Cor de pele, estatuto social e tomada de decisão
Discriminação no contexto de decisões socialmente críticas
Na madrugada do dia 4 de Fevereiro de 1999, Amadou Diallo, um imigrante guineense negro de 23 anos, estava à porta do seu prédio no Bronx, Nova Iorque, quando foi abordado por quatro polícias que o consideraram parecido com um suspeito de violação em série. Ignorando os supostos pedidos da polícia para não se mexer, Diallo estendeu a mão para retirar a carteira do seu bolso. Tal objecto foi confundido com uma arma e levou os polícias a disparar 41 tiros na direcção de Diallo, 19 desses atingiram-no e causaram a sua morte no local.
Este episódio real é um bom exemplo de decisões socialmente críticas, i.e. decisões que tomamos sobre outros e que podem envolver consequências graves para os envolvidos. De facto, todos nós tomamos decisões triviais todos os dias, como o que vestir ou onde vamos jantar; mas alguns de nós, em certos momentos, somos obrigados a tomar decisões socialmente críticas, como um/a polícia que tem que decidir disparar ou não sobre um suspeito ou um/a médico/a que tem que decidir a que vida dá prioridade na atribuição de um ventilador a doentes com problemas respiratórios.
Casos como o de Amadou Diallo levantam questões que, por vezes, aparecem associadas à discussão destas decisões críticas: Será que polícias decidem disparar mais rapidamente e mais frequentemente contra suspeitos negros do que contra suspeitos brancos? Será que os/as médicos/as discriminam pacientes de estatuto socio-económico inferior nas suas decisões de transplante ou de diagnóstico e receituário? Será que juízes/as têm em linha de conta estes aspectos quando decidem sobre a condenação de um réu ou que sentença atribuir? Estamos, portanto, a questionar se quando estes profissionais tomam decisões críticas são por vezes influenciados pela cor da pele ou estatuto social das pessoas sobre quem decidem.
O que nos diz a Psicologia Social sobre isto?
Investigação conduzida fora de Portugal já nos oferece pistas de resposta a esta pergunta. Inspirado pelo episódio que envolveu Amadou Diallo, o psicólogo social Joshua Correll e os seus colegas da Universidade do Colorado questionaram-se o que teria acontecido se Diallo fosse branco? Para responder à questão, Correll e colegas desenvolveram um conjunto de estudos que procurou recriar, de forma realista e em ambiente controlado, a experiência pela qual passam os agentes policiais quando é esperado que tomem esse tipo de decisões. Em concreto, criaram um “jogo de computador” em que pessoas brancas e negras apareciam sequencialmente em diferentes poses, em diferentes cenários, segurando uma arma ou um objecto neutro (e.g. telemóvel).
Correll e colegas conduziram um primeiro estudo em que estudantes universitários foram convidados a participar na experiência. Os resultados revelaram a existência de um padrão de respostas em que os participantes decidem disparar contra negros mais frequentemente e mais rapidamente do que contra brancos, nas mesmas circunstâncias. Ficou também demonstrado que essas decisões eram influenciadas por estereótipos que existem sobre negros como estando mais associados a criminalidade. Isto significa que as decisões que são congruentes com os estereótipos são facilitadas, e por isso mais rápidas. Noutra pesquisa envolvendo polícias de uma grande cidade nos EUA, os resultados mostraram que, ainda que os polícias não revelassem nenhum enviesamento nas decisões efectivas de disparar, também estes exibiam o mesmo padrão em termos dos tempos de resposta.
Também dos Estados Unidos nos chega investigação suportando a existência de decisões enviesadas em contexto médico. Estudos mostram que médicos brancos têm uma menor probabilidade de recomendar um tratamento por trombólise (i.e. procedimento que utiliza medicação para dissolver um coágulo) para pacientes apresentados como tendo fortes dores no peito quando estes são negros, do que quando são brancos. Têm também menor probabilidade de recomendar medicação para a dor a pacientes negros ou hispânicos. Tais efeitos verificam-se mesmo quando se tem em linha de conta eventuais diferenças nos rendimentos e apólices de seguro destes pacientes.
Finalmente, ao nível das decisões legais, um conjunto de estudos - onde se recriou o contexto de julgamento - mostra a existência de um enviesamento para julgar mais negativamente réus de “outra etnia”. Ainda que este efeito se verifique tanto para réus brancos julgados por negros como para réus negros julgados por brancos, este efeito é muito mais pronunciado neste último caso. Estes enviesamentos existem mesmo quando se controla outros aspectos como as circunstâncias do crime ou a (in)existência de atenuantes.
E em Portugal?
Do ponto de vista da opinião pública, nos últimos anos vários episódios suscitaram debate sobre um eventual tratamento mais prejudicial de alguns grupos sociais. A inexistência de recolha de dados “étnico-raciais” ao nível institucional (recentemente chumbada pelo INE) impede obviamente a aferição destes enviesamentos em termos estatísticos. É possível, no entanto, replicar de forma adaptada no contexto académico português alguma da investigação mencionada acima. Os projetos que lidero no ICS e que contam com uma equipa de psicólogos sociais são dedicados justamente ao estudo destas questões.
O primeiro objectivo de um destes projetos era o de aferir sobre a existência de enviesamentos ao nível da decisão de disparar entre agentes policiais em Portugal. Para tal, pedimos autorização à direção nacional da PSP para recolha de dados em esquadras portuguesas. Tal autorização foi recusada com o argumento de se tratar de um assunto sensível. Restava-nos focar noutro tipo de decisões e é isso que temos feito nos últimos anos.
