Amílcar Cabral, um agrónomo antes do seu tempo
Nota da editora (MaRta Lança): Tropecei neste email antigo do Pepito (Carlos Schwarz) com um artigo anexo que elucida a visão de Cabral sobre a agricultura na Guiné Bissau. O email continha esta explição introdutória que também me parece interessante republicar. O artigo foi publicado no site da Associação para o Desenvolvimento, e pode ser útil para rever, à luz de 7 anos volvidos de ser escrito, o que Cabral encontrou no seu regresso à Guiné e como pensou as questões agronómicas do seu país. Vale sempre a pena reafirmar a vitalidade do pensamento de Amílcar Cabral.
[Este ano (2013), no dia 20 de Janeiro, assinala-se o 40º aniversário do primeiro assassinato de Cabral, em Conakry. Depois destes anos todos, os dados são mais claros, conhecendo-se muito melhor os organizadores, os mandantes e os coniventes, já que os executores nunca houve dúvidas sobre eles. Embora haja quem persista em considerar, ao mesmo nível, a eventualidade da implicação de três organizadores: Spínola, Sekou Touré e alguns dirigentes do PAIGC, cada vez fica mais evidente que o principal organizador foi Spínola, que obteve aí a sua única vitória na vida.
Não foi uma vitória militar, porque ele nunca a teve, mas sim política.
O ponto mais forte e simultaneamente mais fraco da Luta, era o da “unidade Guiné-Cabo Verde”. Ele conseguiu jogar essa cartada e mobilizar para a sua causa, militantes politica e mentalmente pouco preparados, predispostos para a traição e com uma ambição desmedida.
No 14 de Novembro, Cabral volta a ser assassinado no golpe de estado dirigido por Nino Vieira. Se durante três dias não se falou de PAIGC, já de Cabral então foi o silêncio completo durante longos anos.
Hoje, golpistas e seus mentores, voltam a agitar a bandeira de Amílcar Cabral, dizendo-se seus verdadeiros continuadores. Mas, porque nunca perceberam nem entenderam o pensamento de Cabral, falam do Cabral morto, não das suas ideias, posições políticas e opções ideológicas.
Saberão eles que Cabral recusou, no início da luta, deslocar-se à Argélia após o golpe de estado que derrubou Ben Bela, porque não pactuava com estes métodos?
Conta o jornalista-cronista francês, Gérard Chaliand, que acompanhou e divulgou a Luta de Libertação da Guiné-Bissau, no seu livro de memórias “A ponta da navalha” que quando disseram a Nelson Mandela “tu és o maior”, este respondeu com toda a simplicidade “não, o maior é Cabral”. Quarenta anos depois, a AD partilha um ensaio sobre o pensamento agronómico de Amílcar Cabral, “Um agrónomo antes do seu tempo”. É o nosso pequeno contributo.]
À memória de meu pai Artur que, desde criança
me incentivou, sem que eu me apercebesse,
a seguir os caminhos da agronomia
À minha mãe Clara que sempre esteve solidária
com as minhas opções e nas mãos de quem vi,
pela primeira vez e ainda nos tempos da ditadura,
os símbolos do PAIGC
À Isabel, minha forte e decidida companheira de sempre
nesta caminhada difícil mas extraordinária
Aos meus filhos Cristina, Ivan e Catarina
que partilham corajosamente e sem hesitações
os sobressaltos políticos da vida dos seus pais
Às minhas netas Sara e Clara com a esperança
de um dia poderem viver tranquilamente
na terra adiada com que Cabral sonhou
Aos 28 anos de idade, em setembro de 1952, poucos meses após ter terminado o curso, regressava à terra que o viu nascer, o agrónomo Amílcar Cabral.
No pensamento trazia certamente as palavras que seu pai, Juvenal Cabral, escrevera no livro Memórias e Reflexões, quando se instalara em Bissau em 1911, após “ter deixado as rochas nuas da Paria Negra, da Achada Grande, do Lazareto, e cujo aspeto, severo e triste, parece simbolizar o sofrimento e a dor, meus olhos, maravilhados, contemplaram sem cessar a paradisíaca majestade da flora que, de modo misterioso parece emergir do mar! Por toda a parte árvores frondosas, lindos e esquisitos arbustos que, verdejantes, se espalham pelo solo como tapetes no chão”. “Tudo isto é opulência e vigor, é maravilha que encanta, é riqueza que seduz e predispõe um rapaz a encarar com otimismo a vida neste país.”
