As cores do racismo português: do colonialismo à actualidade
Como é que ao longo dos séculos o colonialismo português estabeleceu diferenças de estatuto social e cultural e de acesso à cidadania a partir da cor da pele? Que hierarquias se modularam a partir de um espectro cromático em que uns eram mais iguais do que outros?
Existe racismo em Portugal. Tal é explicitado nos relatórios da secção portuguesa da Amnistia Internacional ou da SOS Racismo. O tema costuma ser evitado ou contornado. Parte-se do princípio de que não existe. Mas como explicar que seja tão estruturante? As respostas, encontrei-as no passado, na história do país. É óbvia a influência do colonialismo, do contacto com o Brasil, com os países africanos (hoje de língua oficial portuguesa) e com os territórios asiáticos. A pesquisa iniciou-se em finais do século XIX, na fase posterior à independência do Brasil, quando houve uma viragem para África e restantes territórios. Analisei a legislação, a produção de conhecimentos e a propaganda colonial. E ainda as exposições que Portugal organizou, ou em que participou, em que foram expostos seres humanos, se procurou mostrar o sucesso da colonização e as razões da sua existência.
Já nos séculos anteriores encontramos no Brasil diferenciações a partir da cor da pele, como mameluco (mistura de portugueses e índios), curiboca (mestiço de segunda geração), mulato (branco e negra), pardo (branco e mulata), cafuso (negro e índia), cabra (negro e mulata), mazombo (descendente de pai e mãe europeus) e crioulo (nascido no Brasil de pai e mãe negros/escravos). Mas a lógica de diferenciação, segundo a qual as cores da pele são evocadas em discursos, saberes, legislação e propaganda, surge de forma evidente na primeira metade do século XX. Como foi ela aplicada para organizar e governar as colónias? Houve espaço para matizações quando a cor não era facilmente identificável ou era subjectiva?
Um império uno, mas todos diferentes
Segundo o Acto Colonial de 1930, “é da essência orgânica da Nação portuguesa (…) possuir e colonizar domínios ultramarinos e (…) civilizar as populações indígenas que neles se compreendam”. Este documento legislativo estabeleceu diferenças de direitos e deveres entre os nascidos na metrópole e nas colónias e entre assimilados e indígenas. Apesar de vozes contrárias, como a de Cunha Leal (governador do Banco de Angola), Norton de Matos (ex-governador de Angola) e Bernardino Machado (fundador da cadeira de Antropologia na Universidade de Coimbra em 1885), a diferença de direitos fundada na hierarquia racial foi aprovada e ingressou na Constituição de 1933.
Os princípios do Acto Colonial foram desenvolvidos noutros documentos, como o Código de Trabalho dos Indígenas das Colónias Portuguesas de África de 1928. Embora o trabalho forçado tenha sido abolido em 1938, foram impostas as culturas obrigatórias, isto é, a obrigatoriedade de trabalhar a terra, configurando uma forma de trabalho forçado, e só em 1961, depois do espoletar da guerra em Angola, foram extintas.
O decreto ministerial de 6 de Fevereiro de 1929 cria uma distinção entre os colonizados, separando os indígenas (“indivíduos de raça negra ou dela descendentes que, pela sua ilustração e costumes, se não distingam do comum daquela raça”) e não indígenas. Em 1926 o estatuto de indígena aplicou-se a Angola e Moçambique e no ano seguinte à Guiné e aos territórios das companhias de Moçambique e Niassa. A Carta Orgânica do Império Colonial Português de 1947 exclui explicitamente os cabo-verdianos da classificação de indígenas, assim como as populações do Estado da Índia (Goa, Damão e Diu) e de Macau. Embora o estatuto não vigorasse em São Tomé e em Timor, o indigenato só foi aí excluído pela Lei Orgânica do Ultramar em 1953, que antecedeu o Estatuto dos Indígenas da Guiné, Angola e Moçambique de 1954, que continuou a impor a segregação. Foi abolido apenas em 1961.
Descrições da humanidade
As bases do racismo científico no século XIX encontram-se em formulações anteriores de teorias raciais. Para o filósofo David Hume (1711-1776), os não brancos eram naturalmente inferiores. Naturalistas como Lineu (1707-1778) ou Georges Louis Leclerc, conhecido como “conde de Buffon” (1707-1788), consideraram que o branco era a cor real e natural do homem e os negros e as outras raças eram variações desta cor. Este último, embora contrário à escravatura, afirmou que os negros não tinham muito génio. Os frenologistas, que estudavam a forma do crânio, e os fisionomistas contribuíram para estas formulações.
Vários autores deste período dividiram a humanidade em raças, podendo o número variar entre três a várias dezenas. Para tal podia contribuir a forma do crânio, a língua, diferenças climáticas e geográficas, mas o elemento sempre presente foi a cor da pele. Por exemplo, a divisão do médico Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840) em cinco variedades – caucasiana, mongolóide, etíope, americana e malaia – foi muito influente no século XIX.
Se num período inicial os filósofos ou os autores de livros de viagens elaboraram representações raciais, foram depois os médicos e os cientistas, especialmente antropólogos físicos, a contribuir para essa concepção.
Algumas das teorias raciais produzidas anteriormente e em outros países foram adaptadas às populações ultramarinas portuguesas. A política definiu categorias e a ciência engendrou estratégias para apoiar. As cores de pele escuras estiveram associadas ao feio e negativo e as claras ao bonito, inteligente e positivo. Umas foram identificadas com quem era dominado e outras com quem dominava.
