Blues para Emmett Till
Vinícius, autoproclamado «o branco mais preto do Brasil», dedicou-lhe um poema, «Blues para Emmett Till», escrito no Rio em 1962, no mesmo ano em que Bob Dylan assinava «The Death of Emmett Till», música que, apesar de nunca ter constado dos seus álbuns, foi várias vezes gravada por si e por outros cantores de protesto.
Não lhe faltaram as homenagens, é certo, e a indignação causada pela sua morte ecoou fundo em muitos corações por esse mundo fora. O choque gerado pelo crime hediondo não se ficou a dever, todavia, à morte de um rapazinho negro no Mississípi, acontecimento não tão raro assim, nem sequer à comoção suscitada pelo desfecho judicial deste caso, expectável por aquelas bandas, sobretudo naquela época. O que mais emocionou a América foi, isso sim, o facto de não ter podido evitar confrontar-se com uma visão arrepiante e brutal, a visão do cadáver de uma criança, horrivelmente desfigurado, exposto perante todos.
Os lugares ainda lá estão, a lembrar a tragédia: a casa de dois pisos em Chicago, onde Emmett vivia com a mãe, a mercearia de Money, no Mississípi, palco dos acontecimentos que detonaram o homicídio. Os protagonistas, esses, já morreram quase todos, com uma excepção decisiva: Carolyn Bryant, a mulher que acusou Emmett de a ter assediado, verbal e fisicamente. Quanto aos assassinos, foram absolvidos e desapareceram há muito, ainda que o caso continue a ser investigado. O FBI decidiu reabri-lo em 2017 e, no ano passado, por ocasião do 65º aniversário da barbárie, intensificou-se a campanha para que seja feita justiça. As investigações, ao que parece, procedem o seu curso, até agora sem resultados à vista.
A reabertura do processo foi ditada pela publicação, em 2017, de O Sangue de Emmett Till, de Timothy B. Tyson, historiador e professor na Universidade da Carolina do Norte. Nesse livro, editado no ano passado no Brasil, com a chancela Estação Liberdade, Tyson faz uma revelação bombástica: entrevistada por ele em 2008, Carolyn Bryant terá reconhecido que não era verdadeira, ou não era inteiramente verdadeira, a história que contara à polícia em 1955, segundo a qual Emmett lhe teria agarrado a mão e feito propostas indecorosas. O mistério permanece, contudo, pois a nora de Carolyn, que assistiu às duas entrevistas da sogra com Tyson, afirmou peremptoriamente que ela nunca disse tal coisa. De facto, as gravações das entrevistas não contêm nada que permita sustentar a tese daquele historiador e activista, o qual se defendeu apresentando um apontamento por si tirado no decurso dessa conversa, com a admissão de culpa por parte de Carolyn. É pouco, convenhamos.
A esta distância, será difícil, ou mesmo impossível, reconstituir integralmente os factos passados naquela manhã sufocante de 24 de Agosto de 1955, quando Emmett Till, que se encontrava a passar férias na casa dos tios em Money, Mississípi, decidiu, juntamente com os primos, faltar à missa para ir comprar guloseimas à Bryant’s Grocery, a mercearia de Roy Bryant e da sua jovem mulher de 21 anos, Carolyn. A mãe de Emmett avisara-o para os perigos do Mississípi, um estado onde desde 1882 (o ano em que se começaram a recolher registos) até hoje já foram linchados mais de 500 negros (em todos os estados do Sul, o número ascende a mais de três mil). Sobre o que se passou, há versões desencontradas, mas um dado incontroverso: naquela época, as tensões raciais estavam ao rubro, com os estados sulistas a rebelarem-se contra a decisão do Supremo no caso Brown v. Board of Education, proferida no ano anterior, em 1954, a qual ordenava o fim da segregação nas escolas. Uma semana antes de o rapazinho chegar ao Mississípi para passar férias com os tios e os primos, um activista chamado Lamar Smith foi morto a tiro frente ao tribunal de Brookhaven, tendo os suspeitos do homicídio sido detidos, mas, como sempre, libertados pouco depois. Segundo algumas versões, Emmett trazia uma fotografia na carteira que o mostrava, orgulhoso, na sua escola de Chicago, ao lado de colegas brancos, em plena harmonia e integração racial, e gabava-se de que uma das raparigas na foto – branca, claro está – era sua namorada. Noutra versão, menos glamorosa, não havia namorada alguma e, quando muito, Emmett tinha no bolso o retrato de uma actriz de Hollywood que era dado como brinde por uma marca de chocolates.