Esta visão de seu pai terá influenciado Amílcar Cabral a optar por exercer a sua profissão na Guiné, para além de que, naquela época, a agricultura em Cabo Verde estar votada ao abandono e onde a maior parte dos homens emigrava para o norte (EUA, Portugal e Holanda) à procura da sobrevivência e da vida, tanto mais que outros, desde o final do século XIX, demandavam a Guiné para se dedicarem à agricultura, especialmente cana-de-açúcar, quase sempre associada ao fabrico de aguardente de cana.
Um agrónomo que quisesse de facto exercer a sua profissão, teria de optar pela Guiné, onde tudo podia ser feito, onde tudo estava por fazer e onde a quase totalidade dos habitantes eram pequenos agricultores “indígenas”.
Acompanhava-o a sua primeira mulher, Maria Helena Rodrigues, silvicultora, que, chegando três meses depois dele, ia conhecer pela primeira vez a cidade de Bissau, nessa altura uma pequena urbe com poucos habitantes, espalhados por duas zonas distintas: de um lado a cidade colonial, dita “civilizada”, que incluía a Fortaleza da Amura, o agora chamado “Bissau Velho”, o porto de Pindjiguiti e a avenida da República, hoje Amílcar Cabral. Esta parte estendia-se até ao monumento “Esforço da Raça” e ao Palácio do Governo, nessa altura ainda em construção; do outro, à volta do centro, localizava-se a parte popular, dita dos “indígenas”, onde vivia maioritariamente a etnia papel.
Era na parte colonial que moravam os poucos intelectuais presentes no país e se encontravam localizadas as grandes firmas estrangeiras como a NOSOCO e a SCOA, às quais se juntavam as portuguesas (A.C. Gouveia, Barbosa & Comandita, Álvaro Camacho e Sociedade Comercial Ultramarina, entre outras) e uma enorme plêiade de pequenos comerciantes libaneses como Mamud ElAwar, Aly Souleiman, Michel Ajouz, etc.
No resto do país, o comércio de produtos e bens elementares era fundamentalmente assegurado pelos “djilas”, comerciantes ambulantes que percorriam de bicicleta e canoa todo o território.
A agricultura, então chamada de “indígena”, assentava na produção de arroz para o autoconsumo das comunidades rurais, a qual era praticada há cerca de três mil anos e na produção de uma cultura de exportação, a mancarra (amendoim) incentivada pelas empresas estrangeiras que se revezam na sua exportação para a Europa (em bruto ou em óleo). O ciclo da mancarra começa na zona de Buba, incentivada por alemães e percorre um itinerário fácil de identificar pela erosão e degradação dos solos que provoca na Guiné e que passa por Bolama, norte do Oio, Bafatá e Gabú.
Os serviços oficiais de apoio aos agricultores eram praticamente inexistentes ou inoperacionais, confinando-se dentro das infra-estruturas técnicas e administrativas que construíam. Não existia nenhum centro de experimentação, de formação de quadros ou de vulgarização.
Este foi o contexto global com que Cabral se deparou à sua chegada a Bissau, ele que vinha para, como dizia, “viver o seu tempo e a sua época”, iniciar os desafios políticos da luta pela conquista da independência, defender um desenvolvimento centrado na agricultura e promover a dignidade da população guineense.
Ele e Maria Helena instalam-se na casa da Granja Experimental do Pessubé, atribuída ao seu diretor, na altura situada muito longe do centro de Bissau, num bairro popular da periferia e numa zona isolada e de difícil acesso. A Granja dispunha de cerca de 400 ha onde existia grande número de essências florestais e um pequeno número avulso de algumas espécies frutícolas, como por exemplo cacaueiros.
Nesta altura, quando começa a exercer a sua profissão, Amílcar está convencido de que o processo de independência decorrerá de forma pacífica, nos moldes como vinha acontecendo nos outros países africanos, pelo que decide começar a construção do novo edifício conceptual agrícola que iria substituir gradualmente o modelo colonial existente.
A Granja de Pessubé vai ser o ponto de partida para pôr em prática uma estratégia, em três vertentes principais, que ele considera importantes para o desenvolvimento da agricultura guineense:
» a primeira, foi a de transformar a Granja de mera unidade de produção de legumes destinados às autoridades políticas e administrativas coloniais da praça e num local de piqueniques e passeios recreativos, num centro de pesquisa agrícola, enquanto instrumento para melhorar e modernizar a produção dos agricultores.
