A transição de Neto a dos Santos: os discursos presidenciais sobre as relações internacionais de Angola e o conflito com a UNITA (1975-1988)

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Neste texto pretende-se fazer um balanço dos discursos feitos por Agostinho Neto, primeiro presidente de Angola e do MPLA e, posteriormente, por seu sucessor José Eduardo dos Santos, naquilo que tange as relações internacionais de Angola, e o conflito com a UNITA – desde o momento da proclamação da independência, em 1975, até a assinatura dos Acordos de Nova Iorque, em 1988. O tema  é vasto e não há possibilidade de esgotá-lo aqui, esmiuçando os acontecimentos e respectivos contextos das declarações; sendo assim, escolhemos alguns discursos que julgamos ser importantes para a compreensão da tecitura das relações internacionais que o Estado recém-independente engendrou, bem como, em paralelo,  entender o crescimento da UNITA e da construção de Jonas Savimbi enquanto inimigo do governo angolano.

Após a proclamação da independência de Angola em Luanda pelo MPLA, a peocupação maior do movimento consistia em ser reconhecido pela comunidade internacional como legítimo representante do país. Este reconhecimento, para além daquele que viria individualmente por parte de cada Estado, deveria, principalmente, advir da Organização da Unidade Africana (OUA) e da Organização das Nações Unidas (ONU).

primeira reunião do Presidente com os ministros e secretários de estado.17/11/1975primeira reunião do Presidente com os ministros e secretários de estado.17/11/1975

 

Ao mesmo tempo em que era proclamada a independência em Luanda, por Agostinho Neto, a coligação UNITA-FNLA tentava estabelecer um governo alternativo, a República Democrática de Angola, com sede no Huambo, proclamada no Uije, por Holden Roberto, e no Huambo, por Jonas Savimbi – e que foi desmantelada antes mesmo de ser reconhecida por qualquer país.

O sudeste de Angola era então alvo da Operação Savanah, lançada a 23 de outubro de 1975, e que consistiu na invasão das tropas sul-africanas, com soldados do Exército de Libertação de Portugal (ELP), da UNITA e FNLA em território angolano para apoiar a coligação FNLA-UNITA na tentativa de chegar a Luanda, e impedir que o MPLA declarasse a independência unilateralmente. Apesar dos sucessos iniciais da operação, que avançou cerca de 3 mil km em 33 dias, fazendo cair as cidades por onde passava, foi detida na altura do rio Queve, a 500 km de Luanda, por ações da já instaurada Operação Carlota. A Operação Carlota trouxe a Luanda enormes quantidades de armamento e soldados cubanos. Iniciado o transporte de combatentes em princípios de outubro de 1975, com o envio de 680 instrutores militares, chegou a manter cerca de 37 mil soldados cubanos em Angola em fevereiro de 1976, manejando armas e artilharia vindas da URSS e de países socialistas.

Chegada a Luanda do Comandante Fidel Castro. 23/03/1977Chegada a Luanda do Comandante Fidel Castro. 23/03/1977

 

Com a ajuda militar de Cuba, o MPLA consegiu vencer temporariamente o exército sul-africano aliado a UNITA-FNLA, e a 27 de março de 1976 houve a retirada das tropas de Vorster do território angolano.

À parte a luta militar, a batalha diplomática na qual se lançou o MPLA tinha José Eduardo dos Santos como Ministro das Relações Exteriores, cuja atividade culminou com o reconhecimento do governo da Repúlica Popular de Angola pela OUA, em fevereiro de 19761, e pela ONU, em 1 de dezembro do mesmo ano.

Durante o primeiro ano após a independência, os discursos presidenciais foram marcados pela afirmação do MPLA como única organização legítima, mencionando os outros dois movimentos, FNLA e UNITA, quase sempre através das críticas que faziam aos seus comportamentos, ou, mais comumente, por expressões como «lacaios do imperialismo» ou «fantoches». Estas expressões remetiam ao fato de que não teriam nenhuma ideologia, e que somente representavam interesses externos e neocolonialistas, como podemos ler no discurso realizado por Agostinho Neto no momento da proclamação da independência:

«A luta que ainda travamos contra os lacaios do imperialismo que nesta ocasião se não nomeiam para não denegrir este momento singular da nossa história, integra-se no objetivo de expulsar os invasores estrangeiros, os mesmos que pretendem a neocolonização da nossa terra»2

comemorações pela independência em Luanda. 11/11/1975comemorações pela independência em Luanda. 11/11/1975