A cada cor sua classe
Os autores portugueses basearam-se em várias escalas cromáticas. A escala do médico e antropólogo austríaco Felix von Luschan (1854-1924) foi utilizada pelo médico e antropólogo Germano da Silva Correia (1888-1967) nas populações da Índia portuguesa (1934), e a do médico e antropólogo francês Paul Broca (1824-1880) foi utilizada pelo militar Fonseca Cardoso (1865-1912) em Angola.
Outras escalas foram a Fisher-Saller, dos alemães Eugen Fischer e Karl Saller, para os cabelos, e a de Martin-Schultz, do suíço Rudolf Martin e do austríaco Bruno Schultz, para os olhos. Os portugueses tinham dificuldade em utilizar as escalas, pois não havia correspondência de números, nem todos utilizavam as mesmas tabelas e não havia equivalência entre escalas. Mas concordavam ser preferível usar as tabelas, em vez de termos vagos como loiro, ruivo ou castanho.
O biólogo José Antunes Serra defende no Congresso Nacional de Ciências da População de 1940 a classificação de raças a partir da pigmentação, tendo em conta uma nomenclatura internacional das côres. Estas remetiam, porém, para raças hierarquizadas socialmente, umas consideradas inferiores (de cor mais escura) e outras superiores (de cor mais clara).
Na prática, produziu-se legislação; fizeram-se estudos considerados científicos apresentados em congressos, como o de Antropologia Colonial, em 1934, ou os do Mundo Português, em 1940; os livros únicos do ensino básico e secundário tinham um objectivo claro: passar a mensagem do poder instituído; o mesmo na propaganda veiculada no cinema: incentivava-se a emigração portuguesa para África, onde o negro trabalharia para o branco como acontece nos filmes Feitiço do Império (1940) e Chaimite (1953).
Da máquina administrativa colonial fizeram parte, além do Ministério das Colónias, organismos como a Agência Geral das Colónias (1924-1951), depois Agência Geral do Ultramar (1951-1974), e o Secretariado de Propaganda Nacional (1933-1944), depois Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (1944-1974). O império foi divulgado através da imprensa (por exemplo, O Século); periódicos; revistas, incluindo as missionárias (Missões de Angola e Congo; O Pretinho); literatura colonial; sistema de ensino (livros, cruzeiros, intercâmbios escolares); expressão artística; exposições (como a Exposição Colonial de 1934, no Porto, e a Exposição do Mundo Português de 1940, em Lisboa); e rádio (com a Emissora Nacional). Todos os elementos divulgados eram previamente aprovados de acordo com a censura vigente.
A ideia de evolução humana, associada a uma escala cromática chegou à consciência popular. Como os matizes das cores nem sempre eram passíveis de ser diferenciados, a expressão indígena albergava vários deles. Essa é uma das explicações para que no contexto das exposições todos os participantes fossem nomeados indígenas (em cartas, catálogos ou jornais), mesmo que não tivessem esse estatuto.
No estrato mais baixo surgiam os africanos (angolanos, moçambicanos e guineenses), depois os são-tomenses e os cabo-verdianos (considerados mestiços e representados como tendo incorporado elementos da suposta civilização – a europeia), depois os timorenses e por fim os habitantes da Índia e de Macau. Esta hierarquia não é estanque e existem exemplos de que estas posições foram alvo de resistência ao longo do tempo, mesmo entre os colonizadores, mas serve para evidenciar como a cor da pele ajudou a estruturar o império e foi um mote central da sua violência e desigualdade.
Foi aos negros angolanos, moçambicanos e guineenses, considerados superiormente robustos, que foi aplicado um regime de trabalho compulsivo. A cor da pele dos asiáticos, menos escura em geral do que a dos africanos, aproximou-os dos europeus. A mestiçagem, contudo, não foi estimulada pelo regime, nem vista como uma solução para o problema da assimilação.
Mudanças inacabadas
Com as pressões internacionais, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, o discurso altera-se. A ideia de raça é desacreditada cientificamente. As colónias passam a designar-se províncias ultramarinas a partir de 1951 e os discursos divulgam um país multicontinental, multirracial e onde a colonização tinha sido diferente.
Esta última ideia radica na tese luso-tropicalista de Gilberto Freyre, segundo a qual os portugueses, por terem recebido várias influências, inclusivamente do Norte de África, eram mais propensos a misturar-se amigavelmente com outros povos. Delineada nos anos 30, esta tese foi incorporada nos anos 50 pelo regime português, porque se tornou útil numa altura em que vários outros impérios deixavam de ter legitimidade para perpetuar a violência colonial com base racial.
Associada à universalidade da fé cristã, a disseminação desta tese foi alargada a gerações sucessivas e, apesar da falta de alicerces nos conhecimentos das ciências sociais, continua a ser reproduzida em meios menos informados.
Perduram no mundo e em Portugal fenómenos de discriminação racial e segregação baseados na cor da pele ou no grupo étnico. Em 2020, os assassinatos do afro-americano George Floyd, por um polícia branco nos Estados Unidos, e do actor português Bruno Candé, trouxeram o racismo à tona.
Em Maio de 2020 o movimento Black Lives Matter, surgido em 2013, ganhou nova expressão. Em Portugal há ainda quem negue estas evidências. Após o assassinato de George Floyd, houve quem defendesse que não se tratou de racismo, mas de violência policial excessiva e que Portugal era diferente. Além disso, a forma como por vezes são nomeados os negros continua a reflectir um paternalismo que se filia no período colonial.
Os debates públicos insistem em perguntar se temos ou não um problema de racismo, em vez de passar à discussão de políticas públicas e maneiras de reduzir os fossos sociais. Urge reconhecer este problema, compreender as suas origens e trabalhar no sentido de mudar as mentalidades.
Investigação financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BM/2194/2000)
Artigo originalmente publicado por Público a 31/01/2021