Cabral concebe e põe em aplicação um programa de experimentação baseado na identificação de técnicas culturais para diferentes espécies agrícolas (compasso, armação do terreno, adubação e época de sementeira), de ensaios de adaptação varietal (arroz, cana-de-açúcar, mancarra, banana, algodão e hortícolas), identificação de pragas e doenças, valorização de variedades locais de certas espécies, como a “juta”, e a introdução de novas espécies como o gergelim (sésamo), soja e girassol.
Começa um trabalho de aproveitamento dos terrenos agrícolas da Granja, utilizando critérios inovadores, em função da natureza dos solos e da sua aptidão, apostando na sua fertilização orgânica com base nas camas dos animais da Granja da Pecuária, na consociação de culturas (mandioca-bananeiras), identificação de pragas e doenças, caracterização das variedades de cada espécie.
Dá início, pela primeira vez, à publicação de resultados da experimentação e de reflexões sobre a agricultura guineense, criando para isso o “Boletim Informativo” trimestral da Granja Experimental de Pessubé onde, para além da descrição das atividades, propunha a reflexão sobre temas importantes, como a “cultura mecanizada”, o “vírus da roseta da mancarra” e a “cultura da juta”.
Com uma regularidade notável, foram publicados, desde Novembro de 1952, cinco “Boletins Informativos”.
» a segunda, foi o de romper os muros internos em que se confinavam os serviços agrícolas, para os aproximar dos agricultores, que deviam ser os seus principais beneficiários.
Para Cabral, mais do que o refrão da época, “a agricultura é a base da economia”, ele defendia claramente que “a agricultura era a própria economia da Guiné” pelo que era importante os serviços aproximarem-se dos pequenos agricultores.
É assim que a Granja de Pessubé passa a executar ensaios e experiências agrícolas nos postos de Bula, Safim, Bigene, Nhacra e Prábis, fazendo aquilo a que hoje em dia se chama de “ensaios em meio camponês”, como forma de testar a sua adaptabilidade às diferentes condições ecológicas e sistemas de cultura dos agricultores.
O projeto FAO de recenseamento agrícola, aprovado pelo governo português em 1947 e logo metido na gaveta, na qual pernoitou durante mais de 4 anos, é rapidamente retomado por Cabral, poucos meses após a sua chegada a Pessubé, o qual estuda, planeia e executa. Para ele, o censo não era apenas um conjunto de quadros e números, mas também a possibilidade de ler, compreender e agir sobre a dinâmica agrícola prevalecente.
Este trabalho permitiu-lhe definir de forma precisa a contribuição dos diferentes grupos étnicos guineenses para a produção agrícola, servindo ainda hoje, passados 60 anos, para compreender os sistemas de produção e de cultura por eles praticados.
Por outras palavras, o censo fez sair os serviços agrícolas da sua torre de marfim em direção aos campos dos agricultores, confrontando-os com a realidade que deviam servir e possibilitando a procura de soluções para os seus problemas fundamentais e para a modernização agrícola.
» a terceira, foi a da interação da agricultura guineense com as dos países vizinhos da sub-região
Consciente de que o reduzido número de quadros técnicos e a constante falta de recursos impediriam que a pesquisa agrícola fosse realizada e trouxesse resultados úteis e práticos aos agricultores, Cabral fomentou a vinda a Pessubé de diversos técnicos, como a missão pedológica francesa de Dakar, especialistas em cana-de-açúcar, entomologistas, etc.
A participação de Amílcar Cabral na “Conferência internacional Mancarra-Milheto”, realizada em Bembey, Senegal em 1954, onde apresenta a comunicação “Queimadas e pousios no ciclo cultural Mancarra-Milheto”, é uma prova eloquente da sua estratégia de conhecer os resultados experimentais de estações estrangeiras mais antigas, com maior número de técnicos e para marcar a presença e capacidade dos técnicos guineenses nos circuitos científicos da sub-região, aspeto que ele considerava determinante para o período pós-independência.
