“Crioulo”: usar com cuidado
Entre os linguistas é hoje largamente assumido que os Crioulos são línguas plenas, com um grau de complexidade, de dinamismo e de eficácia que em nada as distingue das restantes línguas naturais, como o Português, Inglês, Japonês ou outra, cujos recursos infinitos garantem a total satisfação das necessidades de comunicação dos seus falantes.
Apesar disso, ainda vão existindo demasiados equívocos quanto à competência destas línguas, nascidas há poucas centenas de anos do contacto entre línguas europeias e africanas. Crê-se que elas sofrem de uma qualquer insuficiência no que toca a servir propósitos considerados mais “nobres” ou “sérios”, como a redacção de leis, a produção de discurso científico ou mesmo a composição de romances ou poesia. Quem defende – e há, obviamente, quem o faça – que um Crioulo serve para comunicar nesses circuitos mais fechados ainda corre o risco de passar por excêntrico ou por ser atrelado a cores políticas de (in)conveniência.
A minha opinião não é de falante de Caboverdiano, ou Crioulo de Cabo Verde, mas sim de investigadora dentro do quadro teórico da Gramática Generativa, que considera que todos os seres humanos saudáveis nascem equipados com um dispositivo cerebral da linguagem. Este instrumento inato é usado por cada indivíduo nos primeiros anos da infância para adquirir na perfeição a sua língua materna: aquela que é falada pelos adultos que o rodeiam e, por isso, aquela a cujo input, repetido e coerente, ele está sujeito. No caso das crianças caboverdianas essa língua é o chamado Crioulo de Cabo Verde. O que é portanto necessário usar com cuidado não é a língua em si, que pode e deve ser utilizada de forma tão livre e espontânea como as outras línguas, mas sim a palavra Crioulo (daí as aspas no título), que pode dar azo a um sem número de mal-entendidos.
Por um lado, deparamo-nos com as discussões que podem interessar mais ou menos localmente, e que chamarão com certeza para a conversa questões de ordem política, económica ou outras igualmente extra-linguísticas – pelo menos no sentido em que a linguística me interessa, e que é aquele que procura descrever a gramática, o funcionamento interno de cada língua, ainda que para esse estudo tenha de recorrer a comparações entre línguas diferentes. Por outro lado, existe a evidência de que os verdadeiros traços distintivos destas línguas, que levam à designação genérica de crioulos e que justificam um ramo específico, a Crioulística, se prendem sobretudo com as singulares circunstâncias históricas que rodearam a sua génese, no período da colonização e do tráfico de escravos. Para quem trabalha em linguística numa perspectiva histórica, será com certeza fascinante estudar como terão nascido estas línguas a partir do contacto entre um número elevado de africanos, que falavam línguas diferentes, muitas vezes ininteligíveis entre si (nas plantações de Cabo Verde havia, por exemplo, mandingas, jalofos e papéis), e os poucos colonos europeus que tinham de comunicar com eles. Diversas hipóteses têm vindo a ser discutidas e, dada a escassez de dados escritos nessas fases de transição, será difícil que alguma delas venha a ser verdadeiramente provada.
O que não deveria, quanto a mim, estar em discussão é a natureza – “mais ou menos rica”, “mais ou menos adequada”, etc. – de cada uma destas línguas, a partir do momento em que passou a garantir em pleno a função de língua materna de populações inteiras, o que terá acontecido, pensa-se, no máximo até ao século XVII. No entanto, não faltam afirmações – estas sim, registadas para a posteridade – que atribuem aos Crioulos um estatuto menor, conotado mais ou menos claramente com a inferior capacidade intelectual dos seus falantes: escravos e seus descendentes, ou seja, negros e mestiços.
A propósito de Crioulos de base francesa, a entrada do termo crioulo no Dicionário Larousse do século XIX aponta os crioulos do Luisiana, nos Estados Unidos, e do Haiti, nas Caraíbas, como não sendo mais do que “um francês corrompido […]. Esta língua, muitas vezes ininteligível quando falada por um velho africano, é extremamente doce quando falada por mulheres crioulas brancas.” No seu Dictionnaire des sciences anthropologiques, de 1882, Vinson afirma: “As línguas crioulas resultam da adaptação de uma língua, especialmente alguma língua Indo-Europeia, ao (por assim dizer) génio de uma raça que é linguisticamente inferior.” Bloomfield, em 1933, referia que os Crioulos terão surgido porque “falantes de uma língua inferior fazem tão poucos progressos na aprendizagem da linguagem dominante que os mestres ao comunicarem com eles recorrem ao ‘baby-talk’.” Os Crioulos podem ser ainda julgados com recurso a categorias como esta: “o crioulo do Haiti é altamente aberrante” (Hockett, 1958).
Em português, e em relação ao Crioulo de Cabo Verde, temos afirmações idênticas, citadas por Dulce Almada, de naturalidade caboverdiana, no seu texto de 1961, “Cabo Verde: contribuição para o estudo do dialecto falado no seu arquipélago”, publicado na revista Estudos de Ciências Políticas e Sociais, Vol. 55. Esta autora cita Leite de Vasconcelos, que em 1928 escrevera sobre “as modificações que as línguas cultas da Europa sofreram em terras extra-europeias na boca de povos de civilização inferior, postos em contacto com línguas radicalmente diversas.”
