Antónia ainda sustenta seu olhar em nossa direção? O que vemos no instante em que uma fotografia nos olha? 

Segundo Maurício Lissovsky (2014, 135), pesquisadores (e historiadores em particular) costumam atribuir suas descobertas ao sucesso de uma busca obsessiva pelo fato, atribuem achados ao ato de procurar incessantemente a determinação mais precisa do passado. Esquecem-se assim do caráter fragmentário de todo arquivo e de como cada um dos documentos que o compõe podem nos trazer “vestígios do passado [que] visam o presente e nos dizem alguma coisa. É graças às suas lacunas que os arquivos ainda nos olham” (Ibidem). As “descobertas” historiográficas são, portanto, a correspondência entre o olhar do historiador e o passado que ressurge como um relâmpago tensionado para o futuro. É este o reconhecimento de que Walter Benjamin (1994, 224) tanto nos fala e que é a condição de realização da sua história poética do acontecimento: “A verdadeira imagem do passado perpassa veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”. O passado que irrompe como um relâmpago, rápido e repentino, só pode ser retido pelo reconhecimento. Por isso é que não há acontecimento perdido para a história, quando se está disposto a escová-la “a contrapelo”, como propõe Benjamin. 

As virtualidades de um arquivo, portanto, se atualizam naquele que o lê, que o vasculha. Pode ser que alguns leitores ainda busquem ordenar o arquivo, dando-lhe um sentido único e total, atribuindo-lhe uma narrativa. Aqui, optarei por um outro tipo de manuseio, livre da pretensão de reencontrar contextos ou refazer trajetórias que se pretendam verdadeiras, factuais. O objetivo é escavar os fragmentos das cartas de Glória e das fotos reunidas por Mónica de Miranda em busca do futuro oculto, do futuro irrealizado, daquelas pessoas que viveram em sua intimidade a história coletiva do colonialismo português. Ou seja, não se trata de organizar o arquivo, mas encontrar nele uma linha de fuga para uma pequena história do colonialismo. 

 Pós-Arquivo, Mónica de Miranda Pós-Arquivo, Mónica de Miranda 

Álbuns de fotografia costumam reunir lembranças que as famílias julgam importantes para contar sua história: são imagens de casamento, aniversários, festas de fim de ano, cerimônias de batismo, viagens. Nesta segunda foto, vemos Antónia acompanhada de uma jovem. As duas têm vestidos confeccionados com o mesmo tecido, a mesma estampa, em modelos diferentes. É evidente que as roupas foram pensadas para formarem um par. Não são trajes quaisquer. Há neles escolha, foram concebidos, imaginados. Para uma ocasião especial? Provavelmente. Serão mãe e filha? É quase certo. Para além da vestimenta, parecem-se fisicamente. A filha traz um sorriso largo, mostra os dentes. Já a mãe sorri apenas com os lábios. Entre infância e vida adulta, modera-se a alegria. Sabemos que Antónia nos olha de um Cabo Verde colônia. Mas será isto que mais importa ao arquivista? Uma data? Um lugar? As formas do arquivo, já disse, se dão no olhar daquele que o lê. E se fosse Cartola quem as observasse? O que veria no sorriso comedido da mãe, senão a segurança de Glória? E no riso franco da filha, o que veria senão o otimismo de Justina? Ou seja, na imagem que uma data e um local restringem a ponto específico da história, Cartola veria sua própria história. Dizia no começo que nas brechas de uma história pessoal se infiltra a história. Agora, proponho que às imagens da história sobrepõe-se uma história pessoal.

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por Luciana Martinez
Vou lá visitar | 16 Março 2025 | arquivo, Fotografia, Mónica de Miranda