Internamente, vai começando a criar um núcleo de quadros técnicos que possa garantir a continuidade e reforço destes programas. Deles, realçam-se dois:
Bacar Cassamá, monitor agrícola da Granja, é a primeira pessoa de quem se aproxima e com quem criará relações de amizade e confiança até ao final da sua vida. Alto, forte, sério, de rizo difícil, com quem terá repetidamente discussões sempre ultrapassadas, porque na sua maneira de ser, a melhor forma de ser honesto era dizer claramente ao “engenheiro” a sua posição e o que pensava. Homem que nunca dobrou a coluna, continuou seu amigo e fiel ao PAIGC, mesmo depois do Golpe de Estado de Nino Vieira, quando houve a tentativa de apagar Cabral da história da Guiné-Bissau. Acaba por falecer em 2012, esquecido e abandonado por muitos companheiros, com algumas exceções como a de Pedro Pires, ele que foi quem mais tempo acompanhou Cabral.
Júlio Mota Almeida, prático agrícola na Granja, que acaba por estar presente na fundação do PAIGC em Bissau, em Setembro de 1956. Morre em Portugal em 1982.
Durante dois anos e meio, Cabral percorre a Guiné de lés-a-lés, observando, estudando e escrevendo sobre o fácies da agricultura guineense. Cite-se o caso do estudo local das queimadas e pousios em Fulacunda. Determinante foi a realização do recenseamento agrícola onde, à frente de uma equipa técnica, contactou agricultores, lideres comunitários, jovens e mulheres, apercebendo-se das diferentes lógicas de pensamento e ação de cada grupo étnico, as suas potencialidades e as fraquezas e, sobretudo, as prioridades mais sentidas na promoção da sua forma de vida.
Em Março de 1955 sai de Bissau num avião da Air France, por imposição das autoridades políticas governamentais coloniais, que o acusam de exercer atividades conspiratórias pela independência da Guiné, o que efetivamente correspondia à verdade, mas não lhes dava esse direito. Autorizam-no a vir anualmente a Bissau, o que ele aproveita em 1956, para colaborar com outros nacionalistas na fundação do PAIGC, num dia de Setembro que mais tarde acaba por ser arbitrariamente fixado como sendo o dia 19. Também em 1959, já com 35 anos de idade, vem a Bissau no ano do Massacre do porto de Pindjiguiti, momento determinante para Cabral perceber que a conquista da independência teria de ser obtida pela luta armada de longa duração e não da forma pacífica pela qual ele sempre pugnou.
Desde que foi expulso da Guiné, Cabral continuou a desenvolver a sua atividade agronómica em Portugal e Angola, dedicando-se sempre à reflexão sobre a agricultura guineense, salientando-se a publicação na revista AGROS, da Associação de Estudantes de Agronomia, do seu texto: “A agricultura na Guiné, algumas notas sobre as suas características e problemas fundamentais”.
Em 1960, estimulado pela independência da Guiné-Conakry e do NÃO à França dado em 1958, decide estabelecer-se definitivamente em Conakry, certo que era o local ideal tendo em consideração a forma como o Senegal tinha decidido aceder à independência. As vicissitudes que a guerrilha passou neste país durante os 11 anos de Luta, veio mostrar que a sua visão estava correta.
Poucos anos antes do seu assassinato, em 1972, consciente de que a vitória militar era um dado adquirido e surgiria a curto prazo, começa a dedicar mais do seu tempo à conceção do futuro Estado da Guiné-Bissau e aí volta a agricultura a estar presente no futuro programa. A vivência em Conakry permitira-lhe identificar os reais perigos com que o novo país se iria confrontar no pós-independência. Um deles são os “atrativos” que a cidade de Bissau iria exercer na cúpula dirigente dos guerrilheiros, a tendência para a intriga e complot político e, finalmente, o descanso do guerreiro. O outro, era o do inevitável esquecimento e afastamento gradual dos dirigentes em relação às populações que haviam participado na Luta. Uma das ideias que Cabral estava a desenvolver quando é assassinado, era o da criação dos diferentes Ministérios governamentais, um em cada uma das capitais regionais do país. Mantinha os dirigentes perto dos cidadãos, empurrava-os para resolverem os problemas concretos das populações e diminuía o risco do “diz que diz”, da conflitualidade estéril e da intriga política. É o retomar da tese de agrónomo de que os técnicos e decisores não se devem fechar entre portas, mas estar perto dos beneficiários do seu trabalho.