Quanto à origem da expressão crioulos, ela parece ter estado ligada primeiro a pessoas e só depois a línguas. Alguns autores referem o termo crioulo, ou crioilo, como tendo a mesma raiz de criação, e esta seria usada para referir o conjunto dos animais domésticos (os porcos, as galinhas, as cabras…), que nascem aos cuidados do dono, na sua propriedade. Crioulo teria assim sido usado para designar, a partir do século XV, o escravo, nascido e criado em casa do senhor. Mais tarde, crioulo refere-se já à língua falada pelos mesmos escravos e seus descendentes, e que se assumiria, ainda nestas perspectivas da primeira metade do século XX, como uma variedade da língua dos senhores. Nas palavras de Baltasar Lopes da Silva, em 1929: “Não se pode negar que os povos submetidos, ao começarem a falar a língua dos Europeus, a alterassem em parte pelo tipo da sua própria linguagem. Simplesmente, como a língua está em íntima relação com os fenómenos sociais, a crescente influência do vencedor foi eliminando as manifestações linguísticas locais a pouco e pouco.”
Estudos mais recentes, elaborados, alguns deles, também por falantes nativos de Crioulos, têm chegado à conclusão de que essas suas línguas devem ter um estatuto social e político idêntico ao das restantes línguas naturais, embora com elas se possa fazer poesia “mas não estudar física, ou química, ou matemática, ou medicina”, como escreveu Métellus em 1997. Igualmente a propósito do crioulo do Haiti, escreveu Trouillot em 1980: “[…] facilita a mediocridade em muitos sentidos […] fecha-se em estruturas que são estreitas e limitadas, com a grande desvantagem de ser uma língua que anda não foi sistematizada […] não tem fixadas nenhuma ortografia nem nenhuma sintaxe. Pior de tudo, é (quase) ilegível para muitos leitores francófonos.”
De uma leitura breve de todas estas considerações, extraídas de uma lista extensa que tem vindo a ser acrescentada até aos nossos dias, surgem questões relevantes.
1) Porque não se pode estudar ciências em Crioulo? Que evidência empírica motiva tal afirmação? Talvez, para começar, não haja livros científicos traduzidos para Crioulo. Mas isso deve-se à natureza da língua ou a políticas linguísticas? Será ainda pela velha questão interna sobre qual das variedades será a “padrão”, reacendendo aqui os regionalismos e outras ideias mais castradoras do que orientadoras?
2) A propósito da velha observação sobre a morfologia verbal simples dos Crioulos, resultante de “mutilações” da morfologia verbal das línguas europeias: o que dizer quanto à morfologia simples do Inglês, que nos verbos regulares apresenta apenas um morfema de passado e, no presente, apresenta apenas um morfema de terceira pessoa do singular, não tendo nenhum marcador realizado em todas as outras pessoas? Como explicaremos esta “simplicidade”? Terá sido fruto de “mutilações”? Motivadas por que argumento de ordem cultural?
3) Por fim, a afirmação de que os crioulos não têm fixadas nem estrutura nem ortografia. E, diz Trouillot a propósito do crioulo do Haiti – que, curiosamente, é uma das línguas oficiais no seu país de origem, a par do Francês –, que este é (quase) ilegível para leitores francófonos. Não será esta sensação de estranheza indício bastante de que o Crioulo que ele refere não é uma variedade dialectal da língua europeia que, de uma maneira ou de outra, participou na sua génese? Porque é que o Crioulo do Haiti haveria de ser legível para um leitor francófono que não tenha aprendido/estudado a língua, diferente da sua a nível estrutural, lexical, fonológico? Será que qualquer leitor francófono sabe ler qualquer outra língua românica, para mencionar apenas línguas historicamente relacionadas com o Francês?
Manuel Veiga cita na sua Gramática de 1995 uma conferência de Pedro Cardoso, poeta da ilha do Fogo, em 1933, no então Teatro Virgínia Vitorino, cidade da Praia: “Todos aprendem a língua estrangeira tendo por instrumento a língua materna; saibam também os professores de instrução primária servir-se do crioulo como veículo para mais rápido e profícuo ensino das matérias do programa a cumprir, principalmente do português […]. Em toda a parte estudam-se os dialectos regionais; só em Cabo Verde é que aparecem uns ilustres pedagogos a denunciar o crioulo como trambolho […].” Lembremos que o Crioulo de Cabo Verde é a língua materna dos 400 mil habitantes residentes no país, além de muitos milhares (talvez um milhão, embora não haja números exactos) entre os caboverdianos na diáspora.
Apesar de ter sido produzido no mesmo ano em que Bloomfield refere o “baby-talk”, a essência do protesto do poeta é agora sustentada pelas evidências da própria língua, quando se trata de analisar e descrever os detalhes do seu funcionamento. Porque o Caboverdiano é, na verdade, uma língua plena de idiossincrasias gramaticais e daquela belíssima complexidade que faz da investigação linguística uma actividade apaixonante.