África em mim

“Como sucede com a flor numa planta, é na cultura que reside a capacidade (ou a responsabilidade) da elaboração e da fecundação do germe que garante a continuidade da história, garantindo, simultaneamente, as perspectivas da evolução e do progresso da sociedade em questão.”

Amílcar Cabral, “Cadernos de Resistência Cultural”

Quando a identidade está sedimentada não há discussão, mas no caso do caboverdiano ainda é uma questão que suscita acessos debates. Principalmente quando alguém diz se sentir africano, europeu ou até somente caboverdiano. Já tive dezenas de debates assim e não pretendo entrar em mais um, mas antes contribuir com uma reflexão sobre a africanidade que existe em nós.

Da nossa história podemos entender claramente que a nossa influência cultural vem essencialmente da Europa e da África, mas não conseguimos descortinar o quanto veio de um lado ou do outro. Somos um povo crioulo, mestiço em essência, bebemos de todo o lado. Contudo, esta essência formou-se no ambiente repressivo do colonialismo, onde a cultura de um povo se impõs sobre a cultura de outro de forma a garantir as relações do poder. Essa questão é muito profunda e espelha a dimensão imperialista onde a violência ultrapassava a violência física para se enterrar profundamente na alma daquele que é impedido de expressar o seu próprio ser.

Cabral identificou isso claramente e, no meu entender, esta frase mostra o seu entendimento ancestral da questão. São séculos de repressão a esconder a alma negra que há em nós, pelo que já fazem parte de nós a auto-censura e o hábito de renegar África. Enquanto povo, mesmo após 35 anos de independência político-económica, ainda continuamos a almejar uma verdadeira revolução cultural. O “caderno de resistência cultural” tem apontamentos muito claros sobre o que se pretendia com a independência.

Cabral dizia que “a luta de libertação nacional é um acto de cultura”. Quando vejo o estado da política cultural e os resultados dessa política no actual Estado soberano que é Cabo Verde, sinto que há algo de muito errado neste quesito essencial do progresso da nação. Desde as questões básicas relacionadas com o crioulo à preservação do nosso património cultural, o resgate da história, passando pela promoção cultural interna e internacional, a integração da cultura no contexto da actividade económica e de geração de riqueza. Muito por fazer. Enfim, em qualquer lado onde se busque a influência política constata-se um vazio ideológico que castra ou mesmo mantém o país aquém do nosso verdadeiro potencial.

Qualquer debate nesse sentido é permeado por falsas questões, negação e verdadeiros “braços de ferro” onde todos perdem. A questão do crioulo é um desses tabus que estamos a criar e que remetem para a questão África vs Europa e da identidade. Falsa questão!

O que há em mim de europeu ou de português não está ameaçado se a minha africanidade se manifestar de forma livre. E claro, entre os caboverdianos alguns não terão uma influência africana significativa, mas é preciso libertar a África em mim, em nós, e permitir que a identidade crioula assuma toda a sua miscigenação.

Esse é um conflito resolúvel mas temos primeiro de aceitá-lo. Cabral diz ainda que a resistência cultural é indestrutível e um povo consegue sempre preservar os laços da sua cultura e transmiti-los de geração em geração, mesmo quando submetido às piores condições de subjugação. Daí que sempre houve e sempre haverá resistência à propagação do EU crioulo.

A língua caboverdiana, a expressão artística e toda a manifestação da cultura e da sociedade contêm marcas da nossa africanidade e da nossa criolidade. Se, perante todo esse legado de exclusão cultural a que fomos submetidos durante séculos, ainda mantemos  tudo isso vivo, imaginem então se assumirmos a África em mim e dermos asas aos sonhos!

publicado no blog Pedrabika

por Amílcar Aristides Monteiro
A ler | 2 Junho 2010 | Cabo Verde, crioulo, identidade