O pensamento agronómico de Cabral
A primeira grande e decisiva rutura com os conceitos estabelecidos, dá-a Cabral desde o início, já quando estava a realizar a sua tese no Alentejo. Na altura, vigorava o princípio de que o avanço da agricultura se faria exclusivamente através da introdução de novas técnicas agrícolas. Mais tarde viriam a designar esta opção como “pacote tecnológico”. Cabral, embora reconhecendo a necessidade de se fazer uso de técnicas alternativas, centra no Homem o desafio de toda a evolução agrícola. Basta ver que a agricultura colonial se fazia baseada exclusivamente no trabalho de especialistas das doenças do cafeeiro, de solos, etc., sem que a agricultura fosse vista como um conjunto de componentes em que o ator principal era o agricultor, sujeito ativo e interessado na sua evolução.
Cabral rompe com essa visão e integra o elemento humano, o agricultor, como o elemento determinante da modernização agrícola, desempenhando a introdução de novas técnicas agrícolas como uma resposta aos problemas sentidos pelos agricultores. Nesses tempos, fruto desta visão, culpabilizava-se facilmente os agricultores pelo falhanço da não ou má-utilização dessas técnicas, sem se perceber que o nó do problema residia na não compreensão por parte dos técnicos das reais prioridades dos agricultores. É curioso notar que, hoje em dia, aparecem técnicos na Guiné-Bissau, com uma visão ridiculamente oposta, afirmando que não são necessárias inovações técnicas, devendo-se deixar os agricultores entregues a si próprios, uma vez que eles praticam milenarmente a agricultura e já sabem tudo.
Para Cabral, a modernização da agricultura devia partir do conhecimento dos sistemas agrários e não da sua compartimentação em disciplinas agrícolas, em que se corria o permanente risco de se ter uma visão e ação parcelar dos desafios locais. Cabral, já nessa altura, perfilhava a tese de que se devia ter simultaneamente um conceito global dos desafios da agricultura e o sentido realista de intervir pontualmente, com respostas práticas às necessidades dos agricultores. Por outras palavras, eram estes que deviam determinar a agenda agrícola da pesquisa e vulgarização e não as estratégias da metrópole colonial a definir a mancarra, o algodão, o café, o cacau, etc., como as espécies a incrementar nas diferentes colónias.
Foi o primeiro a questionar o sistema de agricultura baseado na monocultura, naquela altura o da mancarra, o que representava um perigo para a economia com as flutuações anuais dos preços nos mercados externos, o que colocava o agricultor numa situação de dependência, risco e incerteza. Também a monocultura sujeitava-o à possibilidade de, num mau ano agrícola, não dispor de nenhuma alternativa financeira para fazer frente às suas necessidades alimentares. Acresce que, no caso da mancarra, provocava uma irreversível degradação dos solos, em especial através da sua erosão. Este alerta não só não foi ouvido na altura, como não foi compreendido no pós-independência, estando a Guiné-Bissau a viver hoje o drama do cajueiro. Para Cabral, era preciso “diversificar a produção para não depender só de um produto”.
A importância da implantação de um “sistema de pesquisa-vulgarização” foi assumido desde o início da sua atividade como agrónomo. A transformação do estatuto da Granja de Pessubé em centro de experimentação agrícola, assim como a criação de uma rede de postos dispersos no país para a realização de ensaios de adaptação varietal, evidencia a importância da dinâmica “experimentação-divulgação” na modernização da agricultura guineense. De tal forma que os primeiros resultados dos ensaios realizados, começaram logo a serem difundidos e utilizados.
Os perigos e limites da mecanização agrícola (Cabral refere-se apenas à motorização, não incluindo a tração animal) são exaustivamente abordados num texto de 1953, uma vez que ele é confrontado, logo à sua chegada a Bissau, com uma tese muito em voga, que atribuía o atraso da agricultura guineense ao não uso de tratores agrícolas.
Chama a atenção para vários aspetos, sejam eles de ordem técnica ou socioeconómica, entre os quais o da maioria dos solos agrícolas (encosta e planalto) ser de pequena profundidade útil e “vocacionados” para a erosão, pelo que a mobilização do solo por tratores podia revelar-se prejudicial quando ultrapassa os horizontes aráveis. Existia a ideia errada de que, com a mecanização, se iria aumentar os rendimentos unitários das culturas, quando o máximo que aconteceria, era o aumento da produção. A motorização começa por ser uma questão cultural que exige do agricultor um relacionamento com o motor nos domínios da manutenção, funcionamento correto, planificação, programação, compra de peças sobressalentes, tratoristas, mecânicos, sendo que tudo isso necessita de levar o seu tempo e consolidar-se de forma gradual e lenta. Finalmente, a sustentabilidade financeira do trator prende-se com a sua utilização em culturas comerciais, podendo penalizar a segurança alimentar da unidade familiar de produção e, consequentemente, do país.