 

Ao mesmo tempo, procuravam chamar a atenção para a internacionalização que havia sofrido a guerra, acrescendo críticas à administração portuguesa no período em que esteve em vigência o governo quadripartite, durante o ano de 1975, conforme ficou registrado no discurso proferido na ocasião da comemoração do 19º aniversário da fundação do MPLA, a 10 de dezembro de 1975:

os zairenses, que foram quase trazidos aqui, graças à política chamada de neutralidade activa dos portugueses, que não conseguiram fechar a fronteira norte, enquanto aqui ainda tinham toda a capacidade para isso; estão aqui os sul-africanos que, também em combinas anteriores à nossa independência, construíram algumas barragens na fronteira sul.3

De fato, Angola era vista como um possível centro difusor da política soviética em África, estando a meio caminho da África Central, e nas bordas do apartheid sul-africano. Por outro lado, fazia parte da política de pressão militar da União Soviética em relação aos Estados Unidos o apoio à guerrilhas independentistas e, depois, à instalação de governos de orientação socialista em áreas do chamado mundo em desenvolvimento.

No entanto, as ações dos EUA logo a seguir à independência de Angola ainda eram tímidas, já que vinham de um colapso na Indochina e do escândalo de Watergate, o que, por outro lado, encorajou as intervenções de Cuba e da URSS no continente africano. Após um curto período de encimesmamento, os norte-americanos retomaram a sua política em conflitos externos na administração Carter, e se consolida com agressividade a partir da chegada de Reagan à presidência dos EUA. O discurso morno da importância geopolítica – adotado por Richard Nixon e Gerald Ford-, foi substituído por aquele uma vez já adotado por Roosevelt, e que cunhou a célebre frase: «Eu sei que é um filho da puta. Mas é o nosso filho da puta!», referindo-se ao apoio que dava a Somoza, na Nicarágua. Ou seja, é a política do «serei amigo dos inimigos do meu inimigo, a despeito de quem eles sejam».

Vale a pena lembrar que a base da importância da África do Sul para os Estados Unidos estava nas suas reservas de minerais estratégicos, que podia fazer frente às vantagens que tinha a União Soviética neste domínio – em ouro a África do Sul detinha «31por cento da produção mundial, contra 31,5por cento da URSS; de crômio 34por cento contra 37,5por cento de manganês 23por cento contra 39por cento de vanádio 30,5por cento para cada uma; de platina 45por cento contra 48por cento, de antimônio 16por cento contra 12por cento, espécies que nem os EUA nem os seus aliados europeus têm uma produção significativa ».4

Desta forma, inscrito no contexto da bipolaridade mundial da guerra fria, os Estados Unidos da América alimentavam com financiamento e armamento a luta conduzida pela África do Sul contra os vizinhos socialistas recém-independentes: Angola e Moçambique. A África Austral, e Angola mais especificamente, deixava de ser uma região periférica para tranformar-se numa peça importante do conflito mundial, a ponto do embaixador da URSS nos Estados Unidos, Anatoly Dobrynin5, dizer que Angola chegou a ser, em finais da década de 1970, o ponto de controvérsia mais importante entre americanos e soviéticos, no quadro das interferências em conflitos externos, e foi um dos pontos responsáveis pelo falhanço da política de detente praticada no período.

Para a África do Sul, havia uma dupla justificativa para as incursões que fazia dentro do território angolano: a proteção de uma barragem construída em acordo com o regime colonial português, a barragem de Ruacaná-Calueque, no rio Cunene, na fronteira de Angola com a Namíbia então governada por Pretória. E, somado a isto, alegavam a busca por quadros da SWAPO, movimento que conduzia a luta armada pela independência da Namíbia.

Assim, logo após a independência ainda havia dois exércitos regulares apoiando a coligação FNLA-UNITA contra o MPLA: o sul-africano já mencionado, e o zairense de Mobutu, sendo que a FNLA recebia também armas da República Popular da China, bem como conselheiros e treinamentos que atuavam em território zairense, conforme constatamos através do documento produzido pela CIA, a 5 de novembro de 1975.6

Estes apoios internacionais só viriam a diminuir, embora jamais tenham cessado por completo até o fim da guerra, aquando da intervenção da Organização da Unidade Africana em prol do termo do conflito em Angola, principalmente a partir de fevereiro de 1976, quando ocorreu a retirada dos militares zairenses, da FNLA e de mercenários portugueses para o Zaire, e a retirada da UNITA para a Jamba.