Desenvolvemos investigação sobre decisões médicas num estudo realizado na Universidade de Lisboa junto de uma população leiga (i.e. participantes não-médicos) em que pedíamos aos participantes que se pronunciassem sobre a prioridade de recomendação num cenário em que vários doentes necessitavam de um transplante de coração. Os dados mostram, à semelhança dos resultados discutidos acima, a existência de decisões mais desfavoráveis face ao paciente negro. Este foi significativamente menos recomendado para transplante cardíaco que o paciente branco, ainda que o caso fosse medicamente idêntico. Num outro estudo, procurámos perceber se ser negro e imigrante aumentava o risco de desfavorecimento numa situação de transplante. Para o efeito, criámos um estudo onde os participantes viam pacientes portugueses negros e brancos ou viam pacientes imigrantes negros e brancos. Os resultados mostraram que o paciente negro e imigrante era, de longe, o mais discriminado.
O nosso projeto mais recente é sobretudo dedicado às decisões no contexto legal. A este nível, os nossos estudos têm criado cenários fictícios em que pedimos aos participantes que se imaginem como fazendo parte de um painel que tem que dar uma recomendação sobre a sentença que deve ser atribuída aos diferentes réus. Os réus são apresentados como já tendo sido condenados, faltando apenas a atribuição de sentença. Os nossos resultados demonstram que, comparando dois réus absolutamente equivalentes em termos de circunstâncias do caso, (in)existência de atenuantes e características demográficas (que não a cor da pele), ao réu negro é atribuída uma sentença significativamente superior do que ao réu branco. Portanto, controlando todos os outros aspectos, ser negro implica receber uma pena mais pesada.
Apesar de resultados indicadores da existência de enviesamentos desfavoráveis a negros, estes estudos serão tão mais relevantes quanto mais nos aproximarmos das populações que efectivamente tomam estas decisões no seu dia-a-dia. Assim, é nosso objectivo replicar tais estudos com médicos ou juízes num futuro próximo.
Meritocracia e tomada de decisão
Um outro objectivo da nossa pesquisa tem sido o de tentar perceber a que se devem estes enviesamentos. Em particular, temos estudado a influência que pode advir de se promover a ideia de meritocracia numa sociedade. A meritocracia é uma ideologia que define que aquilo que as pessoas têm em termos de recursos, empregos, estatuto, é (ou deve ser) o resultado do seu esforço e trabalho individual. Ou seja, aqueles que mais trabalham conseguem melhores coisas na vida. Ainda que seja uma ideologia habitualmente mais partilhada em sociedades anglo-saxónicas ou nórdicas - por eventual influência radicada numa ética protestante -, dados mais recentes mostram que alguns destes princípios meritocráticos são altamente partilhados por Portugueses. Assim sendo, torna-se relevante questionar o impacto que tal ideologia pode ter na forma como se pensa sobre diferentes grupos sociais. Será que quando se acredita na ideia de que quem mais trabalha, mais terá, isso poderá fazer as pessoas concluírem que aqueles que menos têm é porque não trabalharam o suficiente? E poderá esse raciocínio ser levado mais longe e levar as pessoas a considerar uma situação desfavorável de grupos de baixo estatuto como sendo justa e, por isso, merecida? Transpondo para a nossa investigação, questionámo-nos se quando a ideia de meritocracia está mais presente, será que isso torna mais legítimas decisões mais negativas face a estes grupos que estão em situação mais vulnerável?
Ainda que seja cedo para tirar conclusões definitivas sobre este aspecto, realizámos alguns estudos que fornecem algumas respostas a estas perguntas. E, em concreto, demonstramos que quando tornamos as ideias subjacentes à meritocracia mais ativas na mente dos participantes, as decisões mais desfavoráveis em relação a grupos de baixo estatuto (e.g. negros, toxicodependentes) são vistas como mais aceitáveis.
Isto aconteceu, até ao momento, em estudos no contexto de decisões médicas mas também de decisões sobre dilemas morais. Neste último caso, confrontámos os nossos participantes com um dilema em que têm de se pronunciar se consideram aceitável matar uma pessoa se isso significar o salvamento de cinco pessoas.
Após a apresentação desse cenário, dávamos aos nossos participantes informação sobre a vítima potencialmente sacrificada, nomeadamente dizendo se se tratava de um toxicodependente ou não. Para além disso, e antes da apresentação desse cenário, para metade dos participantes ativávamos na mente de metade dos nossos participantes os tais ideais que compõem a ideologia da meritocracia. Para a outra metade dos nossos participantes, isso não foi feito. O que os resultados mostram é que, entre os participantes para quem foi ativada esta ideia de meritocracia, o sacrifício mortal de toxicodependentes foi visto como mais aceitável não acontecendo o mesmo com outras potenciais vítimas não-toxicodependentes nem entre os participantes a quem a ideia de meritocracia não foi lembrada.
No conjunto, a investigação desenvolvida por outros e pela nossa própria equipa de investigação mostra-nos que pertencer a grupos socialmente desfavorecidos (por inerência da cor de pele ou outros critérios) não acarreta apenas o peso social de eventualmente usufruir de menos oportunidades ou de sofrer insultos na rua. Acarreta também transportar uma marca que os torna alvos mais frequentes de decisões desfavoráveis em situações que podem, em muitos casos, significar a diferença entre a vida e a morte. Só mais investigação e investigação mais próxima da realidade efectiva onde estas decisões são tomadas permitirá concluir de forma mais autêntica sobre estes assuntos.
Nota 1: Agradeço aos colegas que participaram e/ou participam nestes projetos de investigação: Mariana Miranda, Filipa Madeira, Mafalda Mascarenhas, Gonçalo Freitas e Wilson Moreira.
Nota 2: Parte da investigação descrita acima foi financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projecto PTDC/PSI -GER/28765/2017
Link para o projecto: https://www.ics.ulisboa.pt/en/node/101140
Artigo publicado originalmente no jornal Público