A indiscriminada “recuperação de bolanhas”, feita a eito e sem critério, com o único objetivo de aumentar a superfície cultivada e de ganhar dividendos políticos, foi posta em causa por Cabral, que defendia que o grande desafio que se deparava à agricultura guineense era o do aumento dos rendimentos unitários para ter maiores produções e não o de apostar apenas em aumentar as áreas cultivadas. Na recuperação de bolanhas o caso é ainda mais pertinente, uma vez que são solos com características bem específicas, em que os níveis de salinidade e de acidez são determinantes para inviabilizar os solos ou deles obter rendimentos tão baixos que não justificam o investimento. De nada serve recuperar bolanhas onde se obtenham reduzidas produções de arroz. Curiosamente, esta questão ainda hoje está na ordem do dia, aparecendo decisores e financiadores a investirem em recuperações de bolanhas de produção duvidosa e discutível, politique oblige…
A luta contra a degradação dos solos devido às praticas culturais que favoreciam a sua erosão, a escolha de espécies que acentuavam a diminuição da sua fertilidade, o aumento das queimadas e a redução do período de pousio que limitava a regeneração dos solos mais frágeis, foi outra tónica dominante do pensamento agronómico de Cabral. Procedeu a vários estudos locais e à redação de textos sobre estudos realizados em Fulacunda, insistindo na necessidade da modificação de técnicas culturais que contribuíssem para diminuir os riscos de erosão e para o reforço da sua fertilização, como o do uso da prática da consociação de culturas, o prolongamento do período de pousio e o da preocupação com a cultura de espécies penalizadoras, como a mancarra.
É interessante notar as preocupações ambientais de Cabral, numa época em que elas não existiam e, sobretudo, defendendo um conceito mais avançado, que ainda hoje não é compreendido nem aceite por alguns ecologistas fundamentalistas. Para Cabral, “o Homem também é natureza” e este tanto era percebido como alguém que contribuía para desregular os recursos ambientais, como era visto como o incontornável promotor da sua preservação, em função dos diferentes sistemas de produção das diversas etnias (a que ele chamava “povos”) e a sua atitude perante o uso que cada um fazia dos ecossistemas. Cabral “ambientalista” fazia-se notar sobretudo nas suas reservas à mecanização, à erosão dos solos, às queimadas incontroladas, aos curtos pousios, ao pouco uso da consociação de culturas e à reduzida prática da fertilização natural dos solos. Não considerava o agricultor como um anti-ambientalista que precisasse de ser “educado”, como muitos ainda hoje defendem, mas como o elemento determinante para que, gerindo bem os recursos, os pudesse vir a utilizar em proveito próprio.
Este conjunto de pensamentos que Amílcar Cabral defendia de forma pragmática, mostra até que ponto foi um agrónomo antes do seu tempo, não nos custando a aceitar que, com ele, o pós-independência teria sido muito diferente.
A luta pela independência enquanto programa de desenvolvimento integrado
A forma como Cabral abordou a execução do censo agrícola, acaba por ter os mesmos princípios norteadores que o levam a encarar a preparação da luta pela independência. No recenseamento ele foi confrontado com a exiguidade de recursos humanos, a falta de meios logísticos e poucos recursos financeiros, mas isso não o impediu de levar a tarefa por diante, com enorme sucesso, de tal forma que ainda hoje, 60 anos depois, ele é a base de qualquer informação séria de que se necessite. Também a Luta é começada a preparar com reduzidos recursos, mas é igualmente um sucesso, porque assenta na vontade, determinação, convicção e competência daqueles que nela se envolvem. Contrariamente à tendência “habitual”, que ainda hoje persiste, de nos escusarmos na falta de meios para justificar a nossa incapacidade ou desinteresse, Cabral concebeu uma estratégia a partir da valorização dos poucos recursos que existiam, condicionando o ritmo de avanço e de progresso ao seu aumento e ao maior domínio que deles se ia conseguindo. Durante todo o período da Luta, este foi um princípio sagrado de Cabral, consubstanciado na palavra de ordem: “não dar um passo maior que a perna”.