Quanto à atuação da OUA em relação à independência de Angola proclamada pelo MPLA, pode-se afirmar que foi bastante ambígua - havia um grande número de países-membros que consideravam que a FNLA, e consequentemente a UNITA dentro de uma coligação entre os dois movimentos, eram mais «genuinamente africanos» e legítimos do que o MPLA, e havia um enorme esforço por parte destes para provar que o apoio que o MPLA recebia da URSS e de Cuba só podia ser entendido como uma neocolonização do território angolano. A preocupação com este argumento está refletida no discurso feito pelo então vice-primeiro ministro, José Eduardo dos Santos, perante a Assembléia Geral das Nações Unidas:

«E é surpreendente que aqueles que directa ou indirectamente manobravam a invasão ao nosso país, viessem depois protestar contra a presença de forças em Angola, que a solicitação do nosso Estado, tiveram por finalidade ajudar a expulsar os invasores! Por isso não entendemos como a administração Ford/Kissinger tenha invocado a presença dos soviéticos e cubanos no nosso país como justificação do não reconhecimento da República Popular de Angola».7

assinatura dos acordos URSS – Angola (na Bulgária). 15/10/1976assinatura dos acordos URSS – Angola (na Bulgária). 15/10/1976

 

Como resposta às acusações sobre a presença cubano-soviética em Angola, e no contexto de afirmação do novo governo de Angola, o MPLA fazia por não distinguir as ações dos diferentes movimentos, mas sim os apresentava como algo quase único, eram os inimigos, os sem-ideologia a serviço do imperialismo, e para isto os associava aos países estrangeiros, fossem zairenses, sul-africanos, norte-americanos ou maoístas: « Já vencido o colonialismo português, lançaram-se em Angola forças tenebrosas do imperialismo: os racistas sul-africanos, os zairenses, os mercenários, os maoístas, os fantoches da UNITA, da FNLA e da FLEC».8

O ano de 1977 começou conturbado para o MPLA, que se via cindido em mais uma crise interna, das tantas que já havia vivido antes de proclamar a independência, e que opunha, grosso modo, o ministro da administração interna, Nito Alves, e as altas patentes militares recém-admitidas, bem como alguns homens fortes do bureau político do MPLA. A crise tomou formas várias, como a rivalidade entre mais ou menos pró-soviéticos, e a quantidade elevada de mestiços como altos quadros da hierarquia militar, e se precipitou numa revolta armada contra o governo do MPLA, em 27 de maio de 1977. O acontecimento diminuiu as atenções às possíveis agressões externas, e o ano termina com o primeiro congresso do MPLA, em dezembro de 1977, quando este se converte em MPLA-Partido do Trabalho, e assume-se com um discurso mais nitidamente socialista e pró-soviético, conforme o esclareceu o presidente Agostinho Neto em discurso no Plenário da Cimeira da OUA, em julho de 1978: «O MPLA Partido do Trabalho é marxista leninista. O povo angolano está disposto a construir o socialismo científico em Angola».9

visita de Sam Nujoma a Luanda, em 1990.visita de Sam Nujoma a Luanda, em 1990.

 

Igualmente, o apoio, já explicitado, às lutas amadas pelas independências do Zimbabwé e Namíbia, teve seu ponto alto quando da visita de Sam Nujoma, presidente da SWAPO, e Joshua Nkomo, presidente da Frente Patriótica, quando estiveram presentes, ao lado de Agostinho Neto, no ato central sobre o 22º aniversário de fundação do MPLA e 1º ano da criação do Partido, a 10 de dezembro de 1978. Em verdade, grande parte da política internacional de Angola, entre os anos 1975 e 1979, foi construída sobre a frase do presidente Neto: «Na Namíbia e na África do Sul está o prolongamento da nossa luta».

