Djidiu- a herança do ouvido: poemas para sacudir mentes e iluminar caminhos

Djidiu - a herança do ouvido é uma obra que nos chama, de imediato, a atenção pelo instigante título. Djidiu, como explicado em nota no livro, “é um contador de histórias, um recipiente e um difusor da memória coletiva. Intérpretes e clarividentes, os Djidius, são porta-vozes dos sem voz, autênticas bibliotecas ambulantes”. Guardadores de memórias ancestrais, os Djidius são também conhecidos como Djelis ou Griots.

Djidiu é uma coletânea de poemas na qual os autores dos textos versejam sobre a experiência negra em Portugal. A obra é resultado de uma iniciativa da Afrolis que, entre março de 2016 a março de 2017, mobilizou pessoas negras a participarem “ativamente na produção e divulgação de textos da sua própria autoria ou de autores que considerassem relevantes”. Djidiu é, portanto, um livro atravessado por “recordações e movimentos” de poetas e escritores(as) negros(as) que ecoam as suas vozes num território português, marcado por profundas desigualdades raciais, onde não se pode mais fugir de um debate sério sobre o racismo, consequência das ações dos movimentos negros cada vez mais atuantes no país.

 

A coletânea reúne 56 poemas, produzidos pelos (as) poetas e escritores (as): Apolo De Carvalho, Carla Fernandes, Carla Lima, Carlos Graça, Cristina Carlos, Danilson Pires, Dário Sambo, luZGomes e Té Abipiquerst Té. De origens distintas, esses(as) autores(as) compartilham a experiência de ser um corpo negro diaspórico, caminhando e descaminhando em solo lusitano. Nos versos-protestos de Djidiu, a vivência negra é explorada através de diversos temas: família, amor, tradição, representatividade, apropriação cultural, entre tantos outros. Dentre esses temas, destaca-se a presença insistente, quiçá onipresença, da violência racial que invade ferozmente a vida das pessoas negras.

 

A iniciativa de uma obra como Djidiu faz-nos lembrar algumas ações semelhantes no contexto brasileiro. Podemos destacar, por exemplo, a coletânea Cadernos Negros, publicação fundamental para a divulgação da literatura negra produzida no Brasil. O primeiro volume dos Cadernos Negros surgiu no ano de 1978, contemplando a produção de oito poetas. A partir de 1980, autores que organizavam a antologia criaram o grupo Quilombhoje-Literatura que é, desde então, responsável pela edição e publicação dos Cadernos. É importante ressaltar que, desde a sua primeira edição, em 1978, os Cadernos Negros são publicados ininterruptamente, revezando entre coletâneas de poemas e contos. Em dezembro de 2017 foi publicado o quadragésimo volume dos Cadernos.

 

De certa forma, Djidiu pode ser considerado os Cadernos Negros de Portugal. Em ambas as coletâneas, a escrita surge como uma ferramenta de denúncia. Uma maneira das pessoas negras, marcadas pela violência do racismo, tentarem amenizar a dor de uma ferida de difícil cicatrização. Pois, como bem afirmou Cuti, um dos idealizadores dos Cadernos, “a visão luminosa dos poetas é fundamental, pois ao longo do caminho sabem produzir com palavras o mais nutritivo alimento para o espírito”.

Um número relevante de escritoras e escritores afro-brasileiros, que alcançaram certo reconhecimento a nível nacional e internacional, publicaram os seus primeiros textos nos Cadernos Negros. É o caso de Conceição Evaristo. Movida por seu compromisso ético e político de escrever sobre a experiência de indivíduos negros, Conceição Evaristo criou o conceito de “escrevivência”. Compreendemos “escrevivência” como essa necessidade de escritoras e escritores afrodescendentes escreverem sobre as suas vivências e das pessoas de seu grupo, talvez, escrever para viver.  Essas “escrevivências” inscritas por Conceição Evaristo em terras brasilis se manifestam como “heranças de ouvido” em terras portuguesas.

O lamento de vozes que foram silenciadas durante séculos ecoa nos versos politicamente comprometidos dessas “heranças escrevividas” de Djidiu. Essa obra pioneira em Portugal é uma tentativa de registrar memórias dentro de um tempo e espaço. Memórias que ecoam em versos e reversos, mesmo quando tudo parece silêncio. Djidiu surge como um gesto de insubordinação e de resiliência de indivíduos que não aceitam mais o silêncio imposto, e, num gesto de coragem, escancaram a sua dor, buscando estabelecer um diálogo franco e urgente. Nesse diálogo, verdades inconvenientes são expostas, pois esses corpos que carregam a herança ancestral de violências genocidas e etnocidas, não mais se submetem a fazer a indigesta dieta de engolir sapos, arrancando a máscara de Anastácia.

Djidiu – a herança do ouvido é uma obra que busca fazer alguns escurecimentos necessários, enegrecendo as páginas anêmicas de uma história que já não pode ser única.  Ao trazer “doze formas mais uma de se falar da experiência negra em Portugal”, Djidiu deixa a mensagem de que pensar sobre as suas experiências não deve ser um problema exclusivo da negritude e de outros grupos historicamente oprimidos. Djidiu convida a branquitude a pensar sobre os seus privilégios, em sua sociedade racista, refletindo sobre a sua disposição (se é que está mesmo disposta) em contribuir no processo de desmontagem desse sistema de opressão.

O combate ao racismo não é, portanto, um problema apenas das pessoas negras, mas um problema que a sociedade portuguesa, assim como a brasileira, precisa enfrentar e criar estratégias eficientes para tentar resolver. Ouvir e, de fato, escutar as vivências compartilhadas por quem sofre o racismo na pele, sem tentar minimizar a dor provocada por essa ferida, talvez seja um primeiro passo nesse processo de construção de uma sociedade equitativa. Utopia? Alguns podem dizer. Utopia urgente e necessária, dizem as vozes ressonantes de Djidiu, certas de que a poesia “bem situada no tempo, pode ferir ou curar, derrubar ou levantar, matar ou salvar; pode sacudir as mentes e incendiar as multidões”.

por Francy Silva
A ler | 27 Janeiro 2018 | literatura negra, poesia, Portugal, racismo