Cabral optou pelo envolvimento gradual dos camponeses nas ações, por fases, à medida que os protagonistas iam adquirindo competências e saberes, sem nunca ter pressa em acelerar o ritmo de execução e acabar por “descolar” dos militantes rurais. Nunca imprimiu uma dinâmica que queimasse etapas e exigisse dos camponeses, o maior viveiro de combatentes, atividades para as quais ainda não estavam preparados, apostando tudo na sua organização e capacitação. Tal como se passa na agricultura, a Luta começa com ações simples e de resultados imediatos, que entusiasmam e mobilizam os seus participantes, os quais vão compreendendo e apropriando-se dos mecanismos de conceção e decisão, ganhando maturidade organizativa que lhes permite assumir novas responsabilidades.
Tal como se passa no associativismo agrícola, é importante ter grupos de liderança pequenos, dinâmicos e consequentes, de nada valendo pensar que ter direções pletóricas de militantes é uma boa forma de fazer todos participar. Quando o grupo é grande, começa a verificar-se uma demissão de responsabilidades, empurrando para os outros as suas próprias funções e atribuições e acabando por ficar reduzido à sua expressão mínima, com o inconveniente de se tornarem lideres descrentes e inconsequentes. Privilegiando-se a criação descentralizada de vários grupos de ação em função das atividades e em que os lideres irão sendo envolvidos pelo seu engajamento, capacidade de trabalho em grupo, mobilização dos recursos humanos e pragmatismo criativo na condução das ações, a ocupação territorial é mais consequente.
À partida, um processo de desenvolvimento inovador é sempre minoritário, pelo que, para Cabral se impôs começar pequeno e evoluir gradualmente para um final com grande número de iniciativas simultâneas, coordenadas e reciprocamente potenciadoras. De nada serviria começar a toda a velocidade, gerindo muitas iniciativas ao mesmo tempo para, em pouco tempo e sem a experiência dos quadros locais, se perder o rumo e cair no descrédito. A descentralização dos grupos de ação favoreceu que os melhores militantes sobressaíssem mais rapidamente, que adquirissem maior poder de iniciativa sem ficarem amarrados a uma estrutura centralizada e pesada.
Um processo de desenvolvimento para ser independente devia envolver parceiros estrangeiros o mais diversos possível, pelo que nunca se limitou aos países de leste (China, URSS e os outros do Pacto de Varsóvia), sensibilizando países ocidentais, como a Suécia, e organizações militantes dos EUA, Alemanha, França, etc. Cabral, tal como se opôs à monocultura, apostou forte na diversificação que lhe permitiu garantir a independência de pensamento e ação do PAIGC e ultrapassar sem problemas de maior o conflito sino-soviético, o qual chegou a ser ocasionalmente condicionante.
Amílcar Cabral, embora tenha dedicado, por razões óbvias, uma particular atenção à frente armada, concebeu a Luta pela Independência como um processo onde todas as componentes da vida humana assumiam uma igual importância: saúde, educação, justiça, comércio, cultura, conhecimentos locais, sensibilização internacional, infraestruturas e a agricultura. A sua formação e prática de agrónomo contribuiu certamente para esta perceção, defendendo desde o princípio que não desejava militares mas sim “militantes armados”, isto é, lembrando a todos que as armas eram apenas um momento circunstancial e que o mais importante era o desenvolvimento integral do país. O futuro veio a mostrar, de forma dramática, que Cabral perdeu esta sua aposta. Se durante a Luta era o Comissário Político que dirigia o comandante militar, já poucos anos depois da independência o militar considerou ser o único responsável pelo sucesso da Luta.
Tanto mais dramáticas são as consequências que se registaram, quanto Cabral sempre se assumiu como uma pessoa profundamente antimilitarista:
» desde o início tenta persuadir o poder colonial para que a Independência se faça de forma pacífica, sem recorrer a uma guerra, posição não aceite por Salazar, líder de uma das mais retrógradas ditaduras da Europa;
» ao longo dos 11 anos de guerra reafirmou sempre a sua disponibilidade em negociar, tanto mais que, como ele sempre dizia, “ambas as partes falam a mesma língua, o português, e podem entender-se rapidamente”;
» chegou ao ponto de, durante a Luta, dar ordem rigorosa para que a ponte do Saltinho, no rio Corubal, não fosse destruída, apesar dos benefícios militares que daí poderiam ter advindo para a guerrilha, ao impedir a ligação norte-sul da tropa colonial. Fundamentava esta decisão perguntando, “e depois da independência, onde vamos nós buscar fundos para a reconstruir?”