Ao lado desse bordão, esteve sempre presente o discurso do não-posicionamento formal, que se inscreve igualmente no discurso do grupo supranacional chamado Linha da Frente, constituído por seis Estados africanos – Angola, Zâmbia, Zimbabwe (a partir de 1980), Moçambique, Botswana e Tanzânia -, e que baseava a sua existência no «combate contra as forças imperialistas», assinalando a necessidade indispensável do não-alinhamento em relação ao conflito Leste-Oeste.

visita do presidente Julius Nyerere (Tanzânia) a Angola, 1980visita do presidente Julius Nyerere (Tanzânia) a Angola, 1980A principal ação da Linha da Frente foi a luta pelas independências na África Austral, e após as proclamações em Angola, Moçambique e Zimbabwé, a atenção voltou-se para o apelo ao fim do regime de apartheid na África do Sul, e pela independência da Namíbia. Entre os propósitos mais importantes para a criação da organização estava a proteção dos países da África Austral do desejo desmesurado da África do Sul de construir uma chamada «constelação de estados», que lhe garantisse o reconhecimento internacional como potência hegemônica com a qual os outros países teriam que negociar a despeito do regime de apartheid.

No plano interno, a FNLA passa a figurar cada vez menos e com menor importância nos  discursos governamentais, e o enfraquecimento da FNLA culmina com a assinatura de um acordo de paz entre Angola e o Zaire, em agosto de 1978.

O principal mantenedor da FNLA, por um curto período, sairá de cena enquanto tal. Em 1979, Holden Roberto exila-se em Paris, e ainda que houvesse alguns combatentes da FNLA no Norte de Angola, a organização não tinha nem sombra do poderio militar que tivera no ano da independência, e havia perdido igualmente o poder de negociação com o governo do MPLA e em relação à comunidade internacional.

Os acontecimentos possibilitam a Agostinho Neto fazer um balanço positivo de suas relações fronteiriças, em outubro de 1978:

«Quer dizer que a paz foi feita com o Zaire, donde partiram os fantoches da FNLA, donde enfim partiram actos de agressão que nós tivemos que repelir. Por outro lado, temos a esperança que a partir da Namíbia, onde os sul-africanos têm estado a treinar, equipar e municiar os grupos fantoches da UNITA, a solução virá dentro em breve e, certamente, com essa modificação política nós poderemos ter a garantia, com uma Namíbia independente, de ter também tranquilidade na fronteira Sul. A fronteira Leste está garantida no sentido de paz e tranquilidade porque temos boas relações, excelentes relações, com a Zâmbia, e temos ainda, por outro lado, muito boas relações de solidariedade, de cooperação, com a República Popular do Congo»10.    
As atenções então se voltam para UNITA que, a partir de 1978, começa a se refazer com o apoio dos Estados Unidos via África do Sul. A emenda Clark, que impedia o envio de financiamento para os movimentos que estavam em luta contra o MPLA, aprovada pelo senado americano em 30 de junho de 1976, havia os desfalcado muito. Mas, ainda que a emenda tenha sido revogada somente em 1985, durante o mandato de Ronald Reagan, o governo Carter voltou a investir naquele que aparecia como um possível aliado dos EUA no governo de Angola, a UNITA, a partir do apoio dado a África do Sul, e mais tarde ao Zaire.

Sendo assim, em 1978 a África do Sul empenhou-se em três operações com incursões em território angolano, tendo numa delas se travado a batalha de Cassinga (Operação Reindeer), a 4 de maio de 1978, sob a alegação de que atacaria um campo militar da SWAPO, e que acabou por matar cerca de 600 pessoas, entre elas muitos civis - era um sinal claro de que a guerra havia recomeçado.

Na sequência do recrudescer da guerra, ocorre a morte de Agostinho Neto, em setembro de 1979, e José Eduardo dos Santos assume a presidência em 21 de setembro de 1979.

O governo de José Eduardo dos Santos deu continuidade à política de seu antecessor, conforme fica explicitado em sua fala em outubro de 1979, na Zâmbia:

«Nós, na nossa região, na África Austral, temos os problemas da libertação nacional da Namíbia, do Zimbabwe e da África do Sul. E não deixaremos de seguir os ensinamentos do Presidente Agostinho Neto e continuaremos a prestar a nossa ajuda, o nosso apoio material a estes povos oprimidos».11

visita de Savimbi ao Donde. 29/01/1975visita de Savimbi ao Donde. 29/01/1975

 

Com as mudanças no cenário mundial e regional, o início da administração de Dos Santos é marcada pela crítica cada vez mais aguda ao regime de Pretória, e é quando passa a nomear o seu inimigo por Jonas Savimbi, como ocorre, pela primeira vez, no discurso feito no 23º aniversário do MPLA, em Benguela, a 10 de dezembro de 1979:

