A cara de Nina Simone
Quando era criança, sabia que as piores partes de mim eram o meu cabelo e a minha boca. O meu cabelo era crespo. Os meus lábios eram grossos. Quase todas as crianças à minha volta sabiam algo semelhante sobre si mesmos, porque quase todos tínhamos algum defeito físico - pele escura, cabelo duro, nariz largo, lábios grossos, que nos levava a ridicularizarmo-nos uns aos outros. Nunca nos esquecemos que cada um desses “defeitos” era representativo de toda a África que nos perseguiu. “África” era um insulto - African bush-boogie, African bootie-scratcher, etc. Na época, estava na moda contar piadas sobre etíopes famintos.
Será que queríamos ser brancos? Não me parece. Nós não queríamos ser como o Rob Lowe ou a Madonna. Nós odiámos e ridicularizámos as mudanças estéticas do Michael Jackson tão ferozmente como nos ridicularizávamos uns aos outros. O que realmente queríamos era ser “fixes”. Queríamos olhos cor de avelã. Queríamos cabelo ondulado. Eu não tinha nem olhos castanhos nem cabelo ondulado. Mas também não sofria como outras crianças à minha volta. Não tinha pele escura. E, sobretudo, não era rapariga.
Mesmo naquela altura sabia que ser uma pessoa bonita ou não era idêntico para rapaz e rapariga. Para os rapazes, havia outras formas de ascender socialmente - humor social, um assassino jump-shot, ou uma reputação de violência - que não estavam disponíveis para raparigas. Mais velho entendi que não era meramente uma marca de West Baltimore, mas de algo maior. “One More Chance”, de Biggie, foi uma ode a esta vantagem distintamente masculina:
Heartthrob never, black and ugly as ever
However, I stay Coogi down to the socks
Rings and watch filled with rocks
And my jam knocks…
Nunca “however” foi usado com tanto efeito. Não havia um “however” para uma rapariga considerada “preta e feia”. Não houve análogos femininos para Biggie. “However” era uma linha clara que dividia os direitos sociais limitados a mulheres dos direitos sociais, relativamente amplos, dos homens.
Na faculdade escutava imenso Nina Simone. Continuo a ouvir muito Nina Simone. Mas sempre soube que Nina Simone tem mais significado para as mulheres negras que me rodeiam do que para mim. Além disso, sempre soube que Nina Simone diz muito mais a um tipo específico de mulher negra do que alguma vez significará para mim. Simone tinha todos os elementos que nós denegríamos como crianças. E ainda assim, conseguiu tornar-se numa deusa.
Simone conseguiu evocar glamour, apesar de tudo o que era dito sobre as mulheres negras como ela. E por isso desfrutou de um lugar especial no panteão da resistência. Não se deve apenas às suas letras ou à sua musicalidade, mas à sua aparência. Simone é mais do que um Bob Marley feminino. Não é simplesmente a voz: foi o mundo que fez aquela voz, toda a mágoa e dor da difamação forjou algo de outro mundo. Aquela voz, inevitavelmente, leva-nos a olhar para o rosto de Nina Simone e, por um breve momento, entender que o ódio que sentíamos, o escárnio que vivemos, não era natural, foi fruto de conjurações e do espectro da espoliação. Nós olhamos para o rosto de Nina Simone e a mentira é exposta, isso faz-nos ficar envergonhados. Nós olhamos para o rosto de Nina Simone e surge uma terrível verdade: não havia nada de errado com ela, mas há algo de profundamente errado connosco.
Dizem-nos que o rosto de Nina Simone não tem verdadeiramente importância no novo filme homónimo sobre a sua vida, com Zoe Saldana. “A coisa mais importante”, afirma Robert Johnson, cujo estúdio irá lançar Nina, “é que a criatividade ou a qualidade de desempenho nunca deve ser julgada com base na cor ou etnia, ou semelhança física.” Isto é obviamente falso. Saldana poderia ser a maior atriz do seu tempo que ninguém a chamaria para interpretar Marilyn Monroe. Na verdade, os produtores de Nina têm ido para grandes e tragicómicos finais para invocar o rosto de Nina Simone, escurecendo a pele de Saldana, adornando-a com próteses. Nem o termo blackface nem brownface é inteiramente apropriado. Não se trata de um escárnio deliberado, mas de algo muito mais insidioso.