Mais controverso, contudo, é o que se terá passado no interior da mercearia. Carolyn encontrava-se sozinha ao balcão, a cunhada estava nas traseiras em afazeres domésticos, não viu nem ouviu nada. Emmett entrou e, segundo ela, agarrou-lhe a mão na altura de receber o troco, momento em que lhe terá feito uma vaga proposta de encontro, com indisfarçável odor a sexo («How about a date, baby?»). Mas, ao depor na polícia, Carolyn afirmou ser incapaz de pronunciar as demais obscenidades que o rapaz lhe terá dito. Há quem assevere, contudo, que ficaram juntos e a sós apenas por breves instantes e que o mais grave que ele terá feito foi, por um lado, receber o troco na mão (nos estados do Sul, a regra era colocar os produtos e o dinheiro em cima do balcão, evitando quaisquer contactos físicos entre brancos e negros) e, por outro, não se ter dirigido a Carolyn com o tradicional e servil «yes, ma’am» ou «thank you, ma’am».
Mesmo ignorando os pormenores do sucedido, tudo andou perto disto: no máximo dos máximos, uma bravata parva de um adolescente a exibir-se para os primos, sem se aperceber das idiossincrasias do racismo sulista e da gravidade do seu gesto desrespeitoso. Quanto ao mais, não houve o mínimo sinal de agressão ou perseguição à jovem mulher, as coisas passaram-se à luz do dia, numa manhã de domingo, e envolveram um grupo de miúdos cujo único ou principal crime terá sido a cor da pele. Nas entrevistas que, muitos anos depois, concedeu a Timothy B. Tyson, a própria Carolyn Bryant, de resto, disse o essencial: «nada do que se passou justificava o que lhe fizeram».
E o que lhe fizeram foi o seguinte: poucos dias depois, na noite de 27 de Agosto, Roy Bryant, o marido de Carolyn, estava em Glendora, a 45 quilómetros de Money, a jogar às cartas e a beber com o seu meio irmão, John Milam, quando o incidente com o jovem negro veio à baila na conversa, tendo ambos concordado que aquela afronta não poderia ficar incólume. Meteram-se então numa carrinha emprestada, sendo provável que Carolyn os tenha acompanhado para identificar o jovem negro e, na madrugada de dia 28, entre as duas e as três da manhã, foram até à casa do tio de Emmett e, pela força das armas, raptaram o rapaz e levaram-no para um local desconhecido, possivelmente para Glendora, até ao bar onde tinham estado a beber e a jogar. Além de Roy Bryant e de John Milam, estavam presentes outros homens brancos e três negros, que trabalhavam para Milam. Um ou dois desses negros acompanharam Bryant e Milam quando estes conduziram Emmett até um poço de irrigação clandestino situado nas imediações, onde o insultaram espancaram durante uma hora. Depois, quando o rapaz ainda estava consciente, decidiram levá-lo até uma escarpa de 30 metros de altura nas margens do Mississípi, perto de Rosedale. Talvez a intenção fosse apenas assustá-lo ou talvez pensassem matá-lo ali mesmo e livraram-se do corpo lançando-o para o rio, pela encosta abaixo. Não se sabendo porquê, decidiram-se por outro destino e acabaram por ir parar a um velho barracão existente numa propriedade administrada por Milam. O barracão servia de oficina e armazém de ferramentas, algumas das quais foram usadas como instrumentos de tortura, a ponto de as testemunhas que observaram o cadáver de perto terem dito que alguns golpes no lado esquerdo do rosto pareceram ter sido desferidos por uma lâmina pesada. De início, Emmett tentou defender-se usando os braços e as mãos, mas logo os dois pulsos foram fracturados, o mesmo sucedendo com o alto da cabeça e com a base do crânio, esmagada em vários pedaços, alguns dos quais se desfizeram nas mãos dos agentes da polícia quando estes resgataram o corpo. Surpreendentemente, apenas um dente foi partido e, ao contrário do que chegou a dizer-se, Emmett Till não foi castrado. A violência, contudo, foi avassaladora e brutal e os agressores conseguiram até fracturar-lhe o fémur, o maior e mais resistente osso do corpo humano. O auxiliar do xerife diria mais tarde que o olho esquerdo do rapaz estava quase a cair, com a órbita esvaziada, e uma parte da orelha desapareceu, o que sugere que tenha sido cortada com uma faca ou com uma tesoura de poda.