«o regime racista de Pretória, instalado na África do Sul, continua a sua política de agressão contra a RPA (não obstante ter aceite o princípio de uma zona desmilitarizada na nossa fronteira com a Namíbia), numa atitude desesperada, provocatória e irresponsável para manter um clima de tensão e de guerra não declarada, com o objetivo de defender desesperadamente duas causas perdidas: primeiro, a causa do seu lacaio e servidor fiel do imperialismo, o pobre Savimbi; e depois a questão da Namíbia, cuja ascensão à independência já é inevitável».12

A independência do Zimbabwé, em 1980, com a eleição de Robert Mugabe, contrariava as previsões da África do Sul, que a partir de então intensificou ainda mais as agressões contra os países-membros da Linha da Frente que, por sua vez, passaram a receber maior apoio material e logístico da União Soviética e de países socialistas para conter e reagir às incursões armadas.

Ao mesmo tempo, numa tentativa de desmoralização da UNITA os discursos presidenciais reiteravam a sua dependência em relação a África do Sul, e lembravam os seus acordos com os portugueses, bem como colocavam sempre os Estados Unidos como o grande empreendedor desta campanha contra Angola, contra as independências africanas e a favor do apartheid sul-africano.

A escalada da violência por parte do exército sul-africano e das FALA (a força armada da UNITA), praticada por13 meio da guerra, mas também através de sabotagens, minagens, emboscadas e ataques à circulação ferroviária e rodoviária, atingiu seu ponto crítico, em agosto de 1981, com a invasão de Angola por cerca de quinze mil soldados sul-africanos, apoiados por blindados e aviação de combate, e que bombadearam a província da Huila e ocuparam parte da província do Cunene, na denominada Operação Protea.

Em paralelo aos ataques militares, era feita uma propaganda com a intenção de demonstrar que na proteção da SWAPO estavam envolvidos não só o governo de Angola, mas os soviéticos – como o que foi capturado na operação Protea, e apresentado como prova -, os cubanos e os alemães do Leste com meios de rádio-localização e mísses. A isto o presidente de Angola veio inúmeras vezes dar resposta, sempre negando o fato, e reiterando que não haviam bases militares estrangeiras em território angolano.

Em resposta aos ataques, o governo de Angola passa a fazer uma campanha intenacional para demonstrar que em Angola não era uma guerra civil que se vivia, mas sim uma guerra não declarada perpetrada pela África do Sul apoiada pelos Estados Unidos, e apela a comunida internacional que se posicione contra os ataques que Angola vem sofrendo, como os demonstram os telegramas enviados em 25 de agosto de 1981 ao SG da Onu, Kurt Waldheim, a Fidel Castro, presidente dos países não-alinhados, e a Arap Moi, presidente do Kenya e da Organização da Unidade Africana.

IX Cimeira dos países não-alinhados. Belgrado, 1989IX Cimeira dos países não-alinhados. Belgrado, 1989

Internamente, o inimigo vai ganhando forma, a UNITA e Jonas Savimbi passam a ser apresentandos como o verdadeiro problema a ser enfrentado pelos angolanos: «Todos unidos devemos apontar as nossas armas contra os verdadeiros inimigos do povo angolano, os bandos armados da UNITA, treinados, armados e massivamente apoiados pelos racistas sul-africanos»14.

Após três anos de intenso combate na fronteira sul – período em que se conta nove operações empreendidas pela África do Sul em território angolano-, em 1984 é assinado, em Lusaka, um acordo entre a RPA e a África do Sul, prevendo a retirada das tropas sul-africanas, e o fim do apoio do governo de Angola a SWAPO.

No entanto, com o apoio que Jonas Savimbi vinha recebendo de alguns republicanos da Casa Branca, o MPLA poderia ter previsto que o fim das hostilidades com a África do Sul poderia não significar o fim da guerra. Em janeiro de 1985, ano da revogação da Emenda Clark, JES declarou que apesar da assinatura de uma plataforma de entendimento com Pretória, que visava a retirada do exército de Peter Botha do território angolano, este continuava mantendo o apoio a UNITA (e lança no terreno a Operação Cabinda, em maio de 1985, alegando a busca por campos da SWAPO e ANC no enclave petrolífero angolano).

visita de Nelson Mandela Luanda, 11/05/1990visita de Nelson Mandela Luanda, 11/05/1990

 

No fim do primeiro mandato de Reagan, se acentua a deterioração das relações entre os Estados Unidos e a União Soviética, que acaba por agravar a situação política e militar na África Austral, principalmente após a sanção econômica que os Estados Unidos impuseram aos Estados da Linha da Frente, acusando-os de sustentar o terrorismo praticado pela SWAPO e pelo ANC.