É difícil interpretar a escolha de lançar Saldana da economia de Hollywood - Saldana é vista como um estrela segura mais do que outras mulheres negras do seu meio. É igualmente difícil ignorar o fato de que, embora seja difícil para todas as mulheres em Hollywood, é particularmente difícil para as mulheres negras, e ainda mais difícil para as mulheres negras que partilham a pele escura, nariz largo e lábios cheios de Nina Simone. Este facto não é indestrinçável da história racista deste país, nem o é a noção de “escurecimento” de uma pessoa negra de pele mais clara. Os produtores fizeram isso com Fredi Washington em Emperor Jones, fizeram isso com Carmen de Lavallade em Lydia Bailey. (A maquilhagem foi chamada de “Negro Número Dois”.) Fizeram isso porque queriam usar a aura de negritude ao mesmo tempo que fugiam da realidade social da negritude. É possível que os produtores não tenham sido, eles mesmos, pessoalmente racistas. Isto não tem qualquer influência em nada. Nos Estados Unidos, o racismo é uma configuração padrão. Não fazer nada, acompanhar os mercados, reivindicar inocência ou neutralidade, é ser, inevitavelmente, uma roda dentada na máquina da hierarquia racista.
Os produtores de Nina são herdeiros dessa história racista, não pessoalmente, mas fazem parte do sistema. Kara Brown, do Jezebel, investigou a equipa por trás de Nina. É quase inteiramente branca. Sem dúvida que são boas pessoas, nada racistas, mas não boas o suficiente. Ninguém na equipa parece entender o absurdo de fazer um filme sobre Nina Simone operando dentro da mesma máquina que causou a Simone tanta agonia em primeiro lugar. Não quero ser pessoalmente duro. Não estou a tentar magoar as pessoas. Mas há algo de profundamente vergonhoso e doloroso no facto de sabermos que ainda hoje uma jovem Nina Simone teria dificuldades em ser contratada para o seu filme biográfico. Neste sentido, a criação de Nina não é um ato neutro. É uma parte do problema.
Aqui o termo “apropriação” ganha uso. Não estamos a falar de alguém inspirado nas lições mais profundas da vida de Simone e da sua música. Estamos a falar de pessoas que pensam que não há problema em lucrar com a sua música, enquanto descuidadamente contribuem para o tipo de dor que criou esta música. Para reconhecer esta dor, e considerá-la no elenco, seria inconveniente - como ação anti-racista, é sempre. Isso significaria dar uma oportunidade a alguém que pessoalmente experienciou o tipo de dor que assolou Simone. Sem dúvida que havia menos hipóteses de angariar fundos para tal filme o que, por sua vez, resultaria em anos de atrasos e a possibilidade de o filme nunca ser lançado. Seria lamentável, menos para Nina Simone do que para os agentes que se sentem no direito de beneficiar da sua história.
Saldana disse que outros atores que mais se assemelhavam a Simone recusaram o papel, e que ela própria o recusara durante um ano. Por último sentiu que a história de Simone “merecia ser contada.” O sentimento é compreensível. No entanto, o facto de que há uma enorme quantidade de atores que se parecem com Simone não é uma desculpa não-racista, mas um sinal do mesmo, o mesmo racismo que assolou Nina Simone. Estar consciente de que significa o racismo é enfrentar a possibilidade de a história de Simone nunca vir a público. Essa não é a tragédia. A tragédia é que vivemos num mundo que não está preparado para essa história ser contada. O lançamento de Nina não põe em causa este facto, reifica-o.
A diretora do filme Cynthia Mort solicitou-nos que víssemos o filme antes de comentar. Na verdade, é perigoso tirar conclusões sobre a qualidade de um filme antes de o ver. Mas não há nada que impeça uma obra-prima de prosseguir em “terrenos racistas”. Os primeiros filmes de Rocky são excelentes. Eles também afirmam o sonho racista do rapaz branco desconexo contra o fanfarrão gabarolas. Ambos podem ser verdade. Nada sobre a qualidade de Nina pode realmente combater os problemas inerentes à sua criação. Talvez profundamente mais importante, é que as mulheres negras já viram o filme de Mort. Na verdade, têm-no visto toda a sua vida.
Publicado originalmente no The Atlantic, a 16/03/2016