Áfricas e Marginalidade: uma recensão de "Voci dal Margine: la letteratura di ghetto, favela, frontiera"
À volta das grandes metrópoles contemporâneas vivem hoje milhões e milhões de indivíduos. A sua marginalização da vida política e social põe a descoberto a falência de um sistema que, discriminando, dá origem às categorias de exclusão.
O exemplo mais evidente disto é o contínuo proliferar de slam, favelas, musseque, kijiji, etc. Nomes oriundos de diferentes línguas que designam uma mesma condição: a do gueto urbano, precária e violenta.
A literatura, entendida como possibilidade de leitura de um determinado contexto, oferece-nos uma alternativa válida para tentar compreender as dinâmicas relativas a este espaço.
O escritor marginal, na periferia da cultura, descreve, fala de uma realidade “outra” e por sua vez torna-se um instrumento de resistência não apenas cultural mas também social.
O livro Voci dal Margine: la letteratura di ghetto, favela, frontiera organizado pelo professor Roberto Francavilla (Università di Siena) debruça-se precisamente sobre esta produção literária.
Ao longo de dezoito ensaios - que pintam uma ampla geografia da exclusão – são analisadas as formas de representação, assim como as figuras e os temas destas produções nascidas em situações de precariedade.
Servindo-se também de instrumentos fornecidos por outras disciplinas, como a antropologia e a sociologia, a obra examina os processos políticos e os seus discursos mediáticos subjacentes, tendo por pedra de toque a relação entre cultura, autoridade e hegemonia.
No interior desta ampla geografia da exclusão, África ocupa uma posição de relevo.
De facto, mesmo quando se fala das favelas brasileras, ou dos subúrbios norte-americanos, as vozes da margem são em geral as de descendentes africanos, sublinhando ainda o peso de uma história marcada pela subalternidade. Isto é evidente no ensaio Ghetti, riserve, frontiere e il mito dell’America s-confinata de Gianfranca Balestra.
Este estudo partindo do conceito de espaço – essencial na cultura e identidade dos E.U.A. – e dos sentidos contraditórios, que lhe são inerentes quando se refere aos afroamericanos ou às populações nativas, evidencia como, aos negros, a América sem confins sempre ofereceu espaços confinados e angustiantes: os porões dos navios, as cabanas dos escravos e os guetos urbanos.
Tais dinâmicas espaciais sempre foram representadas na literatura produzida por estes, através das Slave Narrative, autobiografias de escravos fugitivos, mas sobretudo graças ao movimento inovador de produção cultural que foi o Harlem Renassence.
O corpus central de Voci dal Margine é, no entanto, a análise das obras nascidas no desconforto e no apartheid social das favelas brasileiras e da discussão em torno das relações destas com as instituições e o canone.
As vozes analisadas são em particular as de Carolina de Jesus – autora que, num certo sentido, inaugura esta literatura – Paulo Lins e as dos autores reunidos na antologia Literatura marginal: talentos da escrita periferica organizada pelo Reginaldo Ferreira da Silva, Ferréz.
O Brasil de que falam é o do boom económico e da forte urbanização; um país que esconde atrás da máscara do sincretismo cultural uma forte discriminação racial e onde a cultura é apenas facilmente acessivel a uma elite branca.
Se nos anos sessenta Carolina De Jesus escrevia: Eu disse: o meu sonho é escrever!/Responde o branco: ela é louca./O que as negras devem fazer…/É ir pro tanque lavar roupa, o que hoje em dia, em linha de continuidade, os autores da autodenominada literatura marginal denunciam é um sistema de educação que padece ainda da mentalidade colonial.
Altino Gato Preto, num texto incluído na antologia acima citada e com o significativo título de Faveláfrica escreve: Professor me fale, dos meus líderes, mártires/ Chega de contrastes, ascensão sociedade/Quero a parte que me cabe educação sociedade/ Não quero as calçadas, eu preciso é de aulas. Trabalho informação, não copo de cachaça/O tolo quer maconha, eu prefiro um diploma/Informação, diplomado, doutorado, graduado/Igual Milton Santos foi lá no passado.