Em fevereiro de 1986, o presidente Reagan recebe Savimbi na Casa Branca, colocando em causa a posição do país como mediador para um acordo entre Angola e África do Sul, como ficou claro na correspondência trocada com o secretário geral da ONU, Javier Perez de Cuellar:

«No último encontro com uma delegação dos EUA, conduzida pelo secretário de estado adjunto, Dr Chester Crocker, em janeiro de 1986, a delegação angolana reiterou a vontade de prosseguir as conversações na base das propostas construtivas já avançadas. A administração Reagan, porém, não só revogou a Emenda Clark, que proibia a ajuda aos fantoches angolanos a soldo da África do Sul, agrupados na UNITA, como se engajou de forma aberta no apoio militar, financeiro e de outro tipo, para agravar ainda mais a situação e aumentar o sofrmento do povo angolano. Por todas as atitudes acima descritas, concluímos que a actual administração americana não está imparcial e seriamente engajada nas negociações e, por outro lado, incluiu os problemas de Angola nos chamados «conflitos regionais» entre o Leste e o Oeste, para atrasar a resolução do problema da Namíbia e prolongar a vida do sistema do apartheid».15

muro do hospital militar de Luanda.muro do hospital militar de Luanda.

 

A partir de então, os enfrentamentos militares, principalmente no sul do país, passaram a ser mais frequentes, e em 11 novembro de 1987, após uma batalha no Cuando Cubango, a África do Sul admite publicamente a presença de contingentes militares seus no território angolano em apoio a UNITA. O governo angolano aproveita para chamar a atenção da comunidade internacional, na Cimeira da OUA, na Etiópia, em novembro de 1987, para o fato da guerra não ser estritamente civil, e que o apoio de Peter Botha a UNITA significava que a mesma luta que o países africanos travavam contra o apartheid deveria ser levada a cabo contra a UNITA e Jonas Savimbi.

Apesar do clima de desconfiança, o estratega Chester Crocker conseguia levar adiante a realização da sua política de linkage, convencendo o governo de Angola a seguir com as conversações sobre a retirada das tropas cubanas de Angola e o fim do recebimento de apoio material e logístico da URSS, em contrapartida à retirada dos sul-africanos da parte sul do território e do cumprimento da resolução 435/78 da ONU, que estabelecia a independência da Namíbia.

No entanto, ficava claro que para o governo angolano este não era um acordo com a UNITA, ou seja, a UNITA não seria uma das partes contempladas ou levadas em consideração, pois o governo apostou – hoje sabemos que erradamente – que a retirada sul-africana das fronteiras, e a independência da Namíbia, enfraqueceriam-na a tal ponto que a anulariam como força de guerra. Prova disto são as constantes declarações de José Eduardo dos Santos:

«(…) Nós não pensamos na UNITA com ou sem Savimbi. É evidente que uma UNITA sem Savimbi deverá ser melhor, mas a UNITA é um instrumento da África do Sul. Os angolanos que estão na UNITA são dominados pela África do Sul, não estão livres. Nós queremos libertá-los para que eles se sintam angolanos dignos e livres».16

muro do hospital militar de Luanda.muro do hospital militar de Luanda.

 

Ou respondendo à proposta de negociar a partilha de poder com Savimbi:
«Não há razões para a partilha de poder com os fantoches, pois consideramos que esse agrupamento terrorista desempenha nesse processo um papel complementar ao do exército racista. Isso significaria partilhar o poder com a própria África do Sul».17
Em maio de 1988 começam as conversações tripartidas entre Angola, Cuba e África do Sul, em Londres, mediadas pelos EUA. São seguidas de encontros entre Chester Crocker e Adamishin, vice-ministro das relações estrangeiras da URSS, e da cimeira de Moscou entre Goarbatchev e Reagan, na qual chegam a um acodo sobre a política para a África Austral.

Ainda que a 22 de dezembro de 1988 tenham sido finalizados e assinados os acordos de Nova Iorque, a continuação não será menos conturbada, e fica claro que o conflito na África Austral era muito mais do que uma guerra por ideologias.