Tempos depois, os carrascos de Emmett Louis Till disseram não ter tido a intenção de matá-lo, mas tão-só de dar-lhe uma tareia correctiva. Contrariando essa ideia, o livro de Tyson apresenta um dado esclarecedor: é necessária uma força de 250 a 500 quilos para esmagar um crânio humano, como sucedeu neste caso, e ninguém exerce uma força de tal magnitude sem um intuito destruidor e homicida. Além disso, e mais decisivamente, Till acabou sendo morto à bala, com um tiro de espingarda acima da orelha direita. O corpo ficou em tal estado que os agressores concluíram que de nada adiantava deixá-lo à porta de um hospital e optaram por lançá-lo ao rio Tallaatchie, amarrando-lhe ao pescoço, preso por arame farpado, um descaroçador de algodão para que o cadáver não voltasse à tona de água. Apesar disso, seria descoberto ao fim de alguns dias por dois rapazes que andavam à pesca nas imediações.
No Mississípi, tudo fizeram para que Emmett fosse rapidamente enterrado e o caso esquecido, mas a sua mãe tomou uma decisão tremenda: exigiu que o cadáver fosse transferido para Chicago e impôs um funeral com caixão aberto, para que o mundo inteiro visse o que tinham feito ao seu menino. As imagens do cadáver de Emmett Louis Till, um fato escuro com uma massa disforme de carne pisada no lugar da cabeça, são dos documentos fotográficos mais impressionantes do nosso tempo. Não admira que tenham dado um impulso decisivo à causa antirracista por todos os Estados Unidos, mobilizando manifestações em que participaram Eleanor Roosevelt, Adam Clayton Powell ou Rosa Parks, que decidiu fazer o seu protesto lendário num autocarro depois de ter visto as fotografias do cadáver de Emmett Till, morto aos 14 anos.
Os racistas do Sul não desarmaram, tendo o desplante de atribuir as culpas pela tragédia às políticas anti-segregacionistas, as quais, segundo eles, fomentaram o ódio entre brancos e negros e puseram termo à paz ali vivida. A comoção aumentou ainda mais quando, no final de um escandaloso julgamento, Roy Bryant e John Milam foram absolvidos, o que gerou protestos em todo o mundo e, em tempos de Guerra Fria, logo foi aproveitado para atacar a América. O embaraço diplomático causado ao Departamento de Estado levou anos a sarar e William Faulkner teve na ocasião palavras particularmente duras, dizendo que um país que assassinava crianças não merecia sobreviver e, provavelmente, não iria sobreviver.
Tratou-se de um exagero, sem dúvida, mas ainda assim expressivo de uma realidade inegável: a transigência com a cultura da violência, com o ódio e com o racismo, por mínima que seja, paga-se sempre caro, caríssimo, com juros a dobrar, e os que compactuam com a intolerância acabam sempre, mas sempre, por ser vítimas dela. «Dialogar» com o Chega de André Ventura, além de contrário aos princípios e à decência, é um acto suicida, um hara-kiri moral e político que terá efeitos por muitos e bem tristes anos.
Artigo originalmente publicado em Diário de Notícias a 12.06.2021