É através de uma escrita vivida como envolvimento social e político, impregnada da oralidade e levada aos limites do experimentalismo, que os escritores marginais falam do universo quotidiano da favela.
Uma realidade que, se por um lado é marcada pela violência – tema constante nestas narrativas –, por outro, apresenta-se como um laboratório cultural no qual estes autores reafirmam a consciência da sua própria condição tantas vezes estereotipada.
Refletindo especificamente sobre o tema da violência, o ensaio Violenza e letteratura: Angola e Brasile, cammini paralleli de Tânia Macedo oferece-nos uma leitura comparada destes dois sistemas literários historicamente ligados por um forte intercâmbio cultural.
Não obstante partirem das mesmas tensões – a relação indignada frente à violência exercida pelo poder – as representações são bastante diferentes.
O tema da violência na literatura brasileira pós Rubem Fonseca é desenvolvido num espaço físico bem definido que é o da favela e dos bairros longe do centro. É nestas ruas que habita a eterna figura do bandido que fascina e assusta. Um bandido que podemos definir como “a-social” em oposição ao “bandido social” teorizado por Hobsbawn como aquele que visa, através do crime, um projecto político de revolta.
Contrariamente, nas narrativas angolanas não é comum encontrar estas figuras. O tema da violência, predominante a partir dos anos noventa, é desenvolvido principalmente de modo humorístico e disso resulta a sua banalização.
Humorismo e paródia são os instrumentos através dos quais são retratados os principais alvos da crítica: a emergente burguesia de Luanda e a prática de acumulação selvagem de capital em que o país está envolto desde o fim da guerra.
As investigações acerca das produções periféricas desenvolvidas em Voci dal margine convocam também áreas que não a das letras.
André Siqueira em La voce del Morro. Samba e resistenza culturale reconstrói os mecanismos de inclusão e exclusão de que foram objecto as práticas africanas subjacentes ao Samba, hoje género musical caraterístico do Brasil.
Discursos mediáticos e processos políticos acionados na Costa do Marfim durante a recente crise política e económica são tratados, através dos instrumentos da antropologia cultural por Armando Cutolo.
A pesquisa etnográfica mostra como na cidade de Abidjan, propagandeando um confuso discurso nacionalista e anticolonal, toda uma geração nos limites da vida política e social tentou lançar os fundamentos da emancipação e do reconhecimento identitário.
Investigando e percorrendo criticamente diversas produções que têm em comum o mesmo destino – o da exclusão – Voci dal Margine leva a cabo um importante trabalho de resistência cultural.
Porque se estas vozes têm por tarefa salvar do esquecimento, da homogenezação dos estereótipos, realidades e representações incómodas para o discurso hegemónico, é necessário um forte eco para se fazerem ouvir por quem faz orelhas moucas.
VOCI DAL MARGINE – LA LETTERATURA DI GHETTO, FAVELA, FRONTIERA
Organizado por Roberto Francavilla
ARTEMIDE, MARÇO 2012, ROMA
REFERÊNCIAS EM VOCI DAL MARGINE
- Violenza e letteratura: Angola e Brasile, cammini paralleli,Tânia Macedo
- Letteratura marginale: la lingua come coltello, Célia Tolentino e Silvana Benvenuto
- “Non chiediamo permesso: sfondiamo la porta”. La letteratura di favela, Roberto Francavilla
- Note a margine a Quarto do despejo, Silvia Annavini
- La voce del morro. Samba e resistenza culturale, André Siqueira
- Ghetti, riserve, frontiere e il mito americano dello spazio s-confinato, Gianfranca Balestra
- Dai margini al centro. Anticolonialismo e afrocentrismo nelle orazioni dei jenues patriotes ad Abidjan, Armando Cutolo