A administração Bush declara que manterá o seu apoio a UNITA; e os acordos de cessar fogo, assinados em Gbadolite entre José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi, não são cumpridos. Em meio a queda do Muro de Berlim e a derrocada do mundo socialista, a África do Sul se posiciona outra vez ao lado de Savimbi e o apoia nas ofensivas contra as tropas  governamentais no Cuando Cubango. Ante a insistência dos EUA e África do Sul em manterem o apoio militar a UNITA, os cubanos declaram que não saem de Angola.

As maiores mudanças somente ocorrerão com o anúncio por De Klerk, presidente da África do Sul, da legalização do ANC e libertação de Nelson Mandela, prevista para 11 de fevereiro de 1990. A 21 de março deste mesmo ano é proclamada a independência da Namíbia. Com as turbulências internas vividas pelo derrocada do sistema de apartheid na África do Sul, a UNITA já não podia contar com o apoio do exército sul-africano na fronteira sul de Angola.

Paralelamente, a 10 de dezembro de 1990 o MPLA aprova o multipartidarismo, deixa de ser Partido do Trabalho, e declara em entrevista ao semanário Expresso:

«O estatuto especial para Jonas Savimbi, previsto em Gbadolite, já não existe. Com o multipartidarismo, cada um vai sobreviver de acordo com o veredicto popular. (…) A questão da integração das forças da UNITA nas Forças Armadas vai ter de ser vista à luz do desenvolvimento do Exército Nacional Único (…)»18.

Ainda que tenha podido sempe contar com o apoio dos Estados Unidos – como o comprova o fato de ter sido recebido, em setembro de 1990, por George Bush na Casa Branca, o dirigente da UNITA concorda em manter conversações com o governo, mediadas por Portugal, que chegam a um consenso com a assinatura do cessar-fogo em Bicesse, a 15 de janeiro de 1991.

Em fevereiro de 1991, José Eduardo dos  Santos anuncia a jornalistas dos jornais soviéticos Pravda, Izvestia e Tass, que a África Austral não ficaria isolada das tranformações mundiais, reiterando que as mudanças em curso na União Soviética e no conflito mundial refletiriam diretamente nos confitos regionais, incluindo a África Austral.

O que pretendemos aqui foi acompanhar, através dos discursos presidenciais, o dinamismo das relações internacionais e o processo de construção da UNITA, e de seu líder Jonas Savimbi, como inimigos do governo angolano representado pelo MPLA. No início do governo de Agostinho Neto, a UNITA atuava como coadjuvante de uma guerra maior travada pela FNLA, com o apoio do presidente Mobutu do Zaire. Durante os primeiros anos do governo Neto, a UNITA era apresentada como colaboradora do governo português, quando o inimigo maior ainda era o sistema colonial. Conforme se distancia no tempo a data da independência, a África do Sul começa a ser apresentada, principalmente a partir de 1978, como o novo inimigo  – principalmente a partir da assinatura do acordo de paz com Mobutu e a retirada de Holden Roberto para a França -, e a associação da UNITA passa a ser com o regime do apartheid. No entanto, é interessante notar que nos discursos a que tivemos acesso, o nome de Jonas Savimbi só aparece no primeiro ano do mandato de José Eduardo dos Santos.

Ao mesmo tempo, a entrada dos Estados Unidos no apoio à oposição ao MPLA vem reforçar o papel da UNITA como «fantoche» e «lacaio» do imperialismo, e é o momento em que a bipolaridade da guerra fria se expõe mais claramente no palco da guerra em Angola. Após a queda do Cuando Cubango e parte do Cunene para os sul-africanos, e o reforço da guerra de sabotagens praticada em todo o território pela UNITA e mercenários, Savimbi passa a ser apresentado como o verdadeiro inimigo a vencer, a partir de 1981. No entanto, o MPLA não levou a UNITA em consideração nos acordos de Nova Iorque, e só aceitou negociar com Savimbi após a continuação das ofensivas da África do Sul e do apoio dos Estados Unidos a despeito da assinatura dos acordos. A partir dos acordos de Gbadolite, mediados por Mobutu,  em 1989, é que se pode dizer que a UNITA passou a ser vista como uma força a ser considerada e com quem o governo angolano haveria de negociar.

A partir deste momento, o cenário político mudará e dará lugar a um brevíssimo diálogo entre governo e UNITA, embora as incursões militares continuem quase ininterruptamente. Com as conversações acerca das eleições, os dois lados se vêem obrigados a dar nova roupagem ao conflito: a do desejo pela paz.

