Estátua 'Aos Heróis do Ultramar'. Coimbra, PortugalEm Coimbra a estátua em honra aos Heróis do Ultramar, representada por um soldado da guerra ‘colonial’ com uma criança negra e nua às costas apesar de ser um monumento de 1971, foi reinaugurada com pompa oficial em 2005, quando realocada para o seu local actual, o que nos diz muito sobre o reforço destas imagéticas e discursos em pleno estado democrático, após o “revolucionário” 25 de abril.
Façamos um exercício reflexivo sobre a simbologia destas duas estátuas - Pe. António Vieira em Lisboa e Heróis do Ultramar em Coimbra - não basta representar aquilo que propõem, elas são ambas “adornadas” por crianças nuas, negras e indígenas. A simbologia transparece, não é preciso muito esforço. Fica evidente que a representação é a de que os povos racializados são infantilizados, imaturos, e necessitam da proteção do homem branco heróico e altruísta, no seguimento da sua missão civilizadora.
Para os defensores de Pe. António Vieira, talvez seja importante sair da ignorância da história única e compreender o papel da Igreja Católica durante a colonização. O debate conhecido como Valladolid, entre Bartolomé de las Casas e Ginés de Sepúlveda ilustra esse papel da Igreja no colonialismo das Américas (1). O debate girava em torno da ‘guerra justa’ e se seus princípios se aplicavam aos povos das Américas, ou seja, era uma decisão sobre quem era humano, ou quem tinha alma, para finalmente aferir se poderia ou não ser escravizado. Se por um lado os negros africanos não foram objeto de grandes defesas por ícones da Igreja Católica, os indígenas tiveram uma pretensa defesa. Porém, aqui é preciso entender quais eram os limites do debate. A dita “defesa dos indígenas” era em afirmar que estes tinham alma e, consequentemente, poderiam ser catequizados. A proposta do Pe. Vieira era de que os povos se tornassem vassalos da Coroa Portuguesa e que pagassem um imposto para o rei de Portugal (2). Assim, o processo “civilizatório” era intermediado pela Igreja, para quem esses povos trabalhariam e pagariam o referido imposto, já que afinal “o trabalho liberta” (Arbeit macht frei…). Se voltarmos ao debate de Valladolid e às suas consequências para as colônias da Coroa Espanhola veremos que a proibição da escravidão indígena ocorreu e que os povos foram tratados como servos, tendo que pagar o tal imposto, mas isso não impediu a dizimação, a exploração e expropriação dessas populações. Para quem conhece essa história sabe o que significou a imposição do imposto indígena e a instituição da servidão, que reduziu os povos à condição de escravizados, apenas utilizando outro nome. Quem desejar saber mais sobre essa prática, pesquise sobre a mita (imposto indígena) no caso do Peru, por exemplo.
O chacoalhar das águas levantou questionamentos fundamentais para a construção de uma sociedade anticolonial. O deslocamento do olhar para o tipo de memória que se pretende assegurar nos espaços públicos é vital para a construção de uma sociedade antirracista e democrática. À medida que se mexem as correntes, sobressai-se a importância de pautar sobre avenidas, ruas e praças como constituintes de um passado, presente e futuro, como alocadores de histórias que não podem serem vistas como neutras, tampouco como simplesmente estáticas. Vamos compreendendo as diferentes camadas do nosso papel enquanto transformadores dessa história, e de que é preciso encarar a discussão com seriedade e compreender que “todo documento é monumento”, da mesma forma que “todo monumento é documento” e, portanto, é poder que precisa de ser tensionado, pois aqueles que têm o poder para contar, narram os discursos que lhes são convenientes.
Protesto Antirracista 'Justice For Floyd', Coimbra, 6 de Junho de 2020
A onda formada no mar negro de junho, assobiando mudanças, colocou-se diametralmente oposta a esta consolidação colonialista. Pelo mundo passa levando imagens, discursos e poderes, e arrastando para fora das praças públicas histórias cristalizadas, reclamando outro tipo de memória para o espaço público colectivo e construído por todos. O ato de derrubar uma estátua de um colonizador representa também um processo histórico, e barrá-lo supõe estar contra às águas móveis do próprio curso da história. Ao cortar a cabeça de pedra de um colonizador, ao retirá-lo de pedestais e lançá-lo aos rios, pretende-se questionar a maneira com a sociedade é regida desde as suas estruturas fixas mais violentas. Pretende-se colocar em xeque todas as brutalidades e opressões advindas da colonização e denunciar as continuidades históricas que continuam a segregar, violentar e matar pessoas racializadas de forma sistemática. Pretende-se dar contornos diferentes às relações sociais nas quais o racismo não seja um empecilho para a experiência da humanidade. Quando estes tsunamis invadem os espaços partilhados de uma forma tão inevitável e assertiva, eles afirmam que “vidas negras importam”, e mais do que isso, que “histórias negras importam!”
“Um vento, e eu de todo exilada. Um vento, e eu desfeita, calada. Um vento e, pobre de mim, sou toda feita de Água” Lívia Natália, Águas negras e outras águas (2016)
1. GOMES, Renata Andrade (2006). “Como que direito”: análise do debate entre Las Casas e Sepúlveda Dissertação de Mestrado - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2. BOSI, Alfredo. (2009). Antônio Vieira, profeta e missionário: um estudo sobre a pseudomorfose e a contradição. Estudos Avançados, 23(65), 247-270. https://doi.org/10.1590/S0103-40142009000100017
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