Outros trabalhos agronómicos
Para além dos trabalhos realizados na Guiné-Bissau, Amílcar Cabral exerceu atividade agronómica em Portugal, Angola e Alemanha, a partir de Março de 1955, quando ele e Maria Helena são “expulsos” do país, depois de dois anos e meio de intenso trabalho.
São numerosos os documentos técnicos então produzidos por Amílcar Cabral, referentes àqueles países, tendo por objetivo:
» obter recursos financeiros que lhe permitissem viver com dignidade
» praticar a sua profissão ganhando novos conhecimentos e experiência
» aguardar a altura de dar o “salto” para o interior da Guiné-Bissau para prosseguir a luta pela independência que começara a organizar logo que, acabado o curso, foi para Bissau
Não nos iremos pronunciar sobre estes estudos e documentos, uma vez que eles não dizem respeito à Guiné-Bissau e serão menos relevantes para a agricultura guineense.
Nota final
Depois da libertação total da Guiné-Bissau, em 1974, apenas reconheço numa pessoa, Luís Cabral, irmão de Amílcar e primeiro Presidente da Republica, a compreensão do seu pensamento agronómico, investindo seriamente na agricultura, lançando numerosos projetos e acompanhando-os permanentemente no terreno com entusiasmo e encorajando os seus técnicos protagonistas. As frequentes visitas ao Centro Orizícola de Contuboel onde, para além da pesquisa se introduziu pela primeira vez na Guiné-Bissau, a cultura de arroz na época seca, assim como à ENAVI, empresa pública de produção de galinhas e ovos, são disso exemplo.
Depois dele, nenhum outro Presidente se interessou ou se dedicou à promoção e modernização da agricultura guineense.
Bibliografia
- Estudos Agrários de Amílcar Cabral, INEP, 1988
- Juvenal Cabral, Memórias e Reflexões, Instituto da Biblioteca Nacional, Cabo Verde, 2002
- Luís Cabral, Crónica da Libertação, O Jornal, 1984
Agradecimentos
Para a elaboração destas breves notas recorremos a informações e opiniões de pessoas que nos ajudaram e a quem muito devemos e agradecemos.
Em primeiro lugar os numerosos combatentes da luta pela independência das Matas de Cantanhez, primeira zona libertada, e que nos foram contando ao longo de anos, a sua vida durante a Luta, das suas tabancas e dirigentes que lá estabeleceram os seus acampamentos de guerrilha.
A Bacar Cassamá, monitor da Granja de Pessubé e antigo combatente de primeira hora, com quem lamento não ter conversado mais tempo.
A José Araújo, dirigente do PAIGC que nos contou, quando estávamos na direção da JAAC (Juventude do Partido) muitos dos pensamentos de Amílcar Cabral, em especial o que ele estava a conceber para o pós-independência.
A João da Costa, extraordinário intelectual, combatente da independência, que me foi relatando de forma analítica e crítica a história da Luta, dos seus protagonistas e das diferentes frentes, incluindo “a das louras”, o que me permitiu perceber as razões de fundo das sinuosidades do percurso do PAIGC
A Flora Gomes, cineasta e antigo aluno da Escola Piloto de Conakry, que conviveu de perto com Cabral e que tanto insistiu, apoiou e contribuiu para que elaborássemos estas notas, tendo nós a esperança que elas possam ser úteis para o “filme da sua vida” a que recentemente se abalançou: “Amílcar Cabral”.
A Clara Schwarz da Silva, amiga de primeira hora de Amílcar e Maria Helena, e que procedeu à tradução dos textos “Feux de Brousse et Jachères dans le Cycle Culturel Arachid-Mils” e “À Propôs du Cycle Cultural Arachide-Mils en Guinée Portuguaise”por ele apresentados na Conferência Arachide-Mil, em Bambey, Senegal em 1954 e que gentilmente cedeu as fotografias inéditas em que Amílcar Cabral está presente e que fazem parte da sua coleção pessoal.
novembro de 2012