  • 1. Os números são ainda muito díspares dependendo da fonte que se utiliza, aqui citamos BENEMELIS, Juan. Castro, subversão e terrorismo em África. Lisboa, Europress, 1986. p. 248. «A 11 de novembro, dia da declaração unilateral da independência por parte do MPLA, existem mais de 7 mil soldados cubanos nesse país. Durante os meses de Dezembro e Janeiro a escalada cubana, OPERAÇÃO CARLOTA, acelera-se elevando primeiro a 12 mil, depois a 22 mil e, finalmente, em março, a 37 mil soldados as forças estacionadas em Angola. No entanto, existe no teatro bélico o equivalente a duas divisões cubanas, reforçadas com artilharia, tanques, aviação, helicópteros, etc. Em fevereiro, a escalada logística soviética ultrapassa os 400 milhões de dólares».
  • 2. Discurso da proclamação da Independência, às zero horas de 11 de novembro de 1975. p.6
  • 3. «Sem unidade não poderemos bater o inimigo ». Discurso proferido pelo Presidente Agostinho Neto, na Praça 1º de maio, no dia do 19º aniversário da fundação do MPLA (10-12-1975). Cadernos Populares, No 1.
  • 4. Correia, Pedro de Pezarat. Angola. Do Alvor a Lusaka. Lisboa, Hugin Editores, 1996. p. 225
  • 5. DOBRYNIN, Anatoly. In Confidence. Moscow’s ambassador to America’s six cold war presidents (1962 – 1986). New York, Time Books, 1995.
  • 6. National Intelligence Bulletin. November 5, 1975. In: http://www.foia.cia.gov
  • 7. Discurso proferido por José Eduardo dos Santos, membro do comitê central e do bureau político, e vice-primeiro ministro da República Popular de Angola, perante a Assembléis Geral das Nações Unidas (admissão de Angola na ONU). Nova Iorque, 1º de Dezembro de 1976. p. 10.
  • 8. Discurso de Agostinho Neto na Sessão de Encerramento da 2a Conferência Nacional dos Trabalhadores Angolanos, em 18 de outubro de 1976. (p.6/7)
  • 9. Discurso do camarada presidente Agostinho Neto no Plenário da Cimeira da OUA (Khartoum, Sudão, 18-21 de julho de 1978). p.13.
  • 10. «A nossa principal tarefa de agora é modificar as relações de produção ». Entrevista do camarada presidente Dr Agostinho Neto para a televisão búlgara. 18 de outubro de 1978. p. 96
  • 11. Discurso no aeroporto de Ndola, ao saudar a população que ali se concentrou à sua chegada. Ndola/Zâmbia, 14/10/1979. p. 411
  • 12. 23o aniversário do MPLA. Benguela, 10-12-1979. in: ABRANTES, José Mena (Org). José Eduardo dos Santos e os Desafios do seu Tempo. Palavras de um Estadista. 1979-2004. Vol I Primeira República – 1979-1992. Luanda: Edições Maianga, 2004. p. 21.
  • 13. Visita ao Huambo. 14/10/1982. in: ABRANTES, José Mena (Org). José Eduardo dos Santos e os Desafios do seu Tempo. Palavras de um Estadista. 1979-2004. Vol I Primeira República – 1979-1992. Luanda: Edições Maianga, 2004. p. 382.
  • 14. 9o aniversário da Independência. Uíge, 19/11/1984. In: ABRANTES, José Mena (Org). José Eduardo dos Santos e os Desafios do seu Tempo. Palavras de um Estadista. 1979-2004. Vol I Primeira República – 1979-1992. Luanda: Edições Maianga, 2004. p. 384.
  • 15. 5o Aniversário da Associação dos Estudantes do Ensino Superior. Luanda, 07/05/1988. p.199
  • 16. Entrevista Colectiva a jornalistas estrangeiros. Luanda, agosto de 1987. p.386
  • 17. 5o Aniversário da Associação dos Estudantes do Ensino Superior. Luanda, 07/05/1988. p.388
  • 18. Entrevista ao semanário Expresso, Benjamim Formigo. Luanda, 25/08/1990. p. 397

por Kelly Araújo
A ler | 23 Agosto 2010 | Agostinho Neto, fnla, guerra civil, guerra fria, Independência, José Eduardo dos Santos, unita